"   Memórias de Alice - XI " 

  •  E após o Zero ?

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas ( 2013 )

 

 

 

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" Uma e outra vez "

[ Objectos pessoais encontrados nos terrenos da "Grande Guerra". Museu no Norte de França. 2011 ]

 © Levi Malho.

 


 

 

Figura 1 - O Vazio do consumo cultural

 

   Nos finais do século XIX, Simmel tinha um certo otimismo em relação ao dinheiro para a futura sociedade. No processo económico, coloca a essência do ser humano definida de um modo bem pouco usual pois afirmava que é  “o animal que faz “trocas”.
    As trocas levam à necessidade da matemática e do uso do dinheiro mas este sendo visível ou, o mais das vezes invisível, seria o que se mantinha sempre enquanto tudo o resto mudava.

 

Figura 2 - O metal invisível e sempre presente seria o que rodava e ficava presente enquanto tudo o mais se alterava.

 

 

O “resto” tanto será toda a produção incluindo a obra de arte que daria ao artista a fruição da criação e ao espetador a sua própria apropriação da cultura. Comparando com o cultivo agrário usa o termo cultivação para explicar que deste modo pela arte se partiria da condição natural para a cultural com a elevação da alma a sucessivos graus superiores.
    Tal não se confirmo, antes pelo contrário, longo do século XX, pensava que
obras artísticas, técnicas e intelectuais que ficam abaixo da altura já alcançada por outras têm, no entanto, a capacidade de inserir-se da maneira mais efetiva no caminho de várias pessoas (…) como ponte para a estação superior seguinte.[1]

 

 

 

Figura 3 - A escada que serve para subir é mais fácil de descer Simmel não contou com a degradação e sim com uma elevação crescente do espírito

 

Nada menos oposto ao que aconteceu com a degradação da indústria que veio nivelar cada vez mais baixo a dita cultura que passou democraticamente para as maiorias. O consumo crescente exigia satisfazer cada vez mais quantidade em detrimento da qualidade. Ao contrário da ponte servir para elevar os espíritos, foi uma forma de passar para um estádio inferior onde a massa tudo consome mais facilmente. É impossível levar a sério a ideia que se pode diminuir o desejo de consumir. Faz parte do anseio do todo que transcende uma visão superficial dos mecanismos sociais.
    A coisificação de todo o real e tanto as pessoas como os objetos se vierem a tornar em “mercadorias” o que para Simmel nunca aconteceria. O grande aumento de objetos jamais chegaria a tal mistura, mas sim a criar um mundo que elevaria os sujeitos com a própria cultura; “
à época da produção de mercadorias constitui apenas um caso especial, modificado, deste destino geral de nossos conteúdos culturais. Estes conteúdos encontram-se na situação paradoxal - e com a elevação da cultura cada vez mais - de terem sido criados por sujeitos e destinarem-se a sujeitos.”[2][tradução nossa]

 

Figura 4 - O urbanismo traria uma cultura que tornaria o homem cada vez mais humano

 

 

A ideia de uma produção de objetos em série que se diriam falsamente culturais e do apelo a um consumismo que acabaria por criar constantemente tantas falsas necessidades renovadas pela indústria não se imaginava então. O sujeito consumidor e os objetos que surgiam, na sua visão, trariam uma melhoria social com elevação dos espíritos das maiorias, sem a banalização das massas que destruiriam a cultura transformada em objeto a consumir. Baudrillard acusa de ingenuidade imaginar-se a saturação do consumo pois este é insaciável. De nada vale falar de consumo moderado ou racional. Pelo contrário, “o consumo fundamenta-se numa falta ou carência e assim é irresistível”.[3]  Não se trata de uma compulsão mas da busca de uma totalização que transcende o indivíduo na sua procura de uma transcendência da qual nem tem consciência. 
    Por exemplo, o livro prova  uma mudança do sentido cultural para o “culturalismo”. Antes um livro não era um objeto modo algum descartável. Depois de lido, era um amigo, um apoio para consulta se mantinha-se por estima, interesse ou apego cultural.
     O próprio estilo das obras, tornou-se na degradação e enjoo pois se lê como quem toma uma refeição e ao jantar já quererá outro alimento. Os livros, em grande parte, passaram a ser escritos para se lerem uma só vez. Veja-se o livro que se consome a si mesmo no estilo policial que termina quando se descobre o assassino, ou o romance cuja intriga só se mantém enquanto o par amoroso não chega ao altar.

