"Torre de Babel. A porta"

  • Em busca  do "Centro"

  • ©  Lúcia Costa Melo Simas

 

   

 

 

Antes da Criação

[ © Porto,flores de rododendro.Palacete antigo da zona do "Campo Alegre". Antiga Fac de Filosofia. 2004. ]

[ © Foto digital . Levi Malho]

 


 

 

EM BUSCA DO CENTRO

 

                   

 

Qualquer pessoa tem uma porta. Basta uma. Para entrar e sair. Quando se entra, estamos no que dizemos ser o «nosso espaço» mas subentende-se muito mais. É o nosso centro. É dali que estruturamos o «mundo» a que chamamos inapropriadamente nosso. Projectamos o resto da rua, o tracejado das praças, os passos que damos e pomos na nossa periferia os arredores que se prolongam até às estrelas ou até onde os nossos conhecimentos nos podem levar.
    Todos têm esse lugar como referência, quer seja numa enorme cidade, deserto ou terreola, e o nosso centro apenas um quarto ou uma enorme casa, precisamos de ter um ponto de apoio no nosso mundo centralizado em algo físico. Um centro que é um lar, uma segurança, um local que a mente precisa desesperadamente para raciocinar.
    Curiosamente, nas salas de cada país, se lá está um mapa, no centro está esse país, a Terra é plana, mas o país está mesmo no meio como «um» centro. Indispensável.
    A criança também parece que vive como num vale, com a sua lógica irreversível onde ela é o «objecto» central, o ponto de referência inicial e para lá dele, escondido pelos montes e montanhas está o mar e o mundo. Primeiro se vê no centro e ao perto. E isto é tão curioso que os velhos vêem bem ao longe e os jovens vêem bem ao perto, assim o observou Kierkegaard que mostrava como a experiência torna importante o longe e menos significativo o que está perto. Porém temos de perceber que é muito difícil ver ao longe e não apenas olhar!

