" Memórias de Alice - XII "
Kierkegaard e Regina Olsen. A "culpa" infinita.
© Lúcia Costa Melo Simas ( 2013 )
" Obscuras ameaças "
[ Visão de velha porta de casa em demolição ( Pormenor com "tratamento" Software fotográfico). Porto. 2012 ]
© Levi Malho.
Em data recuada e talvez bem próxima de nós, quando o tempo voa tão veloz na pós-modernidade, em1813, nascia na fria Dinamarca, o filósofo mais complexo de adjetivar, impossível de definir, paradoxalmente entendido, com uma grandeza que lhe concede um lugar ímpar no pensamento humano. Se há, ao longo da história da filosofia, um pensador que se refira à mulher e com ela trave um estranho diálogo através da sua extensa obra, esse é Kierkegaard (1813- 1855).
Em muitos aspetos, reunindo as suas recordações e reflexões, a vida e obra deste pensador saem completamente fora da regularidade dos seus congéneres. A obra revela uma unidade existencial e aí, o filósofo, o homem e a mulher, estão de tal forma interligados que não se separaram sem distorcer o desenvolvimento da explanação da condição humana.
Figura1- A Câmara de Copenhague no tempo de Kierkegaard.
As ruas eram locais de muitos encontros com uma certa liberdade que não se vê senão nos países nórdicos.
Se o temos de contextualizar no seu tempo, nas terras dos castelos de Hamlet, não ficou confinado nem no tempo nem no espaço. Muito incompreendido e criticado, nem por isso a sua obra deixa de ter uma rara beleza, tocar na poesia, brincar com a ironia, ou mostrar um fino sentido de humor na observação dos seres humanos que que têm de atemporal.
Figura 2 - Soren Kierkegaard
As interrogações sobre um filósofo que não o queria ser, um teólogo que lutava contra a cristandade, um indivíduo que preferiu o sofrimento a uma vida feliz, para se tornar num guerreiro da fé (o nome Thor Soren, significa filho de Ódin, senhor do martelo “mágico”).
Deste modo, Soren Kierkegaard é por destino o filósofo que não quer ser, o poeta que relemos, o teólogo que tantos querem emoldurar em sínteses, ou o enigmático escritor que quebra o tempo dos sistemas. Acima de tudo é “O Indivíduo” na forma em que se quer revelar o único, o existencialista que defronta ferozmente Hegel com críticas a todo o sistema e, numa época romântica, que exalta os sentimentos masculinos, não deixa de colocar também a mulher num plano tão elevado que, nesse aspeto, se separa dos outros pensadores.
A presença feminina é um forte e indispensável componente da trajetória da sua vida para que se possa aprofundar a sua obra. Se seu pai representa já um início trágico, a presença de Regina Olsen, na sua curta vida reúne-se nas múltiplas facetas que assumiu ligadas aos seus encontros e sobre as alternativas que podiam ter acontecido, de mistura com as vivas lembranças e reflexões sobre a jovem que se tornará sua noiva, por pouco mais de um ano. A viragem que provocou no seu íntimo foi uma verdadeira revolução. Ao lado dessa jovem de 19 anos a sua faceta romântica, pois não nos podemos esquecer da sua época, vai transformar.se numa extraordinária saga em que se torna “o” indivíduo, o escritor, o filósofo, o teólogo, o reformista e o primeiro existencialista em que se desdobra de mil modos.
O jovem filósofo conheceu Regina (1822-1904) quando ela tinha apenas 14 anos, em 1836 e nunca mais a esqueceu. Havia uma diferença de idade de 9 anos. O noivado, propriamente dito, só iria decorrer por pouco mais de um ano de 1840 a 1841. Nessa altura, ele tinha então 28 anos e se poderíamos pensar numa vida e carreira longa, um ministério assumido com fervor, já poucos anos faltam para a sua trágica morte aos 42 anos por exaustão de tanto escrever.
Já se tornara bem conhecido, combatido, controverso e um profeta que, no seu íntimo, talvez apenas a noiva abandonada, embora distante, com quem nunca mais falou e apenas se cruzou poucas vezes, na rua ou na igreja, o entendesse. Com a separação há o paradoxo da recusa de um casamento para, de certo modo, isso ser um começo e nunca o esquecimento. Através das suas obras, consegue dar-lhe uma imortalidade que assume características novas para a visão desta jovem realmente invulgar e também da mulher no mundo.
Já antes um “terramoto” abrira o chão, aos pés do jovem. As revelações que lhe fez seu pai, Mikael Kierkegaard, dentro no contexto das suas vidas e convicções religiosas são de uma infinita tragédia. O seu velho pai, rico industrial e temente a Deus, era um homem de fé mas que guardava uma imensa tragédia, carregado de culpa. Enquanto criança, viveu um desespero intenso com fome e frio. Quando ainda era um pequeno pastorinho, tremendo de frio e de fome, nas planícies gélidas da Jutlândia, perdido do mundo e esquecido dos homens, torna-se enraivecido e louco e no seu desespero lançou um repto a Deus e “amaldiçoo-O”
Figura 3 - Mikael Kierkegaard, o homem que amaldiçoou Deus e se sente rejeitado aos olhos de Deus pelo seu pecado sem salvação.
Dai em diante, só prosperou. Carregava uma culpa oculta e infinita manifesta numa profunda melancolia. Na força da vida retirou-se dos negócios e vivia só das suas rendas até aos oitenta anos. Teve sete filhos da segunda esposa, dos quais Soren foi o sétimo. Até o número lhe parece carregado de intencionalidade e predestinação. A morte das três filhas e dos filhos aos 33 anos, são para o pai a prova de um destino fatal e da ira de Deus sobre a sua cabeça. Considera-se responsável pelo fim trágico dos filhos. E certo que o mais velho escapou, também teve um final terrífico, pois enlouqueceu.