 

Figura 5 - Quadro Claude Buck, 1890.

 Ao contrário do que Simmel imaginava a leitura não se elevou com a sua expansão. Antes cada vez a sua qualidade é menor para abarcar a maioria

 

 

No seu teórico entender, no início desta transformação, para Simmel, a cultura em vez de se tornar numa indústria com circularidade acabaria por aumentar de qualidade. As elites ditariam a produção e a circulação do dinheiro trariam uma cultura mais elevada acessível a um maior número de pessoas. A ingenuidade está em pensar numa satisfação de necessidades, ou saturação. Por outro lado, nem a moralização do consumo nem um bom senso de consumo de necessidades não passa de uma visão errada do que se da essência do consumidor que visa uma totalidade impossível de satisfazer.
    Aquela melódica e sedutora cantilena que se tornou comum e invadiu escolas e toda a publicidade verde dos três “Rs", que já se multiplicaram em 5 repensar, reciclar, recusar, reduzir, reutilizar. Tal forma de pensar insere-se numa aparente contra reação ao consumismo. Mas tem apenas duas formas de interpretação, ou é uma tese de extrema ingenuidade, o que não parece possível, ou esconde a ideologia consumista de um modo subtil de colocar falsamente o problema nas mãos dos consumidores.
    Jamais as soluções se mostram inteligentes ou capazes de uma ação real, válida ou minimamente correspondente aos desperdícios que não entram nestas ingénuas “boas intenções” que não podem controlar nem a produção nem o consumo. De algum modo, podem apaziguar as consciências dos que imaginam ter a salvação do planeta nas suas mãos. Os patéticos esforços destas soluções redundam em mais lixo e maior fracasso. A psicologia do consumidor que embarca neste jogo infantil sente que entrou numa campanha que resolve problemas que o transcendem totalmente.

 

 

Figura 6 - A educação politica e economicamente correta é de espalhar este anúncio e consumir sem ter a consciência pesada.

 

 

Entre o querer e o ter, para mais querer, há uma transcendência que toca a condição humana numa busca de infinito. Se bem que tal busca se manifeste de um modo bem material e singelo, inconsciente do verdadeiro sentido da condição humana.  A observação de uma série infinda de objetos femininos, que só alienavam a mulher, criando-lhe falsas e efémeras ilusões da moda já muito comuns na época, poderia mostrar-lhe que a coisificação seria uma das degradações da cultura.

 

 

Figura 7 - A quantidade de objetos inventados para aumentar o consumo de objetos femininos é algo que sustenta milhões e milhões de trabalhadores, laboratórios, empresas e publicidade enganosa mas que urde efeito pois pela moda a mulher é uma vítima que não se pode controlar.

 

Todavia há que observar para profundamente este anseio criado e divulgado. A promessa da eterna juventude, da beleza, os sentimentos de vaidade, inveja ou até simples necessidade da imagem oculta algo latente na alma humana. É apesar de toda a sua forma grosseira ou sofisticada, a feminilidade a querer atingir o infinito. A tragédia dos objetos é a sua inesgotabilidade.

 

Figura  8 - Ainda não consegui comprar TUDO!!!!

 

 

  Esses objetos obtidos, com maior ou menor custo, não lhe trazem maior alegria, nem elevação. Pelo contrário, criam inveja, emulação competitiva, vaidade que até vinha prejudicar a real dignidade e seriedade femininas e explorando a sua futilidade explorada por consumir objetos que só por “fetiche”, na aceção de Marx podiam ser chamadas “necessidades”.
     Na grande alteração económico-social que se dava à sua volta não lhe era possível ser pessimista. O otimismo, de quem observa academicamente as transformações, não permitam reparar que, se a imensa profusão e escolha de objetos dava aumentava a quantidade de seres humanos utilizados para produzir como o aumento da quantidade de pessoas com possibilidades de mais bem-estar, tornam-se todos cada vez mais comparáveis a coisas descartáveis. a circularidade da cultura e a sua porosidade torna-se numa realidade mas o brutal aumento sempre crescente da produção não era um fator favorável à cultura, um falso valor que leva a anomia.
    Por certo que a circularidade da cultura e a sua porosidade era numa realidade nunca antes sonhada, mas o brutal aumento sempre crescente da produção não era um fator favorável à cultura. Para muitos, parecia que no futuro, no devir da cultura, esta será capaz de reunir numa nova Atenas, Jerusalém, renascimento ou romantismo numa convicção do conceito global de cultura que reunisse até o oriente e o ocidente.