«Dêem-me um ponto de apoio, levantarei o mundo

Entendemos muito bem o desejo tão sincero e profundo do sábio Arquimedes de querer encontrar um ponto, um ponto só lhe bastava, e se fosse sólido e firme, então todo o seu sistema poderia ser edificado. O mundo teria encontrado o tal centro e tudo seria seguro e harmónico!
    O problema de Arquimedes é também o nosso e é insolúvel. Há sempre um «se» primordial que faz com que a alavanca do sábio não fosse nunca erguida tal como ele sonhava! Seria ali o seu centro. E tê-lo-ia dado a todos nós.
        Segundo a tradição bíblica, durante muito tempo a ciência era uma só, e os homens que construíram a torre de Babel ainda não tinham sido confundidos por ordem do Senhor. É estranho que a torre não fosse destruída, já que tinha toda aquela ambição de subir até ao Céu, como no sonho da escada de Jacob por onde só os anjos podiam descer e subir. A tal não eram dignos os homens e a linguagem humana é que foi confundida, como se chegasse a hora da proibição da unidade do conhecimento através do entendimento humano.
    O sonho da linguagem universal não consegue realizar-se. Foram muitos os que procuraram essa linguagem, Nicolau de Cusa, Descartes, Leibniz, quer pela matemática, quer por outra forma queriam criar uma linguagem de entendimento universal.
    Porém é ainda a linguagem o grande segredo do homem na busca do centro. Quando Stephen Hawking na sua famosa obra “Uma Breve História do Tempo” cita ironicamente Wittgenstein por este dizer «A única tarefa que resta à filosofia é a análise da linguagem» acrescenta em tom de lamentação: Que queda para a grande tradição da filosofia desde Aristóteles a Kant». Porém já antes, Tobias Dantzig escrevera o livro “Número, a linguagem da ciência” em que coloca o problema da validade da nossa fé sem fundamento que existe oculta na experimentação e como se aceita a convicção de que a sua repetição amanhã será igual a ontem. A crença oculta-se por trás da mais lógica teoria e uma teoria como tal não são factos. É que o livro da Natureza e do Cosmos é interpretação, não é nem a natureza, nem o cosmos, e para interpretar a linguagem da ciência temos de usar os números. Wittgenstein tem algo de místico e de lógico. Quanto ao misticismo há um silêncio ou a sua vivência e a análise da linguagem abarca tudo o que se quiser comunicar, explicitar, elaborar. Por isso muito «resta» à filosofia.
    É a linguagem que dá corpo ao sonho. Este é tão grande e forte que, na «sonda» enviada para o espaço na hipotética busca de encontrar seres inteligentes, de qualquer modo semelhantes a nós, foi enviado, dentro desse explorador do espaço, uma série de objectos e sinais que se considerariam universais e tudo o que se podia pensar ser inteligível para seres imponderáveis, mas que teriam algo de comum com o humano que lhes permitisse entender-nos. Portanto a filosofia está presente na viagem para o espaço porque é a possibilidade de interpretar que permite sonhar um encontro.
     Inconscientemente está presente o sonho, possivelmente sempre ingénuo, de sermos um centro de conhecimentos que os outros, sejam eles quais forem ou existam, poderão ser capazes de entender. É partindo de uma certeza sem fundamento do que ainda se pensa ser o centro que se vai para a periferia dos céus. Todavia esta linguagem já nem é adequada a um Universo sem periferia porque não encontramos seu centro.
    Quando Tycho Brahe começou as suas notáveis observações sobre o céu, ainda o telescópio não tinha sido apontado para as estrelas. Os seus incansáveis trabalhos no “Castelo Celeste”, Uraniburg, na sua ilha Hven, foram os de uma “academia” de astrónomos e cientistas com grande entusiasmo e persistência mas ainda entre duas fronteiras na aceitação da imobilidade da Terra no centro do cosmos, palavra inventada por Pitágoras. Kepler juntou-se a eles, mas por muito pouco tempo pois Tycho Brahe faleceu no ano seguinte.
     Já antes porém, Copérnico começara a duvidar do geocentrismo, ponderando novas teses sobre toda a astronomia. Só depois, Galileu afirmou convictamente que a Terra também se movia à volta do Sol como os outros planetas.
     Destruía-se assim uma teoria com milhares de anos. Por causa disso, não houve nenhum terramoto, cataclismo ou alteração na Terra. As comunidades científicas, se é que nesses tempos se pode falar delas, trabalhavam sem que a preocupação de serem estritamente racionais as afligissem. Por estranho que pareça, preocupações com a alquimia e outros misteriosos estudos foram tão importantes para sábios como Giordano Bruno, Newton e tantos outros, mas a coexistência das crenças e do racional é de todos os tempos.
    A luta entre paradigmas é muito mais clara e distinta vista de fora e à distância de muitos anos. As descobertas não se coordenam entre si, por vezes até se pode afirmar que alguns cientistas chegaram ao mesmo tempo ou quase às mesmas descobertas e isso não os tornava mais generosos nem fraternos. O mesmo sucede ainda a toda a hora.
    O heliocentrismo veio substituir o geocentrismo mas nada mudou aparentemente no nosso planeta. Os homens continuaram como se nada tivesse acontecido e, pacatamente ou não, a sua vida continuou como que alheia ao desmoronar de toda uma concepção do Cosmos que deu lugar a nova teoria como se o lugar do Sol, da Terra e do homem em nada se alterasse.
    Uma mudança enorme que, todavia em nada tornava os homens, que usam acima de tudo o senso comum, mais observadores, ou científicos. Os simples mortais continuaram a guiar-se pelo Sol e pela Lua e nem a descoberta das manchas nesses astros, que aliás se podiam ver a olho nu, os preocupou.