O mais jovem, o mais melancólico e indeciso dos seus filhos, toma a peito estas mortes e toda a tragédia. Depois da revelação, sente-se a vítima expiatória predestinada da culpa de seu pai. A predestinação tem um peso muito forte na forma como o luteranismo explica a salvação ou a perda pelo pecado. Vê-se carregado de um peso da maldição que pesa sobre uma família tão rica. O diálogo da revelação que teve com o Pai marcou-o para sempre com a tragédia familiar de que se julga ser o último representante.
Sente-se um homem sacrificado por uma maldição que tem uma missão a cumprir. Prisioneiro da culpa paterna, de angústia, da indecisão e tinha o pressentimento de uma vida breve para a qual não encontrava sentido.
Figura 4 - Na sua juventude, o jovem experimentou uma vida de grande gastos e era mesmo perdulário
Os seus anos de juventude e de estudo foram de dissipação e de alguma extravagância com subidos gastos de vida mundana pois nunca se interessou pelo valor do dinheiro. Já terminara os seus estudos quando Regina surge. Ao descrevê-la deste modo --- “ligeira como um pássaro, audaciosa como um pensamento”, mostra o seu forte enamoramento e todo um futuro risonho que só podia sonhar e se assim se imaginou, foi por muito breve tempo.
Figura 5 Regina Olsen. Retrato da época da juventude
A jovem escolhida era porém tão perspicaz e subtil que depressa descobre os intentos do noivo pois este dá-lhe alguns dados para entender o papel que ele lhe oferece nessa tragédia familiar e como podia através dela, resgatar a maldição que caíra sobre a sua família.
Figura 6 - Regina mostrou uma singular compreensão do desespero de Kierkegaard e tentou desviar o filósofo da via da fé ( desenho da época).
Tal como Abraão que confiou em Deus até ao absurdo, Kierkegaard sente que deve renunciar a um casamento feliz para realizar um sacrifício que resgate a família. Deve entrar num estádio religioso graças à revelação do afeto de Regina. Ainda assim, o noivado dura um ano, e, durante todo esse tempo, Soren tenta convencer Regina a afastar-se dele.
Aparentemente tudo é banal. Mas, nada é simples no íntimo deste filósofo nem foi simples a reação de Regina que o entende e não o quer perder. Estando ambos bem seguros do amor de um pelo outro, trava-se uma luta absurda e o rompimento deu-se, a muito custo e desolação de ambos, Se Kierkegaard só mais tarde confessou a terrível dor que sentia por ela sofrer. A jovem Regina mostra a violência dos seus sentimentos. No paradoxo, Kierkegaard escolhe o mais grandioso modo de afeto:
“Só um amor infeliz é o único verdadeiramente feliz”.
Essa visão só se entende pelo absurdo existencial de Kierkegaard que se apercebeu de que teria um futuro com todas as alegrias do casamento, de uma vida partilhada, da bênção dos filhos e mil pormenores que são as alegrias do casamento que não deixou de ter noção de tudo isso se nega a continuar o noivado e a casar.
Figura 7 - A carta de rompimento e a devolução do anel foram propositadamente cruéis
Nega-se a tudo o que bem podia ter, no estádio do casamento e realiza uma conquista que não seja mortal, mas que se transfigure e seja um amor eterno. É na negatividade finita que ganhar a afirmação infinita. Se a tragédia do Pai apontou para a tragédia e a culpa, Regina deu-lhe a possibilidade de redenção. Foi o amor de Regina que lhe revelou a via que determinou seguir dali em diante. Mas o jovem Regina, de algum modo, mesmo contra todas as evidências, entendia melhor do que o filósofo julgava, por isso, mostrou uma resistência que Soren não contava e o obrigou a mostrar-lhe uma crueldade que era o contrário do que sentia e que tanto lhe causava um sofrimento quase impossível de vencer. O sofrimento para o cavaleiro da fé vem de ter de ser solitário, no meio das gentes, de passar para o plano religioso, o social, o político e o histórico. Aquele individuo que temos, hedonista que vive para o prazer e para o consumo de tudo e de si, é a antítese de o indivíduo que escolhe viver como é preciso no mundo como estava e sentir que está no mundo inteiro, só em face de Deus.
O paradoxo e o absurdo do rompimento estão em ambos saberem do afeto do outro e disporem desse mesmo afeto para se manterem unidos mesmo que se separassem. O filósofo chega a escrever no seu testamento palavras bem reveladoras da sua intenção:” Desejo exprimir que, para mim, o noivado tiveram uma fora de obrigação igual à de um casamento de modo que alcançar tudo o que tenho regressa a ela, como se me tivesse casado.” Gusdorf tem a perfeita intuição da vontade do filósofo quando escreve:
“Através da ligação com Regina, Kierkegaard encontrou-se a si mesmo. Regina foi sua na breve felicidade do noivado, mas perdeu-a com o rompimento, aos olhos dos homens. Mas para a eternidade, Kierkegaard alcança-a para sempre.[1]” (Tradução adaptada nossa p. 45 )
Por mais curioso que possa parecer foram ambos sempre fiéis um ao outro. Em vez do casamento, da vida conjugar e da partilha, será pela negatividade que este afeto se torna imortal. Este é um dos paradoxos que domina o afeto entre ambos. A maldição que seu pai lhe sentenciara, sentia-a agora mais forte ainda e considera esta uma repetição da predestinação da culpa. O filósofo, no fundo da sua alma, adivinha o seu destino a desenhar-se e é pelo amor humano que depois passa para o amor Divino.