    No século XIX, a única grande narrativa histórica cultural centrava-se na Europa. O ideal da Paideia
[4] e os belos sonhos de Werner Jaegar de uma educação, que interiorizasse os mais elevados valores, vindos na Grécia, acreditavam, com a maior ingenuidade, que o passado lhe transmitia uma realidade segura e que não passava de relatos com muitos fins. A noção de história é algo recente e cada vez mais complexo

 

Figura 9 - Werner Jagger escreveu uma das mais belas e extraordinárias obras sobre a educação em diferentes períodos da Grécia, mas não podemos deixar de pensar no que não escreveu e também aconteceu

 

 

 

Figura 10 - O pedagogo quebrava o ensino caseiro e os laços maternos para instruir na ginástica, nas artes e todas os dotes de um bom e corajoso ateniense.

 

 

Certamente que a noção de que seriam depois estudados pelos homens do século XIX e menos serem modelos para novos tempos não acontecia, a ingenuidade de acreditar nessa leitura não era mais do que um espelho narcísico para o presente. Era o paradigma comum aos pensadores de então que se imaginavam regressar à Antiguidade onde o ser humano teria sido verdadeiramente livre e senhor da sua dignidade. Mas nem sequer o homem grego dessa admirada Antiguidade teve alguma vez a noção de liberdade.

 

 

Figura 11- O pedagogo era sempre um homem e bem cedo a criança abandonava a influência Materna para se submeter às práticas de futuro cidadão

 

Tudo isto era um universo com uma faceta apenas masculina sem ter nada a ver com a condição feminina perfeitamente omitida. As crianças, mal chegavam à idade da razão, eram afastadas das mulheres e entregues aos educadores masculinos que as iniciavam no verdadeiro mundo do homem. Entendia-se que o mundo feminino não trazia nada de positivo ou importante para o despertar cultural. Com o decorrer dos tempos, Paideia passou a ter uma conotação muito próxima de Bildung, escreve Werner Jaeger incluindo "todas as formas e criações espirituais e ao tesouro completo da sua tradição, tal como nós o designamos por Bildung ou pela palavra latina, cultura."  Acrescente-se que que em rigor os dois conceitos diferem porque " expressões modernas como civilização, tradição, literatura, ou educação; nenhuma delas coincidindo, porém, com o que os Gregos entendiam por Paideia.

 

Figura12 - “O silêncio dá graça às mulheres” embora isto em nada de aplique ao homem.

( Aristóteles, ( Politica. I,1260 a.b.pp32 e33  A fiação era uma das muitas tarefas da mulher. )

 

 

Hoje a mulher torna-se alvo e vítima da indústria cultural cada vez mais presa à pressão social que lhe dá e tira o que nunca chega a ser. O terrível paradoxo do culturalismo é a sua quantidade sem ilimitada mas necessariamente depois transforma o que consome, pessoas e coisas em lixo e esse é o que mais aumenta. 

 

Figura 13 - Paris Que cultura?  Galerias Lafayette.  As catedrais douradas do prazer de consumir

 

Sem mencionar a condição feminina, Lima Santos reflete um aspeto curioso por altura da revolução cultural romântica, o dito alargamento do público representava um fator de emancipação para o autor-criador, (…) cedo esse público constituiria uma nova sujeição, tanto mais humilhante quanto lhe aparecia como uma massa anónima albergando gente ignorante e social, culturalmente pouco qualificada.[5] Mas a situação que se seguiu não deixou se ser irónica.
    As massas, à sua maneira, passavam a consumir mas tal não se pode designar que tivesse sentido cultural pois essas leituras tão vazias e estupidificantes em nada vinham interrogar ou modificar o pensamento do público. Obedecendo a lei do lucro e ao desejo das massas, o culturalismo é o que a indústria cultural fornece em crescente abundância. O filão feminino não podia escapar, tanto como consumidora como objeto, é uma vítima que não se dá conta de ser usada e gasta, tal qual uma “mercadoria” qualquer, que na visão neocapitalista continua a ser.