    Por estranho que pareça, foi apenas por preconceito e aceitação de que o mundo supra lunar era perfeito, ideia que Aristóteles nos legou sem verificação pela experiência e baseado apenas no seu raciocínio, que os Ocidentais não descobriram as manchas na Lua, visto este facto ser do conhecimento dos chineses muitos séculos antes. Por isso nós só vemos o que estamos preparados para ver. Não acreditamos no que vemos, mas sim vemos o que acreditamos!
    Fala-se do dia dizendo que o Sol já nasceu, ou da noite que o Sol já se pôs, muito embora na verdade já muitos seres humanos saibam que estão enganados ao dizer isso.
    Galileu, na sua época, não enfrentava só a Igreja, enfrentava a força da inércia do centro. Da necessidade de ter um ponto de apoio sólido para organizar vidas e ideias. O que nos parece evidente tem muita força por muito que o conhecimento progrida. Isso não muda com uma nova teoria e a força do hábito e da inércia é muito superior a toda a mudança.
    Foi também Galileu que observou o movimento pendular do candelabro na Catedral, mas temos de pensar em todos os que o viram durante anos sem fim e não deram por nada! Deve ter sido um momento espantoso esse, em que Galileu compreendeu o que estava a ver! Tal como quando viu as manchas pelo telescópio, é-nos difícil imaginar a alegria e deslumbramento intelectual para quem viveu como ele, momentos únicos desses!
    Só podemos espantarmos e admirarmos o génio capaz de olhar, o que toda a gente via, mas ver de modo diferente e ter uma intuição única e repentina.
    Verificamos assim que nem as evidências são mesmo evidências, enquanto numa mente apta para tal, não cintila uma ideia nova, a descoberta de uma interpretação da realidade nunca antes pensada.
    É tão estranho que perante os nossos olhos as evidências se manifestem tão claramente depois de interpretarmos os dados mas não somos sensíveis a eles. Há toda uma preparação, que vem da infância, para ver o que sempre nos ensinaram que víssemos, que nos nega a subjectividade pessoal de nova proximidade com a realidade que julgamos com o senso comum e no qual nos fiamos a cada instante. Apesar disso, com os avanços das ciências, já nenhuma evidência nos é dada, mas é cada vez mais construída e reconstruída num contínuo movimento do conhecimento cada vez mais acelerado. Tudo se passa como se as ciências fossem para o micro e o macro cosmos e aí o risco de falhar as hipóteses ainda é maior. Todavia é o único meio de avançar das ciências!
    Longe vai o tempo em que se pensava na hipótese como ponto em que a filosofia e a ciência se encontravam. Agora, cada vez mais se podem encontrar em diálogos em que têm de ser irmãs, numa complementaridade em que até a Metafísica tem tendência a estar presente. Tudo se passa a um nível bem distante dos tempos antigos mas apenas com o contributo da filosofia brota a reflexão do cientista.
    Muito antes de tudo isto, Aristóteles ponderara já que a Terra era esférica pois observou os eclipses e os gregos viam como surgiam os barcos no horizonte. Também Aristarco de Samos, quase dois mil anos antes das teses de Copérnico, afirmava que era a Terra que se movia à volta do Sol.
    A sua teoria foi preterida, todo o paradigma afastado e Ptolomeu ganhou a sua causa. A sua obra, “Almagesto”, como era conhecido dos árabes ou “Composição Matemática”, como a intitulou, foi aceite e a Igreja tornou mais sólida ainda, havendo o célebre episódio bíblico de Josué que pediu ao Sol que parasse durante um dia para os judeus conseguirem vencer a batalha e tal facto foi tomado à letra. Todavia o facto do dia ter ou não ter sido mais longo, o que alguns cientistas procuraram provar com comparações e observações em outros locais de que, de facto, houve um dia estranhamente longo, podia ser aceite por uma mente mais aberta a novas interpretações que aliás eram tantas e bem variadas, Depois, apesar de todos os esforços e estudos, cada vez mais se tornava num paradigma insustentável, mais pesado, teoricamente da maior complexidade e nem assim a teoria heliocêntrica não conseguia impor-se. Quando um cientista trabalha dentro de um paradigma não pode “transferir-se” para outro. Todas as suas concepções estão ali, as suas crenças e modelos matemáticos que se seguram até mesmo pela sua tremenda complexidade. A Igreja vira com relativa apreensão a nova tese e as implicações que isso teria. Mas as hostilidades entre Igrejas tornaram mais gritante a questão. Pois, na verdade, não era só a Igreja de Roma que se preocupava com isso, mas também as outras Igrejas. A actuação da Igreja católica só se pode tentar entende dentro de um contexto em que a teocracia era uma realidade a manter, muito embora tenhamos de ter em conta que as personalidades que contribuíam para maior avanço das ciências fossem tão próximas da Igreja de Roma e até muitas eram seus membros.
     Aliás Galileu não queria recusar a Bíblia e chegou a escrever que ela «ensina como se vai o para o céu e não como é o céu».
    Para a religião islâmica, com a teoria das duas verdades, e a separação entre o saber científico e o saber religioso, foi sempre pacífica e nunca tiveram contendas por causa disso.
    Se bem repararmos, os paradigmas apesar de contraditórios e de impossível conciliação, para o homem comum não apresentam quaisquer dificuldades em conviverem entre si. Continua-se a olhar para o céu e afirma-se que está lá em cima e que o Inferno continua lá em baixo, vindo tal noção dos rios subterrâneos do Antigo Egipto e do Hades dos gregos que deveriam ficar lá nas profundezas da Terra quando esta era vista como plana.