Daí o tema de essa passagem toca-o tão profundamente que o leva a escrever “O Diário de um sedutor” em que descreve magistralmente o seu estádio que busca desgostar a jovem Cordélia, que não é mais do que Regina a quem deseja que renuncie, mas deixa sempre presente, com subtileza ou não, a certeza de que a ama. A teia que existe queria o filósofo que ela a cortasse. Mas nunca terá resposta desejada. Em ano incerto, escreve, enquanto espera que Regina passe na rua. “O Diário de um sedutor":
“a alma tensa como um arco, e os meus pensamentos prontos para o voo como as flechas num carcás ( … ) Quanta força, quanta saúde e alegria na minha alma (…) A natureza tinha-a feio bela. Eu to agradeço, ó Natureza prodigiosa (…) a sua evolução é obra minha. Em breve colherei a recompensa – Quanto não acumulei para este momento? Morte e danação se dele fosse provado! Mas eis que ela pode aparecer e (…)
“ Ide depressa, rebentem os cavalos se necessário for, mas nunc[K1] a um segundo antes da sua chegada[2].
É transparente que Kierkegaard sabe que vai ser lido pela noiva, se bem que com todos os pseudónimos, a subjetividade e a sedução são amargamente vividas, ora com ironia, ora com a insinuação de que o afeto nunca morre.
O rompimento do noivado não é um fim mas um começo. De agora em diante, Regina estará sempre nos seus escritos e, na verdade, o que acontece é que ela é o tema, o cenário e a presença em tudo o que escreve e revela. Descobre-se na sua escrita que dialoga com ela, revive de todos os modos a sua relação com a sua jovem noiva. E consegue isso de um modo estético, ético e religioso. Os temas serão literários, teológicos e místicos que exaltam qualquer mulher. Consegue manifestar como é a mulher quem, de mil modos, pode ser a intermediária e a força para um diálogo com Deus.
Figura 8 - Retrato de Regina Olsen a imortal amada feliz de um amor infeliz, segundo Kierkegaard.
Não podemos conhecer Regina senão através de Kierkegaard, o que se torna as bases do seu entendimento pouco sólidas e bem subjetivas. A psicologia de uma mulher, quando não se fala da mulher em geral, mas de uma só, é muito complexa de explicar e impossível de definir. No geral, os tipos podem surgir e até ajudam a entender o particular, mas uma “única” é como quando se passe de um indivíduo para “O indivíduo”, na sua unicidade que transporta um universo inteiro.
Se isso é um obstáculo para a entender, devesse isso a capacidade ou inabilidade de qualquer filósofo de apreender o comportamento feminino, o seu mundo, bem diferente do masculino e a subjetividade em que vive o homem tende a abarca muito mais do que uma única mulher. Curiosamente, qualquer pensador ao referir-se ao mundo objetivo do homem e à sua ação no social coloca na sombra a figura da mulher.
Há temas em que desdobra a psicologia feminina e os pseudónimos que usa, os pretensos diálogos como acontece em “O Banquete” mostram a profundidade das análises. O tema da moda demonstra uma compreensão antecipada de uma indústria cultural que vai alienar ainda mais a mulher. O círculo do consumismo desenha-se já com certa clareza, pela humorismo caustico do alfaiate. Todavia, Kierkegaard separa a condição humana colocando o homem no domínio do absoluto e a mulher no domínio do relativo. Esta desproporção constitui precisamente o sentido de humor que entra no mundo com a mulher porque o risco de tomar a mulher a sério, causa dificuldades intransponíveis ao homem. Ora, como mulher que lê as palavras do filósofo, tenho na mão a hipótese de refutar a impossibilidade de ter esse acesso pessoal ao absoluto. Há muitos casos de femininos em que através do espaço e do tempo em que a mulher foi “O individuo” pela sua busca do Absoluto. E a renúncia ao matrimónio por motivos de atingir uma categoria de fé refletida também surge. É um risco que a solidão torna perigoso e duro de suportar, mas a mulher sabe com o homem como a interiorização da verdadeira fé uma luta muito dolorosa e que pode parecer estar a cada passo mais distante do Eterno.
A ação que o homem sempre deseja é voltar ao estádio ético, O aperfeiçoamento da alma, tanto do homem como da mulher é de intenso sofrimento. Um combate interior que não se pode entender, mas pode existir no mais comum dos homens ou das mulheres, sem que nenhum sinal exterior apareça.
O homem depende inicialmente sempre da mulher e a mulher pode nunca depender do homem. A essência feminina para além do gracejo e da jovialidade com que tantas vezes Kierkegaard descreve a mulher, possui por si mesma a capacidade de se relacionar com o Eterno. A capacidade de atingir o estádio religioso, de se interiorizar até estar perante o Absoluto não é privilégio masculino. Se Kierkegaard consegue quebrar o sistema hegeliano[3] e de ser contra todos os sistemas filosóficos, a mulher, pela sua faceta de lidar com o prático está aberta a uma existência contra toda a abstração e por isso torna-se incapaz de se reduzir à lógica.
Se Kierkegaard critica Hegel por ter abolido a contradição, a mulher pode ser a prova existencial de quem vive em constante contradição, numa dialética entre o pathos do sentimento e a responsabilidade lógica do social. A forma crítica de examinar Hegel é facilmente entendida pelo feminino que Kierkegaard, tanta vez, refere apenas como se vivesse só no nível do jocoso e do gracejo. O cómico na mulher e muito mais o seu uso da ironia manifestam-se como fragmentos de uma existência que se multiplica por muitos papéis, mas com a presença da mesma essência.
Figura 9 - Uma obra em que Abraão serve de modelo para uma reflexão autobiográfica
A belíssima obra “Temor e tremor” coloca o absurdo da esperança depois da resignação infinita. Espelha toda a autobiografia kierkegaardiana numa profunda análise que já não só é a prova de Abraão e de Isaac mas muito mais a sua renúncia à mulher amada. Admirando toda a beleza literária e a profundidade que atinge esta obra, a questão que se põe agora, quanto ao que se refere à realidade, é
Poderia ter sido escrita, adaptada aos seus respetivos moldes por uma mulher?
Figura 10 - Até que ponto a Mulher, na sua solidão muito própria, não atinge o estádio mais alto da fé para além do desespero?