 

 

 

Figura14 - A moda impõe e o ridículo vem já a caminho A mulher é vítima de uma massificação opressora.

( Comparem -se estes sapatos com o a tradição chinesa das mulheres terem os pés pequenos à custa de imensos sacrifícios e dores.)

 

O papel da literatura de cordel, romanesca, carregada de estereótipos, não trazia um despertar das mentes das mulheres devido ao contexto em que viviam e às obrigações a que se submetiam.

 

Figura 15 - Cozinhar, mesmo que já tivesse alguma peça mais moderna, tinha de ter extrema atenção e a repetição constante que um prazer tão efémero como era depois a refeição da família

 

 

 

As contínuas tarefas repetitivas e monótonas, o tratamento da casa e seus cuidados tão pouco criativos, os encargos com as crianças, davam azo a que não pudessem sequer ter curiosidade ou quaisquer outras preocupações para além do quotidiano tão absorvente como exigente que nem tempo dava para meditar ou ponderar sobre tantas perguntas que se ocorressem, logo tinham de interromper porque o seu tempo estava todo pautado pelas tarefas que os homens desprezavam ou não consideravam dignas de si. Não espanta pois que Schopenhauer escrevesse análises deste teor depreciativo para as mulheres:

 

Figura16 - Pintor inglês Reynolds, 1723-179 famoso retratista Lady Cocburn e os seus três filhos.

 Repare-se se na impossibilidades de outras tarefas para além das maternais.

 

 

Observe-se uma jovem brincando um dia inteiro com uma criança, dançando e cantando com ela, e imagine-se o que um homem com a melhor das vontades poderia fazer em seu lugar.”

 

Figura 17 - Pintura de Gustave Leonhard de Jonghe 1629-1693 pintor belga.

 As tarefas que o filósofo tinha por fúteis e indignas de um homem

 

 

 Pode dizer-se que o romantismo tem contradições entre o que se escreve na literatura, a aparição da pintura e nas artes plásticas pelo lugar que se dá à mulher e que, na realidade, não era mais do que um pretexto secundário para exaltar o homem com o perfeito esquecimento das possíveis capacidades da mulher em qualquer área cultural, na filosofia, na política, na ciência e até nas artes plásticas.

 

 

Figura 18 - Arthur John Esley 1860- 1952 Tudo isto Schopenhauer desprezava e a mulher não podia escolher

 

 

 

A circularidade de um livro, que podia até ser erudito, com a democratização da leitura e a atenção ao lucro da parte dos editores, ficou desde cedo ao alcance de camadas da população bem diferentes. Antes as obras apareciam porque algum mecenas ajudava um artista. Agora, o público ledor tem na sua mão o editor e, este vai ironicamente pressionar de novo os artistas[6].
    Lima Santos, mostra grande influência de Bourdieu e anota que este, atento às lutas sociais do século XIX, também repara num conflito entre
valores democratizantes e elitistas, ou seja, um dualismo cultural, em que há a oposição de uma produção cultural, “dirigida para um público alargado — «arte burguesa» — e uma produção orientada para um público restrito, em que o autor-criador reivindicava o domínio exclusivo sobre o respetivo campo simbólico — «arte pela arte». Uma “arte social” aparecia com estatuto ambíguo, legitimada pela pureza do desinteresse, mas comprometida pela contaminação com um público não ilustrado.[7]
    O certo é que o dinheiro era o paradoxo da permanência e da circulação. Face ao urbanismo crescente, toda a gente parece perseguir desesperadamente o dinheiro, quer na busca de sobrevivência, quer na procura de uma ilusória felicidade ou ambição. Isso não traz nem paz nem segurança. O homem, através do dinheiro “só alcança a deceção e o tédio. ”
[8] acaba por declarar Simmel, atento à alteração que o dinheiro trazia à sociedade urbana. Isto podia refletir bem o que o próprio sociólogo sentia, pois viveu rodeado de tudo o que o luxo lhe podia dar.
    Ora, se este assim pensava, como é que se observava a cultura nos inícios do século XX?