    A busca da linguagem comum existente em época muito antiga originou contendas entre a ciência, a religião e a filosofia. Todavia elas alimentam-se das suas próprias contradições, inspiram-se mutuamente numa contínua polémica e rejeitam-se, por vezes ferozmente, negando quaisquer pontos de contacto. Mas se tal facto é prejudicial para os beligerantes não o é para a clarificação das ideias nem para o progresso do conhecimento. Quando todos se reconciliam, ou se calam, surge então a linguagem poética, tal como no início dos tempos, e a linguagem torna-se dúctil e indistintamente todos bebem da sua fonte embora cada sede seja tão diferente.
    A lenta descoberta de um Universo imenso, a teoria da explosão ou “Big Bang”, o tempo primordial e muito depois a aparição do sistema solar e seus planetas bem mais novos do que se podia deduzir com uma idade que não deve ir para além da dezena de biliões de anos, o que temos de pensar em termos cósmicos e nos torna jovens,  a certeza da nossa presença num lugar como que perdido na Via Láctea, a descoberta da existência de milhões de milhões de galáxias, buracos negros, da massa negra que não é igual a nada, mas não se revela embora represente cerca de 90 por cento do espaço no Universo,  tanta maravilha, parecem não ter alterado a vida na Terra e muito menos a mentalidade dos seus habitantes. Continuaram as guerras, as dores e alegrias dos povos. Os homens pensaram sempre que não preciso olhar tanto para o céu, o que sabiam das estrelas, da Lua, das marés, das estações das colheitas, dos ventos e do ano lhes bastavam.
    Durante algum tempo, em que já se abalara fortemente o lugar do centro, ainda havia o Sol, «centro do sistema solar», mas este também passou a ser uma estrela de pouca grandeza e nós a ver então o nosso lugar cada vez era mais pequeno, cada vez menos ao centro, seja lá o que fosse agora o sentido disso.
    Começámos muito lentamente a sentir o abalo de já não estarmos no centro do Universo, de descobrir que não há centro em parte alguma! Ao mesmo tempo o nosso velho mundo passava a ser apenas tão pequenino que mais parece um pequeno grão de areia na vastidão do mar imenso do Cosmos! Se as dimensões do planeta se alteraram na nossa mente, a nossa própria dimensão teve de se alterar. O orgulho humano sofreu um duro golpe e aprender a ser humilde estava escrito nos próximos episódios mas nem sempre foi levado a sério.
    Olhar o céu deixou de ter o mesmo significado. Afinal o que julgamos ver não pertence ao nosso tempo. Dos astros apenas recebemos uma luz e tudo o que parece ser real já há muito deixou de existir. A descoberta do tempo relativo ao observador proíbe que o que se observa seja esteja nos mesmos parâmetros.
    O céu rodeia-nos, não nos cobre, abraça-nos. Por baixo, em cima, dos lados. Tudo isso deixou de ter o sentido anterior. Todavia continuamos a olhar para o Sol, a Lua e as estrelas “lá em cima” e sentimos que estamos “cá em baixo”, embora o novo paradigma agora plenamente aceite nada disso nos afirme!
    Estamos num céu onde tudo se move, talvez em expansão, estamos a deslocar-nos a grande velocidade, suportamos sobre o nosso corpo toda a força da gravidade mas somos como que alheios a tudo isso.
    As teorias sobre o Universo não chegam a um consenso pela razão bem simples de que são teorias. Até nem sequer conseguem um acordo e muito menos se conseguem unificar. Isso não obsta a que cientistas tão distantes da religião como Stephen Hawking tenha o mesmo sonho do Cardeal Nicolau de Cusa de uma ciência universal e da descoberta pelo ser humano de uma teoria completa do Cosmos, remetem igualmente para uma página do Marquês de Laplace em este imagina na sua obra “ Ensaio Filosófico sobre as probabilidades” uma mente que «num momento dado, conhecesse todas as forças que animam a Natureza, e a situação respectiva dos seres que a compõem , se além disso fosse assaz poderosa para submeter esses dados á análise, abrangeria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e os dos átomos, os mais ténues: nada para ela seria incerto, e futuro como passado, seriam a seus olhos presente. O espírito humano oferece na perfeição que conseguiu das à astronomia um leve esboço dessa inteligência».
    É espantoso como chegamos tão longe e a Torre de Babel continua tão perto!
    Descartes pode ter adiado a queda do nosso orgulho. O espírito humano através da razão atingiria a verdade e as ciências seriam assim dominadas. O cogito podia ser ainda um centro de toda a racionalidade e das leis do Comos enquanto os animais máquinas estavam completamente alheios ao nosso destino.
    A frase de Aristóteles: «Os animais são irracionais», atravessou séculos, ainda hoje se diz, e justificava o orgulho humano, traçava uma linha muito clara de separação de tal modo que chamar alguém «Animal!» é ainda considerado um insulto, porque o senso comum tem aquela força terrível de inércia que não se compadece com novas aprendizagens e conhecimentos. Todas as pessoas continuam a pensar no ser humano como o culminar de uma possível evolução ou criação sem pôr em causa o preconceito de acreditar na inteligência superior e na afectividade única do homem!
    Nota-se como os paradigmas derrotados continuam presentes nas margens da consciência e as presumíveis comunidades científicas nada podem contra o homem do senso comum de que também fazem parte.
    Porém a aventura do homem continua. Depois que surgiu Charles Darwin e a teoria da evolução, a teoria fixista era posta de lado. O criacionismo passa a ser contestado. O lugar do homem como o rei dos animais e da natureza é, mais uma vez, fortemente abalado. Agora éramos o resultado de uma longa evolução e todos partilhavam a mesma origem.
    Aprende-se isto com alguma facilidade, as observações e provas da evolução são patentes apesar de hiatos e falhas de elos, mas não se entende do mesmo modo. A viagem no tempo e no espaço de um indizível em que nos tornamos continua a abalar o homem. É muito lenta a mudança que este paradigma trouxe. Ainda não está de modo algum levado até às suas últimas consequências.