Repare-se que como o indivíduo, Kierkegaard coloca-se no cerna da sua existência e Regina, tal qual Isaac, é sacrificada sem ter consciência da tragédia que causa e os dois seriam imolados por uma prova do amor a Deus. Se uma mulher estivesse no lugar de Abraão, ou ainda no lugar de uma noiva que renuncia ao futuro marido, pode pensar que esse abandono torna o afeto ainda mais vivo e verdadeiro. A renúncia no feminino traz a profunda compreensão de não submeter o afeto às provas da rotina e do desgaste no tempo. Se não o submete, nem a si mesma, no risco da perda da idealidade, a tragédia exige que se cale, tal como exigiu a Abraão. A rotina e a temporalidade vivida a dois são tão arriscadas para a mulher como para o homem. Possivelmente, ainda mais arriscadas para a mulher pois os seus papéis envolvem muito mais uma quotidianidade opressora e rotineira, com o hábito a tornar monótona cada madrugada de sol ridente mas que lhe rouba e a mergulha de imediato no ritmo mais rotineiro da vida, dos cuidados dos filhos e da casa.
Se a renúncia for apenas isso ainda não atingiria a mulher com toda a sua positividade, pois era a negatividade que nela era mais forte. O problema da renúncia a qualquer amor humano, para além de todo o desespero, também pode ser feminino?
A mulher, que se nega à maternidade, pode parecer monstruosa, ou de tal espiritualidade que renuncia a esse afeto tão próprio da mulher, mas que pela fé e pela confiança em Deus traduzem numa negatividade que lhe traz a positividade no estádio religioso. A perfeita solidão e a oposição à multidão, é também um desafio à cristandade que Kierkegaard define como “completa ilusão”.
Nessa época a Dinamarca tinha uma população cristã, mas o escândalo que o teólogo proclama é que não passa de “mentira” pois a multidão não vive nem imita a figura de Cristo. No estádio religioso não há uma proximidade com Deus pois está face a face com Deus, mas o homem tem de estar ciente do abismo que separa ambos pela completa diferença entre a pessoa que pensa e Deus que não existe, é eterno. No estádio religioso, a categoria o define é o sofrimento tal como no estético era pelo prazer e no ético regia-se pelo dever. Assim se pode entender o sofrimento e a incerteza da fé, no silêncio de um claustro onde o pecado também surge pois com o ser humano entrou no mundo. A imperfeição aparece muito mais visível e forte na solidão e no silêncio do que no caos da multidão surda a tudo o que não seja o prazer.
Sara, a mulher de Abraão, mãe de Isaac, não foi a escolhida para a prova que Deus obrigou o marido a suportar. Compreende-se que uma obra escrita por homens assim determine. Mas a mulher, que dá à luz o filho, não tem um desafio trágico porque o afeto é sensível e inteligível na sua essência? Então, o elogio que se dá a Abraão, ainda seria maior se fosse dado à mulher? A sua fé em Deus teria de ser ainda maior e não vacilar, nem pedir ajuda à sua volta . A mulher tem, pela sua natureza, a possibilidade da maternidade e a idealidade, face à realidade do dia-a-dia de cuidar das crianças, sem poder ter tempo para reflexões. Cada instante rouba muito do que, para o homem que não se ocupa de tais tarefas, seria uma das formas de beleza da existência. A rotina é inimiga do novo e, pela força do hábito que tudo ensombrece, com a pressa, e a necessidade de aceitar cada momento, a mulher pouco consegue vislumbrar essa maternidade serena e tranquila que se vê em tantos quadros, mas são equívocos face ao devir de um real em que a paragem não existe.
O momento do desafio para uma mulher a quem Deus pedisse o sacrifício do filho é de incomensurável dor e está com razão e direito ao lado do Pai da fé. Além de não falar, a sua conduta seria rejeitada por todos com horror e desprezo, correndo o risco da sua salvação diante do Absoluto não ter justificação. A prova que Deus lhe pede condena-a mesmo que seja fiel porque no geral sofre a condenação e a solidão para todo o sempre e entre o afeto “natural” ao filho surge o afeto sobrenatural ao Absoluto. Porém, o paradoxo da fé, levada ao seu extremo, tem de se manifestar numa total confiança em Deus e resignação infinita que a mulher consegue.
Seria no âmago da sua positividade que levaria o filho até ao monte, mas abrindo a porta a uma esperança que tanto pode nascer no coração do homem como da mulher.O desespero da condição humana retira-lhe qualquer racionalidade. Para os leitores, tanto Isaac como Regina foram meios de atingir o estádio religioso. O que parece em ambos os casos de negativo e fruto de subterfúgio humano é pensar em Deus, como Senhor de todos os possíveis, possibilita a fé que crê para além do desespero. É a mesma que não crê até ao último instante, na exigência divina porque tem infinita confiança em Deus. O salto do religioso não tem esclarecimentos ocultos nem hesitações. É um salto no escuro, sem certeza de nada, que a condição humana exige na existência mais comum a todos.
Figura 11 - A fé no estádio religioso é um salto no abismo e acreditar no Eterno
Deste modo, Kierkegaard retorna à noiva tudo o que esta lhe deu, e transforma-se no mais original existencialista, num dos maiores escritores de toda a Dinamarca e uma voz nova na filosofia e na teologia reformista. Sacrifica Regina negativamente e a si mesmo positivamente pois escreve tumultuosamente até à exaustão e morte numa exigência de testemunhar a fé contra toda a esperança, ultrapassando talvez o desespero mas nunca seguro de nada. “Diante de Deus o homem nunca se justifica nem tem certeza.”