 

 

 

Figura 19 - Bildung, sem tradução e múltiplos sentidos

 

 

O conceito de cultura não tem uma tradução semelhante nas culturas latinas e germânicas.    A cultura (Bildung em alemão) é um conceito de enorme complexidade, sujeita a múltiplas interpretações. Simbolicamente trata-se de um mar abrangente onde mergulhamos ou o ar que se respira e não se dá pela sua presença. A discussão entre a noção Bildung em alemão e cultura, Kultur derivada do latim, é intricada. Prende-se também com a separação que existe sempre entre civilização e cultura.
    Quando Simmel disserta acerca de “O conceito de Tragédia da Cultura” já se apropriou de tudo o que aprendera com um dos seus autores preferidos; Nietzsche, (1844-1900) com quem aliás conviveu nos salões de Berlim. É certo que, tanto o autor de “Assim falava Zaratustra”, como a escritora e intelectual russa Lou Salomé animaram bastante as discussões intelectuais em sua casa.

     Como professor de filologia, o jovem Nietzsche procurara encontrar múltiplos sentidos para o conceito: Bild, imagem, Einbildungskraft, ou seja imaginação, Ausbildung, que significa desenvolvimento, ou Bildsamkeit, que quer dizer flexibilidade ou plasticidade, sem olvidar Vorbild, modelo, e ainda Nachbild, que se traduz por cópia, e Urbild, ou arquétipo
[9].

 

 

 

Figura 20 - Bildung que reúne apenas os espíritos superiores capazes de encontrar no "ÓCIO" o sentido para a luta pela Vida.

 

 

     A cultura, tal como Nietzsche a quer definir é um valor e uma interpretação global da vida. Mas não passam de três formas de ilusão: Aquele que se amarra a um socratismo acerca do conhecimento que lhe permite iludir-se e curar a “ferida da existência” ; o outro que se envolve na sedução que a arte lhe traz e ainda aquele que usa a “consolação metafísica” que o leva à ilusão da eternidade, para não falar de todas as ilusões mais fortes que a vontade prepara a cada momento.
    O preço para qualquer dessas ilusões é alto e desencorajador.
Aparenta-se com aspetos que Simmel aceitará na sua estrutura dualista, mas com forte alteração no sentido da dualidade.  Para Nietzsche há forçosamente a noção de duas culturas. A cultura de elites, que implicava uma aristocracia do espírito, mas, à qual poucos quererão ter acesso pois não traria nem bem-estar, nem reconhecimento popular e por outro lado, também não era acessível à mulher. Desde o rompimento da sua amizade com Lou Salomé e a sua rejeição a todos os despropositados e insistentes pedidos de casamento que lhe fez, tornou-se desesperado e rancoroso para com as mulheres.    

 

Figura 21- Lou Salomé, com uma mente brilhante e uma beleza rara, foi uma "Femme Fatalle malgré soi" porque encantava mestres e intelectuais sem se dar conta disso

 

A paixão e a exasperação tornaram conta do seu espírito para escrever uma obra devastadora “Assim falava Zaratustra”. A mulher, afirma-se aqui, pela sua negatividade e pathos que o eleva muito acima do comum dos pensadores. E ele sabe disso embora nesse tempo fosse um filósofo quase desconhecido.

 

 

 

Figura 22 - O efeito espantoso que Lou Salomé ao recusar-se a Nietzsche causou na sua criatividade

 

 