    Faltava ainda Freud chegar e dizer que somos joguetes de um inconsciente que nos domina, que a nossa consciência é uma ínfima parte do nosso psiquismo e os nossos impulsos, o que de mais pessoal julgamos ser, afinal é fruto de um eu que se não conhece, um ego nocturno e tanto somos senhores de uma consciência diurna, como estamos à mercê de uma inconscientes nocturno, muito maior e mais forte. Depois Pavlov e a seguir Watson com todo o pragmatismo americano, afirmou como somos condicionados. Ainda causa apreensão e uma certa revolta aceitar que «Nós somos o que nós fazemos e nós fazemos o que o meio nos faz fazer». Rejeitada toda a liberdade e o seu alcance metafísico ficámos a saber que temos a consciência de que não somos livres, uma forma negativa de sermos donos de um bem que sempre foi o nosso orgulho e a nossa luta.
     A decifração da dupla hélice por James Watson e Francis Crick, a estruturação do ADN e a descoberta dos genes iriam causar uma revolução científica que é, possivelmente a mais importantes do século XX, pelo progresso que impulsionou e aprofundou novos conhecimentos. Mas, na altura e mesmo ainda agora, não se lhe consegue atribuir o devido valor e a imaginação, a ficção e a realidade ainda formam um só, face ao futuro.
      Crick e Watson, como já tinha sucedido com Freud, Pavlov e John Watson, vêm contribuir ainda mais para tornar a palavra liberdade algo puramente metafísico e o nosso centro quebrado em estilhaços.
    É provável que estejamos a viver uma mudança de paradigma tão extraordinário como  nunca aconteceu e do qual ainda não se deu verdadeiramente conta. Até onde irá alterar agora, mais do que todos os outros avanços das ciências, é algo que está em jogo.
        A ciência, que é obra do ser humano, veio trazer-lhe a maior grandeza e as maiores humilhações. Colocou-nos como um pequeníssimo ser vivo na imensidão de milhões e milhões de estrelas, galáxias que se desdobram e multiplicam em descobertas que para nós nos mostram a enorme grandeza da razão e cada vez mais os seus limites.
    As realidades, temos de as referir no plural, não são todas passíveis do conhecimento humano. As descobertas no microcosmo e no macrocosmos iniciam uma era da construção de realidades que nunca mais podem ser evidentes como foi a descoberta do movimento pendular do candelabro na catedral italiana por Galileu, à vista de todos, ou as intuições de Newton ou mesmo as observações de Charles Darwin. Agora tudo tem de se passar num universo construído pelos instrumentos e decifrado pelo homem que se coloca atrás dos instrumentos para observar, de modo puramente racional, o que lhe é dado do real pelos aparelhos.
    Quando vamos ao médico, já este não observa a nossa pessoa, não manda dizer: 33, limita-se quase a algumas simples perguntas. A nossa outra existência, mais real e palpável para o médico, será as repostas dos aparelhos que nos traçam a nossa “verdadeira” realidade para o clínico que em vez de ligar importância à evidência da nossa presença, dá muito mais atenção à evidência da presença dos resultados dados pelos aparelhos. Aquela, a realidade dos resultados que os aparelhos fornecem, é também a nossa realidade. Perante essa realidade é que o cogito do clínico vai actuar por trás dos instrumentos. Porém quantas mais realidades  teremos ainda? Tinha razão o filósofo Gaston Bachelard quando falava no aparelho do cogito no tempo de Descartes e no cogito do aparelho no «novo espírito cientifico». Continuamos a aceitar a tese de Hegel quando escreveu: «todo o real é racional e todo o racional é real» mas será verificável de modo que nem o próprio filósofo imaginaria, já que o racional pode criar mundos imaginários que serão outras realidades só de símbolos e números pois  a linguagem existe, mas como dizia ironicamente Bertrand Russell, «da matemática não se sabe de que se fala, nem se o que se diz é verdadeiro».
    Passámos do que se entendia pelo contacto com a realidade, com os factos, para a interpretação numa imensa cadeia de linguagens em que parece estar de novo bem presente a velha torre de Babel.
    Face a tudo isto, um habitante dos mares do Sul explicava, com aquela certeza de uma velha sabedoria passada oralmente de geração em geração, a sua cosmologia a um homem branco completamente afastado da sua mundivivência, que a Terra está em cima de uma enorme árvore. Sobre os ramos dessa árvore, numa estabilidade sempre em perigo, estão a terra firme e o mar. E os espíritos malignos podem causar o desequilíbrio dessa fragilíssima harmonia. E, tal como o velho Heraclito, sentenciava calmamente que nada permanece, tudo está em mudança e numa instabilidade constante. Podia ter dito também que a Terra estava em cima de uma tartaruga e esta tartaruga estava também sobre outra e assim indefinidamente. Todos nós temos uma imagem do Mundo e há quem acredite em ideias bem mais estranhas e convive-se com o estranho e o irracional ao lado da mais estrita lógica.
      É estranho mas acontece que os cientistas tenham preconceitos extremamente fortes. Einstein lamentou mesmo o facto. A astrologia, a numerologia, agoiros e horóscopos, sinas e cartas de Tarot junto com mau olhado, búzios e leituras da borra do café ou outras estão lado a lado com a ciência, a política, a economia e tantos mais campos do que devia ser racional.