Será este o filósofo para quem a ausência feminina é o absurdo da presença, A causa misteriosa da quebra do compromisso de Sören tornou-se um assunto muito debatido por diversos correntes que não veem que há um drama intenso pois, como escreve um dos comentadores, Mariano Fazio[4], acerca de um livro que evoca, “Um caminho no bosque” esse bosque não tem caminhos, avança-se de acordo com o que se já conhece sabendo o que se quer procurar. Fazio tem a bússola do cristianismo católico e toda a sua obra mostra o modo como pode ser interpretado. Tornou-se no mestre de Heidegger, de Camus e de Sartre. O teólogo Karl Barth mostra grande influência sua, bem com Chestov e Unamuno. A obra do cineasta e dramaturgo, Ingmar Bergman, também expressa que não ficou indiferente à angustia existencial, às interrogações sobre o sentido das escolhas e do desespero.
Crentes e não crentes encontraram uma fonte de múltiplos sentidos para a escolha, a liberdade ou o absurdo. Nada justiça a verdade que remete o homem para o Nada, a injustificação humana num mundo caótico que leva a procurar sempre mais além qualquer resposta, um absurdo ou paradoxo. O Nada ou então a estrada que leva ao desespero. O homem não justifica a Verdade, esta é que pode justificá-lo.
Por outro caminho entrou a investigar o escritor católico Regis Jolivet[5] que estuda Kierkegaard centrando-se no método de vida e não numa doutrina filosófica especulativa. Encontra as contradições que tal facto implica pois a obra contradiz o autor. O próprio Kierkegaard dava-se conta disso e censurava-se porque, se escreve, “passa para o plano do conceito e do sistema e, consequentemente para o campo da abstração e da generalidade.” Deste facto, Jolivet retira a conclusão de que “caberá melhor a designação de método existencial do que filosofia existencial, a não ser que consideremos a filosofia como sendo apenas uma forma ou instrumento do método, um meio entre outros e não um fim – porque tudo se refere à prática e à vida.”
O pensamento de Kierkegaard é tão acutilante que afasta os leitores habituados a suaves ou jocosas frases dos bem pensantes de cada época. Não oferece certezas. Rejeita violentamente o hedonismo, as multidões sedentas de prazer, exige a solidão interior, a aceitação do sofrimento que não se pode evitar. Nega o dever de gozar a vida, sempre n presente, no imediato e exterior. A busca do prazer a cada instante leva ao desespero pois a imediatez é já uma angústia de o perder.
No fundo, o conjunto da obra, pretende captar o singular no universal porque é na subjetividade de cada um que se realiza, é sempre uma paradoxo e contradição pois escrevendo é inevitável, passar para o conceito e para o abstrato. “A existência concreta” não é a de toda a gente, é singular e perde o sentido no geral ou universal em que toda a escrita se transforma. Assim, resulta para Jolivet “que não existimos para filosofar mas filosofamos para existir.”
Já bem antes, Kant, face ao problema de Abraão, não consegue resolvê-lo, com a sua religião pietista e toda a racionalidade da razão prática. Evitando uma longa explicação e reflexões racionais que não pode adotar, Kant conclui que o Pai da Fé, depois de ouvir a voz de Deus, não aceita que seja Deus. Negando as palavras bíblicas, numa interpretação pessoal e livre escreveu: “É muito certo que eu não devo matar o meu bom filho, mas eu não estou cero de que tu sejas Deus, tu que me apareces, nem poderia vir a ficar com tal certeza”:[6]
Figura 12 - Quadro do pintor Rembrandt.
A fé de Abraão levou-o para lá da moral numa experiência a sós entre Deus e o individuo.
Se entrarmos sem ter dados, nem a bússola que Regina nos dá, nem sequer a podermos ver, nem descobrir que Kierkegaard sendo um filósofo masculino, escreve para o feminino, como nenhum outro o fez ou nem sequer tentou. Vivem separados e juntos numa condição humana rara mas que ora se digladia, ora se completa. As obras de Kierkegaard são tão fiéis a Regina como dirigidas a Deus. Espera, para além do desespero, recuperá-la na Eternidade. A angústia e o desespero, de não saber se a sua confiança em Deus se realizará, é o sentido da fé. Na solidão entre o humano e o Eterno, sem qualquer prova, espera o impossível numa confiança sem limites. Neste estádio, só o absurdo suporta o desafio e consegue ir até ao fim. V
Verificamos que temos muitos caminhos para entrar no bosque da sua escrita tão contraditória, na aparência, mas que dado ser o singular e o indivíduo não pode mostrar a vida como sistema, mas o sistema para a vida. Isso implica que cada um seja interpelado como um eu que se desdobra na temporalidade.A possibilidade era o remédio ou a evasão para o prazer e a busca carnal, de riquezas, honrarias e tudo o que possa ter mas para deixar de ser. O desespero do ter, do que fica para trás, esvazia os projetos do ser existencial. O vazio do ser, manifesta-se no desespero do ter, que fica para trás, até esgotar as possibilidades de escolha.Tal como D. Juan da ópera de Mozart, que tanto fascinou o filósofo, o esteta não controla o tempo, nem a si mesmo nem o “objeto de sedução”. Os prazeres do passado reduzem o presente a uma ilusão, cada vez mais a eternidade prende o instante e o esteta petrifica-se, tal como na ópera, é arrastado às penas infernais.
Figura13 - Quadro de Fragonard.
A morte de D. Juan é o desespero que o petrifica O não ser é o que resta do instante.
A alternativa ainda realizava uma dialética no tempo só que a temporalidade humana é finita e as alternativas das escolhas são infinitas. Quando a porta se fecha a qualquer esperança, só resta o desespero mortal. O tema da liberdade existencial é sempre premente, pois a condição humana é incessantemente posta à prova. A angústia da escolha é a fatalidade que mostra a “doença” que não leva senão ao tédio e à morte, o desespero já se oculta na escolha do prazer que conduz à exterioridade à perda e ruina de se dissipar no tempo. A sociedade de hoje vive tal qual em “O desespero humano” A doença mortal, com a máscara da alegria e do prazer. A filosofia kierkegaardiana rejeita a moral da sociedade pois nela o homem se perde na multidão. O risco da ética comum a todos é o abstrato. A vida no estádio ético é vista por Kierkegaard através do matrimónio.