A sua explosão criativa em “Assim falava Zaratustra”, escrita ainda sob a forte impressão de despeito, teve foros de o rebentar de um vulcão. Desespero, orgulho ferido, uma febre de escrita torrencial que se transforma numa série de aforismos que revolucionam a sociedade, os costumes, a cultura. O próprio Nietzsche sentia também a experiência pessoal da rejeição da sua obra e do valor do seu pensamento. O que a sua obra advoga é a antítese do que ele sente, doente, fraco, combalido e sem reconhecimento pelo seu talento. Depois, os fracos recursos que obtinha para viver e as tentativas mais diversas de modos de tratamento e de remédios, mostravam-lhe bem que, qualquer grande artista, pensador ou até um génio, poderia viver sem o reconhecimento dos outros e sem escapar a fortes dificuldades materiais.
    É pois o verso do que se considera a norma e o social que o filósofo mostra, para provar a decadência e a doença da Europa, que descende de um socratismo e o seu rebanho dos fracos com o seu ideal “tu deves”. Antes pudera ouvir-se nas florestas de outrora, o apelo ao homem superior: tu podes!
    É então que aparece essa outra forma de pensar nietzschiana, distante do seu próprio tempo, acerca da dignidade e da liberdade. Nietzsche considera que o tabu mais forte a que se obedece é o dogma da liberdade. Todavia não é verdadeiramente a liberdade do homem. O preço a pagar por essa ilusão parece-lhe ser o da própria dignidade.  Ora o que deseja Nietzsche nessa nova cultura?
     Uma separação de duas castas, ou então, com mais rigor, do que também se pode designar por rebanho e do que se pode chamar homem superior. Esse que sonha que vai surgir. O homem trabalhador vive muito mais duramente do que um escravo e prescinde de tanto que a sociedade lhe retira, mas lhe promete a liberdade que afinal não tem. Mas não se interroga nem hesita acerca do caminho que segue. Por isso “ (...)
os escravos vivem com mais segurança e felicidade que o operário moderno, (...) o trabalho do escravo é muito pouco trabalho em comparação com o do ‘trabalhador’.” p. 276) ”.[10]

A casta do trabalhador está no mundo para a sua felicidade, as suas ambições e os seus interesses. Já o homem da casta superior cumpre uma vocação, Não é feliz, nem terá êxito na terra. É, na sua inversão de valores, o homem ocioso é o que descobre que tem talento, um destino pessoal superior que é a sua vocação e á qual se submete. 
    Assim o espírito dionisíaco com toda a sua desmesura e loucura que se cria e destrói, está “para além do bem ou do mal” assume a vida superior sem limitações, enquanto a visão apolínea segue o racional, luminismo do meio-dia. Este paralelismo não tem ecos nos demais pensadores da sua época. Mas os homens da meia-noite são os homens do mundo, a sua potência para lá da vida, em todas as obras a vontade de viver dá lugar a uma vontade de dominar. Essa é a vontade do mundo e do que se manifesta no homem na vontade do poder. Esses homens não são ainda os de espírito superior. Cedem aos caprichos das verdes pastagens, ao dinheiro, à sua ambição pessoal. Mais do que escravos, podem viver alegres e ausentes de interesses que os da ociosidade procuram. Assim a inversão de Nietzsche continua através da análise do que nós valorizamos.
    O seu “Sim à Vida” é uma renúncia à felicidade superficial, segundo a visão do trabalhador traído por uma falsa liberdade que se lhe oferece. A Vida substitui todas as outras explicações da luta contra o racionalismo e a moralidade reinante para ser a vitalidade da cultura. A vontade em Nietzsche torna-se um valor só possível para um determinado homem de génio com uma vontade superior que é capaz de quebrar as cadeias, revoltar-se e começar de novo. Acusa toda a civilização a partir de Sócrates, para ele repulsivo e fascinante com a dialética, tornando a luta pela razão a descoberta da decadência e o último recurso dos fracos e débeis.
    Assim haveria uma cultura superior, mas para essa teria de renunciar ao bom pasto do rebanho, viver para uma cultura sadia, forte, que enaltecesse um ideal de novo mundo.

 

Figura 23 - A suprema utopia de Nietzsche acaba por ser no seu próprio insucesso pessoal uma afirmação que nos arrasta à tragédia e à escárnio do progresso e da superioridade da condição humana.

 