    Descobrimos que convivemos mal com a ideia de que estamos ainda muito perto da pré-história e que o homem ainda está na infância. A idade do Universo ultrapassa quase o que a nossa imaginação é capaz de entender apesar de se poder muito bem falar em números quase infinitos. Mas se o planeta Terra parece que levou cerca de 3 biliões de anos até existir vida, o tempo do ser humano é muito curto mesmo. Pode ser que esta nossa humanidade tenha oportunidade de se desenvolver e chegar a uma maturidade que está muito longe de existir. Todos nós vivemos tão pouco tempo face ao que se diz do tempo do Universo, das estrelas e do nosso planeta que é admirável como o conhecimento tem progredido relativamente em tão pouco tempo. O século XX terá tido cerca de 90 por cento de todos os cientistas que já existiram. É certo que temos um preço muito elevado a pagar.
    Mas a verdade é que temos memória curta, demasiado curta, e talvez nem queiramos mesmo lembrar por não ser agradável admitir que, ainda está muito perto de nós a época em que o fogo foi descoberto, que se inventou a roda e, mais do que tudo, os nossos antepassados predadores e inábeis caçadores ainda governam muitos dos nossos impulsos ancestrais. O altruísmo e o egoísmo, todos os valores nada mais seriam senão memes, conceito que se aplica aà evolução sócio cultural e tais memes, isto é, linguagens, sons, valores seriam auto propagados nos grupos tal como acontece com o genes, avançando os mais aptos e sendo eliminados os menos preparados para sobreviver. Eles é que fariam com que a evolução cultural de grupos coesos se mantivesse. A exploração dos povos por outros povos corresponderia a uma agressividade e defesa territorial que está na linha directa da selecção animal do darwinismo social ou da sociobiologia justificados na luta pela sobrevivência levada a cabo agora pelos monopólios, pela economia, pelo poder de domínio de uma pequena parte da humanidade sobre a outra. Afinal Hobbes teria razão ao afirmar que «o homem é o lobo do homem». Mas será sempre assim? Os próprios autores das novas teorias interrogam-se sobre o mistério que está na evolução das espécies, principalmente a nossa.
Na ordem das probabilidades, a nossa existência, esse eu que tanto cuidado nos dá, ultrapassa a ordem das probabilidades e atinge a ordem do milagre. Isto sem referir nada de sobrenatural. O físico e astrónomo Jeans, conseguiu calcular a probabilidade de um recipiente de água em cima de um forno gelar. É quase impossível mas a sua probabilidade existe. Ora a probabilidade de nós existirmos ainda é inferior a isso pois o nosso Sol, a nossa Terra são muito mais jovens do que nos habituamos a pensar. O cientista russo A. Kondratov, quando escreveu o seu livro de divulgação da Cibernética, intitulou-o “O ABC da Cibernética dá o devido relevo a este «jogo» de probabilidades atribuindo-lhe o nome de «Milagre de Jeans» mas se não é sobrenatural, é pelo menos um mistério e um enigma que este nosso eu tenha surgido e ainda mais que descubra leis e as aplique ao Cosmos e elas se revelem válidas.   
    Há sempre imponderáveis no «fenómeno humano» que a teoria do «gene egoísta» de Dawkins e toda a sociobiologia talvez não abarquem. O próprio Dawkins diz, com certa ironia, que o seu livro pode ser lido como quase como ficção científica. Destina-se a agradar à imaginação, mas é ciência. A tese é que não é o indivíduo, nem os grupos que evoluem, mas os genes de que todos são portadores, há milhões de anos. O paradoxo do prisioneiro a jogar com o próprio cientista num jogo de cartas e probabilidades ainda não chega a ser tão complexo como o “jogo” em que entram plantas e todos os animais numa busca de adaptação e de sobrevivência que a nossa razão dificilmente imagina. Nós seríamos somente a espécie que um dia descobriria porque existe a evolução.
    Mas uma inteligência que evolui até nós sem consciência é como que um panteísmo inconsciente, que se ignora como tal, que nos torna como robots, semelhantes aos animais máquina de Descartes, um pouco superiores é certo, mas simples instrumentos de uma evolução que, em suas linhas mais gerais, tem algo a ver com o sistema hegeliano transformado num biologismo genecêntrico em que a ideia de Ser é substituída pela de Genes. A elaboração cuidada de toda a teoria biológica seria um outro modo de descrever a evolução. Neste caso, poderíamos dizer que infelizmente Hegel nasceu demasiado cedo! O seu sistema surgiu numa época anterior ao darwinismo e a toda a consequência ideológica que daí adveio e cada vez é mais patente. Todavia devia haver todo o cuidado em separar a teoria das possíveis interpretações que extrapolam a ciência e passam a ser opiniões, «doxa», por melhor argumentada que seja, não é uma posição científica correcta. Os cientistas são um pouco aprendizes de feiticeiros, entusiasmados com as suas descobertas, acabando por se envolverem em ideologias a que deviam estar alheios. Pelo menos não usarem das suas descobertas para defenderem pontos de vista que já nada têm de científicos. Mas quem é tão humilde e modesto que não goste da fama, das ribaltas, das luzes brilhantes sobre os seus crânios e não queira tirar partido pessoal do que podia muito bem ser e devia ser, estudo cientifico levado a cabo sem simplificações e extrapolações para outros territórios onde as teses podem medrar, mas a verdade pode secar e morrer.
     A realidade humana está patente na arte, na beleza, nos afectos, há todo um mistério e algo tão sublime na espiritualidade humana que se furta ao escalpe do cientismo. Os próprios cientistas se interrogam, ficam perplexos e por fim admitem enigmas e mistérios. Não se atrevem a classificar como falsos problemas todo esse mistério, como faria Auguste Comte sem mais hesitações num caso destes.
    Temos de reconhecer no ser humano que não há determinismo mas potencialidades. Até que ponto se pode colocar a complexidade do ser humano ao lado dos outros animais com toda a sede de conhecimento que o anima, a imaginação e o altruísmo que não se pode comparar com a solicitude das abelhas ou apenas reservar para graus de parentesco?