Se no estádio ético, a essência do prazer estético no que tem de superior se salva, este estádio tem por base a ação e torna-se mais elevado do que o anterior, o estético, porque não se reduz ao instante, é já viver a eternidade no tempo. Mas a multidão regula-se pelo geral e pelo que é comum e por isso todos correm o risco da despersonalização, de se tornar passivo e, se não vir a felicidade que a sua atividade traduz, o ético desespera.Através do matrimónio que é este estádio ético, analisa o amor humano e surgem páginas sobre a possível emancipação da mulher que têm uma estranha intemporalidade, tudo pontilhado por poesia e uma subtil ironia.Assusta-o pensar que a mulher possa ficar no estádio estético, o que hoje é comum. Também se pode ver que a sedução, já abordada em “O Banquete” traria, o que na época só se podia supor, uma emancipação feminina que o filósofo só aborda ligeiramente. Afinal a mulher, na sua feminilidade sedutora, entre o sim e o não de um noivado, é bem mais alegre, sem nenhum desgosto ou tarefa que a aborreça, com a missão de se enfeitar e cuidar da sua aparência para que ainda consiga aumentar o enamoramento, Se aprender a viver num tempo em que domina o homem, é ela quem submete o homem e este quem lhe obedece a todos os seus caprichos, a mulher pode descobrir que não quer o matrimónio. Esta descoberta tornaria, uma mulher emancipada, em alguém que Kierkegaard não consegue dar uma categoria. Mas esta questão ficou em aberto é já algo que o sexo feminino tenta resolver e nem sempre com a melhor solução.
Em “O banquete” já no final da obra, a mulher do assessor da justiça interroga o marido acerca do casamento ter alterado as possibilidades da sua carreira. Coloca a hipótese de que, se tivesse ficado solteiro, teria sido mais proveitosa. [7] O assessor evita a resposta com um sinal de afeto. Afinal o amor no casamento é uma forma superior que não há no estádio estético pois a sua moral interior surge no privado e o homem público segue o geral.. Em “A Estética do Matrimónio” pretende demonstrar a superioridade do casamento que salva o que de melhor existia no estádio anterior, a interioridade que vai surgir na ética. Aqui o imediato deixa de ser a constante busca do prazer, mas a estabilidade de uma vida pautada pelo dever. Um dever geral e abstrato, tal como Kant o apontava na sua “Razão prática”, tanto na exterioridade e principalmente na interioridade. Como o puro dever é um princípio geral e abstrato, este é agora o risco deste estádio.“A ética é a tentação” e a cristandade é mentira pois não encontramos aí a imitação de Cristo. A ética não salva porque a massa não conhece a verdade, os indivíduos imitam-se e realizam-se no geral numa passividade que lhes retira a autenticidade. O herói deste estádio é, para Kierkegaard, o homem casado. O amor no casamento cristão assume características que Kierkegaard refuta no que diz respeito à mulher. As palavras com que a instituição da Igreja acolhe a nova esposa são decididamente contraditórias. A jovem deve assumir que é pecadora por mais virtudes que tenha e obedecer fielmente ao marido. Face a isto Kierkegaard interroga-se:” (…) eu devo mandar e ela obedecer. E se eu não quiser mandar, se me sentir indigno disso? Não, pelo contrário, quero obedecer-lhe: um gesto seu é uma ordem. (…) Mas a mulher é humilde e nenhuma pensou em escandalizar-se com as rudes palavras que a Igreja lhe dirige.”[8]
Que faria porém uma mulher emancipada? A resposta revela que Kierkegaard tem a noção de uma positividade feminina que é livre por si mesma porque liga de imediato a liberdade à necessidade. Não aceita que o homem precise do casamento somente para ter filhos, fugir á solidão ou como “escola de carácter”, mas sim que é a mulher quem torna o homem livre. Os solteiros “ são escravos dos seus caprichos”. Vivem dissipando o tempo enquanto no casamento a tarefa é conjugar o singular com o universal, a sua interioridade salva o que de superior existia no estético.
Este estádio descobre o sentido da vida, a sua beleza, o seu valor e certeza. Todavia, em certos aspetos, o ético é deficiente. A tendência para o geral favorece a rotina e o hábito instala-se, torna a passividade um risco, e o ético passa a confundir-se com a multidão. Assim este estádio devia ser só de passagem. O ético passa a ser a tentação e a necessidade de passar para o estádio religioso. Aí, o individuo coloca-se para além do racional, do geral e assume-se como um absurdo face ao paradoxo da fé. Esta não tem fundamentos e é a categoria em que a individualidade seja homem ou mulher, está a sós com Deus. “Não há nenhuma possibilidade de ir além da fé. Esta é o salto no escuro, diante da grandeza do Eterno a fé é o contrário do pecado. Só a consciência de estar diante de Deus a sós com o Eu infinito torna o finito capaz de ter coragem de assumir o desespero que salva. A fé torna-se “uma segura boia” que pode “mergulhar em Deus através da sua própria transparência”.
Esse estádio religioso caracteriza a caminhada de Abraão para o monte Morija e não se trata de colocar a virtude contra o pecado, mas aceitar que a fé é o único meio de não pecar. Até que ponto, o ser humano consegue viver a fé de Abraão é o desafio que se coloca a cada um.
Tereza de Jesus, ou Tereza de Calcutá sofreram a sua “noite escura”. Ambas deixaram de crer no fim da vida. A multidão procura ver a santidade na exterioridade e o milagre que espanta e cria um estado que não tem nada a ver com a verdadeira fé. A prova do absurdo da fé não tem visibilidade nem pode atrair as massas. É por isso que esta faceta da grandeza de Terezinha de Jesus ou Teresa de Calcutá fica na obscuridade e não causa a admiração ou o entusiasmo das multidões que querem o ruidoso, o maravilhoso da exterioridade e fogem da máxima interioridade que é o salto do escuro de uma fé sem sustentabilidade alguma. Esta está para além do seu entendimento quando atinge o absurdo. Kierkegaard sabe que nada justifica a fé e a possibilidade só existe do lado de Deus.Todos os possíveis estão apenas em Deus, no Eterno para o qual não há impossíveis. Por isso, contra toda a lógica, no absurdo e paradoxal Abraão confiou no Senhor, como Kierkegaard em relação a Regina. A fé é a categoria existencial que se instala contra a razão. A fé é da esfera do risco absoluto.
Deus é o desafio desse salto no escuro. Nada se sabe sobre Deus, nem nenhuma investigação é viável. Para Kierkegaard, Deus é “ a diferença absoluta” face ao homem.
Figura 14 - Foi sem parar de publicar e de dialogar espiritualmente com Regina que Kierkegaard passou os seus últimos anos
Esta é a via religiosa que o filósofo queria ardentemente testemunhar. Os poucos anos que viveu foram de uma escrita constante, para edificar, provocar a falsa cristandade, acordar a cristandade. Passou pelas maiores desentendimentos, como o caso do Jornal “O Corsário”, foi caricaturado, incompreendido, até ficar só, cair desmaiado de fadiga numa rua de Copenhague e morrer quase abandonado num hospital. Repare-se que os grandes heróis ou o mais comum dos mortais podem viver uma odisseia só por viverem pela Fé. A grandeza esconde-se no mais humilde dos homens, seja o patriarca Abraão, um filósofo, um mercador, ou um varredor de rua.
Figura 15 - Hospital Frederich, onde faleceu Kierkegaard, no dia 11de Novembro de 1855
Se bem que tenha criado a corrente do existencialismo e colocado os problemas mais candentes da nossa época, Kierkegaard é incompreendido, um filósofo contra os filósofos. Não tem sistema pois é contra os sistemas, trata sim de temas existenciais, a liberdade, a angústia, o absurdo, a ironia socrática, o pecado, a dor, o prazer, a escravidão da moda, da tentação do mundo, das suas honrarias e pompas.
O homem comum vive num caos de escolhas, no turbilhão da exterioridade, na instabilidade, nos seus caprichos mas o prazer é sempre incompleto e tudo o que não alcança mostra a sua tragédia. A faceta da sedução da sociedade consumista, de experimentar todas as formas de prazer são aquelas que Kierkegaard condena e que reinam no social. A “doença mortal”, um desespero diferente daquele que salva pela fé. O esteta ao procurar o prazer, porém cada vez lhe é mais difícil de o sentir pois o tempo joga contra ele e não atinge a felicidade. Há que escolher de novo e assim, em “O Conceito de Angústia”, estuda a unidade e da necessidade na História que se refletem no homem como nunca antes aconteceu. Através o pseudónimo que usa para escrever esta obra, Virgilius Haufniensis, toma um tom direto e pedagógico. Qualquer pessoa entende o que é o pecado e como entrou no mundo, muito melhor do que recordando a figura de Adão e através de outros, através de si mesmo.
Figura 16 - Ninguém escapa à angústia quando medita nas suas possibilidades existenciais
As possibilidades da existência criam a angústia existencial que tem sido tão incompreendida. Muito do que o filósofo escreveu foi transcrito fora do seu contexto e assim, ficamos limitados ao entendimento global do seu pensamento. Muitos dos problemas que Kierkegaard coloca acerca do sentimento da angústia, da responsabilidade e do desespero são sempre atuais. No possível, tudo era possível, mas o ”impossível” pertence a Deus. O homem gasta as possibilidades e em “Doença para a Morte”, esse é o momento em que o abismo devora o eu. A possibilidade era o remédio na evasão no prazer e a sua busca carnal, de riquezas, honrarias ou tudo o que possa ter mas esvazia o ser.
A ironia e o humor são estádios intermédios de quem vive sem se decidir. Será ver a vida como um espetáculo, sem risco, nem comprometimento. Em nenhum dos três estádios, o indivíduo pode estar seguro. Tanto pode subir como de repente cair de novo e assim a vida é uma viagem insegura em que cada vivência causa maior espiritualidade ou desce para uma forma mais mundana. Daí que as obras em Kierkegaard mais mostra ironia ou sentido de humor, é porque não há nenhuma escolha e limita-se, em parte, em mostrar a sociedade conforme a reflete sem deixar de lado o riso que desconcerta o leitor. Serão raros os filósofos com obras assim, em que cada uma delas capta um ângulo da existência de modo diferente e até oposto. A questão religiosa centra-se entre o Indivíduo e Deus, na solidão de cada consciência.
É tão possível como impossível negar porque Dele nada se sabe.
Figura 17 - A figura de Abraão em "Temor e tremor" atinge a grandeza da fé para além da filosofia, é a esperança do Homem
Com Abraão deu-se o salto no desconhecido, na fé sem apoio, um regresso à resignação infinita. Para ir além, sempre mais além, no desespero, no absurdo do cavaleiro da fé” e esperar que do desespero nasça a infinita esperança. Em “Migalhas filosóficas”, escreve, sob o pseudónimo de Johanne Climacus: “A perspetiva da autenticidade cristã está aberta, mas passa pela porta estreita do paradoxo”.
O conceito do paradoxo é o mais usado pelo filósofo. Assim coloca-se em alternativa à verdade que o mestre ensina ao discípulo, refutando o socratismo. Em alternativa refere que um rei que queira elevar uma jovem do campo, se a retirar da sua cabana, do seu lugar e a vestir de elegantes vestes e lhe ensinar o comportamento da corte, não a traz à verdade. Ela teria de se esquecer de si mesma e do seu ambiente. Isso mostra a imperfeição deste amor. Deus não necessita de ninguém, age e faz mover, como escrevia Aristóteles, na sua perfeição. Ora no cristianismo, o paradoxo está na entrada de Deus no mundo. O paradoxo do eterno e a sua união ao temporal, está presente no estádio ético mas atinge o paradoxo absoluto na presença de Cristo na terra, na fé num filho de carpinteiro que proclama ser a verdade e é aí que se centra o paradoxo que retira todo o racional ao discurso aparentemente racional de Kierkegaard. O paradoxo absoluto está no interior do indivíduo que o reconhece na História e o reflete em si, no seu interior, face a face com o seu destino.