    O lado escuro da Lua, no que se refere ao comportamento animal está ainda na sua afectividade, algo perigoso de aceitar por nós, face a todo um preconceito que nos separa e nos protege contra o domínio que sobre eles temos tido. Carl Sagan, diante das tentativas de comunicação com os chimpanzés que agora se realizam, admitia que era uma nova tentativa de reparar todo esse anátema que até hoje existe. 
    O relativismo ético, filosófico ou outro é profundamente enganador. Tem por traz toda uma ideologia que quase sempre se ignora a si mesma. Há muito tempo já que Einstein enunciou as suas teorias da relatividade. Em seguida o princípio da incerteza e das probabilidades e agora os paradoxais mundos de Schrodinger, que se divulgou com a sua hipotética experiência do gato no saco, (meio) vivo, (meio) morto, num outro lugar do Universo, vieram tornar ainda mais complexo o lugar do homem no meio de um Universo que tenta compreender e de que faz parte como existente e engenhoso observador. Mas como pode a razão compreender o todo se é apenas uma parte constituinte dele? É raro que uma teoria científica não se reflicta em outros campos e com esta também aconteceu o mesmo. O paradoxo disto é que todo o relativismo cultural, ou outro que daí se extrapolou, tem por trás um absoluto que é inquietante quando se ignora.
    Por trás de uma afirmação que insiste em alguma coisa ser impossível de realizar, há milhares de impossibilidades que o ser humano já tornou realidades. Não podemos ser ingénuos, mas os sonhos realizam-se estranhamente. Isso é uma esperança que ultrapassa as informações, uma crença tão forte como se todos os «ses» pudessem ser eliminados.
    A possibilidade do «Projecto Genoma», que trará muitos milhões de informações sobre as características humanas, é um fruto do conhecimento que estamos a atingir. Tudo se torna estranho!
     Regressamos à cozinha que agora nos parece o mais velho laboratório do mundo. A possibilidade dos múltiplos universos de que o gato de Schrodinger é já uma estranha e paradoxal hipótese, a multiplicidade das probabilidades dos genes que tornam os seres vivos todos muito mais unidos, faz do futuro algo espantoso e com recursos ainda inimagináveis que estão quase ao nosso alcance. Porém, se tem vantagens para muitas doenças, transformação de plantas e animais, incluindo o homem, apaga toda a noção de raças que divide os seres humanos, nega o determinismo genético, dá um enriquecimento espantoso para alguns, como a indústria farmacêutica e a engenharia genética, o novo paradigma que se irá instalar apresenta riscos altíssimos. Se olharmos para trás vemos que o medo das descobertas sempre existiu e há de facto riscos. Mas viver não é mesmo isso?
    A vertigem da subida está em olhar para trás, mas temos de o fazer, não para nos orgulharmos apenas do caminho percorrido, mas especialmente para ver como estamos ainda tão perto da base e quão longe está o alto da torre inacabada.
    Parece que avançamos tanto! E todavia estamos tão perto da horda, da selva, da savana, do canibalismo, das superstições, da feitiçaria.
    Quando Jean Charon escreveu “ La Connaissance de l´Univers” em 1961, já tinha a visão de tudo isto que acontece e é estranho reler a sua Alice «no país do Universo» e ver como um conto de fadas é muito menos enigmático do que o micro e o macro cosmos, e como desde então a razão invade tantos campos de realidades e cada vez mais o puzzle do conhecimento mostra as interrogações de sempre a repetirem-se tal como os nossos velhos amigos gregos descobriram. Teilhard de Chardin e a sua brilhante intuição, bem como o seu trabalho foi mais um visionário antecipando a aventura do espírito num evolucionismo  em que a matéria se transformará até se tornar num espiritualismo cósmico absoluto.
    Hoje bem nos podemos alegrar por cada vez mais pessoas partilharem conhecimentos científicos que passaram para o comum dos mortais e fariam o pasmo dos cientistas e sábios de outras épocas.
    Conseguimos aumentar enormemente a velocidade do nosso tempo, reduzimos a muito menor extensão todo o planeta, embora resmunguemos contra os males da globalização o grau de espiritualidade que pode atingir ainda está no berço.
    Agora que se reuniram tantas ciências em torno do homem, não se tornará mesmo “Um” centro? Será um centro que nada terá a ver com o que procurava durante tanto tempo, um centro diferente porque estará em toda a parte e em lugar nenhum, apenas o ser humano para onde quer que vá leva consigo a sua «casa» que será a descoberta do seu verdadeiro humanismo, da sua força criadora, da sua racionalidade e afectividade.
    Esse conhecimento, aliado ao científico e a todos os outros, pode levar-nos às estrelas. Chega-se a pensar no futuro e logo a linguagem se torna poética ou escapa-se-nos para a ficção científica. O homem é tudo isso a realizar-se diante dos nossos olhos que se negam a sair da sua inércia e de ver para além da aparência.
    Continua-se a dizer: O Sol já nasceu! O Sol já se pôs!
     Com a naturalidade de sempre convivemos fraternalmente com o senso comum e a ciência e a capa dos preconceitos esconde-nos as múltiplas realidades. Apenas há segundos o homem foi à Lua, dentro de um ano pode ir para lá da Via Láctea e depois…
    Falta apenas - e isso é muito - o ser humano despertar para a sua identidade e busca de sentido com um coração que desponta da matéria, algo estranho a todo o determinismo, a todo o puro racionalismo, mas que potencialmente é o espírito humano na sua forma mais elevada e criadora de Ser.
    Citamos, com todo o respeito que nos merece o grande cientista, uma frase de Stephen Dawkins que mostra com estranhamente as linguagens se encontram, nos inícios e nos fins, quando as interrogações são mais prementes:


    «Todavia, se descobrirmos uma teoria completa, deve acabar por ser compreensível, na generalidade, para toda a gente, e não apenas para os cientistas, então poderemos todos, filósofos, cientistas, pessoas vulgares, tomar parte na discussão do porquê da nossa existência e na do Universo. Se descobrirmos a resposta, será o máximo triunfo da razão humana porque nessa altura conheceremos o pensamento de Deus».

Dito por quem é, na seriedade de uma obra científica, toda a viagem que toscamente aqui traçamos vai em busca de um centro. Na sua máxima ambição é a torre de Babel que se levanta e o coração do homem que se lança cada vez mais perto das estrelas e só terá encontrado o centro no Amor Deus, se nos é permitido alterar apenas uma palavra do belo texto de Dawkins.
    O triunfo da razão surge de tal modo absoluto que é inevitável filosofar e depois apostar num Universo consciente. Se Dawkins se interroga perante à criação do Universo, quem criou Deus? Pensamos que é pertinente a pergunta, se há criação não somos mais do que criaturas dela dependentes, será possível sequer entendermos o que é a perfeição racional?

Face a tais questões vemos que o bom senso de Bertrand Russell ao aplaudir os teólogos racionalistas tem toda a lógica. Descobrir o pensamento de Deus é ambição que remonta a Prometeu. As maravilhas das ciências só têm descoberto cada vez como é ínfima a nossa presença neste Universo e diminuído a nossa sabedoria quanto mais se abre a porta da nossa ignorância.

A porta das ciências dá para o infinito. Não um infinito do saber ou do conhecimento mas do reconhecer uma humildade crescente diante do imenso desconhecido que cada vez mais nos leva a interrogações até aceitarmos o nosso próprio Mistério.