Se há uma linha que se pode encontrar na multiplicidade da antropologia kierkegaardiana é o paradoxo. A sua luta é constantemente, tal como o seu nome em línguas da Escandinávia o de um filho de Odin, o deus supremo das mitologias a quem seu pai deu um martelo mágico. Thor é o significado de Soren, nome pouco apropriado para dar a uma criança por um pai cristão. Se é desígnio oculto do pai, ou simples coincidência, é o nome de um guerreiro, que se transformará na vida e obra no “cavaleiro da fé”. A sua luta é no seio de um povo cristão lutando por causar escândalo pela sua moral passiva e a sua conformidade com o geral. É uma luta que quer transformar cada individuo em verdade interior.
Todavia a luta contra a razão, com o uso da lógica para aceitar a fé é um constante paradoxo. Desde os estádios que assume ou descreve até à ironia da análise social, o que resta, ou melhor, a grande questão, é o apelo ao salto no abismo da fé. Crer no paradoxo é uma questão íntima, a que se pode considerar o cerne dos seus escritos. O nó górdio da vida do homem em que o martelo de Thor não se cansou de bater, é a racionalidade da cristandade, da vida e da condição humana.
Resta a interrogação acerca do destino de Isaac, o filho designado para o sacrifício e Regina, que resignou a um rompimento que lhe deu um sofrimento e ameaça de suicídio e até conseguiu que Kierkegaard hesitasse.
A incompreensão da família contribuiu para Regina seguir uma vida que se diz que foi tranquila, com um casamento com um seu professor, mais velho 6 anos, Frederick Schlegel, em 1847, com o qual partiu para longe de Copenhaga, para as Índias Ocidentais dinamarquesas, onde o marido obteve o cargo de Governador. Se a perplexidade de Isaac terminou sem dúvidas e só pode ter aumentado a sua fé em Deus, ao descer de novo com Abraão do monte Morija, não podemos dizer o mesmo de Regina. Durante a sua vida, foi conhecendo a obra de Kierkegaard e, possivelmente ninguém como ela pode entender o absurdo e o sofrimento do seu antigo noivo. Este quis que fosse sua testamenteira, o que Schlegel não autorizou.
Não pode evitar que uma ligação espiritual entre ambos, mantida por todas as referências que Kierkegaard, fez á Mulher e ao diálogo que, pela primeira vez, trouxe o sexo feminino à cena, tornando a complementaridade do masculino, a negatividade da vida na sua positividade para o Eterno.
Figura 18 - Caricatura da época de Kierkegaard .
Regina transporta o filósofo para outro estádio superior.
Ambos foram meios para atingir um salto num estádio superior. O salto para viver da fé obriga ao sacrifício, mas se Isac saiu ileso, a mulher, Regina, representa espiritualmente a felicidade do estádio ético que Kierkegaard muito valoriza. Assim surge em “A estética do Matrimónio” a ação positiva que, se superar a tentação do conformismo, interioriza o dever e pode viver feliz. Trata-se de um estranho paradoxo e conflito a que Kierkegaard submete a noiva. O casamento com outro e a perda terrena de Regina, só pode ter levado Kierkegaard a considerar que Deus aceita o seu sacrifício. Resta no silêncio o que se passava no coração da jovem Regina e o sentido do seu destino é a última interrogação que nunca teremos resposta. Mestre exímio da dialética, da espiritualidade, tomou a via do reformador e do profeta e deu a vida pela verdade.
As contradições que se podem encontrar na obra deste filósofo são aquelas que mostram a condição humana no mundo. Tudo está em contradição e o escândalo do filósofo é estar contra o escândalo, é afirmar que o prazer acaba no desespero, é ser cristão contra a instituição religiosa, é negar a verdade como ganha-pão. Kierkegaard quer a verdade na rua, em cada um e nunca no geral, denunciar as imposturas, tenta tornar novamente o cristianismo em escândalo.
Hoje como ontem os profetas clamam no deserto.
NOTAS:
[1] Gusdorf, Georges, Kierkegaard, 1963, Ed. Seghers, Col Philosophes de tous les temps, nº. 5, Paris.
[2]Kierkegaard, Soren, Diário de um sedutor, 1971,Editora Presença, Col Clássicos,,,pp, 189-191
[3] Kierkegaard, Soren, Post-Scriptum aux Miettles Philosophiques, 1949. Galimard, Paris, pp.47-50, e 207.
[4] Fazio, Mariano, Una Senda en el Bosque, Guía del pensamiento de Kierkegaard, 2002, Edición digital Arvo Net en línea.
[5] Jolivet, Regis, As doutrinas existencialistas, Edição Livraria Tavares Martins, Coleção Filosofia e Religião, 3ª edição 1961, Porto, pp.55-63.
[6] Kant, E. Les conflits des Facultés, 1973, Vrin Paris, p. 73. .
[7] Kierkegaard, Soren, O Banquete, 1973, Guimarães Editores, Coleção Filosofia e Ensaios, Lisboa, 3ª Edição pp. 175 e segts
[8] Kierkegaard, Soren," A Estética do Matrimónio ” s/d, Editorial Presença. Lda. Lisboa pp 90-99..
© Lúcia Costa Melo Simas (Texto) - Regressar a " Os "Trabalhos e Dias" "
© Colaboração na concepção da página - Levi Malho.
Actualizado em 16. Novembro. 2013
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