A boa vontade de Kant, esse “tu deves” da universalidade racional, passou com Schopenhauer a poder da vontade para tombar na vontade do poder que se assume como a última realização do Homem, ou seja Dionísio, ou seja a utopia. O renascimento cultural dá-se pela música e pela arte com o sentido do trágico dos pré socráticos.
    Um hóspede bem inquietante instalou-se na cultura europeia, no dizer de Nietzsche. Tudo é falso e carece de sentido. A desconfiança instala-se. O niilismo chega tal qual uma lei que se oculta no devir histórico que foi a mentira que partiu de Sócrates e apela para uma necessidade imperiosa da transmutação dos
 valores. Ora isso não pode partir do “rebanho” da democracia, da autoridade-
É muito importante insistir em que tal elite, dos homens superiores, assinalada pelo filósofo, tem a característica de, serem uma escolha de espíritos livres, naturalmente masculinos e que nada teriam a ver com a riqueza ou o poder material que, por norma, se liga ao conceito de elite. A cultura que querem os “escravos” aqueles que anseiam um “um pasto verdejante” e possam acumular os seus bens são todos os outros que seguem as facilidades e o mínimo dos esforços para captar a verdadeira liberdade cultural. Gastam a vida no trabalho, em finalidades dispersas e pessoais, são trabalhadores para uma classe que nada tem a ver com uma elite despojada de interesses pessoais, de recompensas ou até celebridade ou reconhecimento dos demais. Este, jamais será de algum modo, o “ocioso” que vive para a cultura superior vai ser a lucidez de Nietzsche que percebe os valores que aparecerão quando declara: “Cheguei demasiado cedo. Ainda não chegou a minha hora. Este grande acontecimento está em marcha mas ainda não chegou aos ouvidos dos homens[11]
    Esse génio que concentra em si toda a força e causa a admiração por essa capacidade explosiva é que vai criar a nova cultura, num regresso à Grécia que restitui a Dionísios e a Apolo o dualismo trágico que gerou a arte na sua contradição. 

 

 

 

Figura 24 - Friso grego de dança de ninfas numa homenagem dionisíaca de explosão de alegria e arte

 

 

 

  Ora Simmel propõe também um dualismo, mas perfeitamente distinto deste. Em vez de um espírito inflamado pelas auroras de um futuro que unia a dor e a alegria, num ideal que mostraria a capacidade criadora da transcendência do próprio homem, Simmel reflete sobre os fenómenos sociais mais do que sobre a cultura existente . Afinal o homem é apenas uma ponte, afirma Nietzsche que suspeita do passado e suspeita do presente. Ora Simmel vai afirmar que o homem “nunca pode viver sobre uma ponte” e aceita uma estabilidade social e, sobre esta, um manto de cultura que também divide em duas formas como o seu mestre.

 

Figura 25 - A influência apolínea no sentido contrário às forças dionisíacas são a contradição e a racionalidade na exuberância da paixão criadora

 

Mas Nietzsche, no seu prodigioso discurso, no seu mais ardente desejo era perceber para onde iria o destino do homem. É na arte que encontra a possibilidade da criação que é o segredo da vida. Nos seus contrários, o apolíneo e o dionisíaco, na tragédia, na dor na vontade e na força do génio está o progresso e nunca na multidão, na massa que ele condena por completo.

 

 

 

 

 

Já com Simmel haverá a cultura subjetiva aquela que atingia a mulher e a “objetivação do espírito” seria masculina, com raras exceções. Mas quando essa possível exceção sucede à mulher é porque ela seguiu um pensamento masculino o que lhe roubava a realidade da sua essência. A unidade da cultura não é assexuada, acrescenta, pois as duas formam a tal síntese cultural de cada época. Assim, para justificar o que pensa ser um “subdesenvolvimento” feminino recorda muito seriamente as palavras do seu mestre Schopenhauer e que considerava que as mulheres “crianças grandes”. [12]

 

 

 

Figura 26 - Quadro de Jules Girardet.

As jovens são incapazes de tomar a vida a sério. Para Schopenhauer brincam como crianças crescidas.

 

 

 Tal como o seu mestre, o sociólogo não se refere a um analfabetismo populacional nem à ignorância cultural, mas a toda a atividade que a mulher pode exercer no que é um conceito seu muito próprio o interior, o salão, em suma a “casa”. Ao tentar aceder à cultura objetiva, a mulher mostraria as suas fragilidades e haveria mesmo uma série de profissões de que era incapaz, pois tanto o seu espirito como a fragilidade do seu físico não eram condizentes.
    A leitura do texto de Simmel mostra a enorme influência que Schopenhauer também teve nas conclusões acerca da cultura feminina. Os esboços das atividades que o filósofo do pessimismo assinala como as apropriadas para o sexo feminino, são as que mais largamente o sociólogo defende. Infelizmente confunde natureza feminina, com o que é um efeito social e cultural. Chega a considerar que, mesmo quando a mulher escreve sob um pseudónimo masculino, esta “não faz a menor ideia do que de especificamente original e significativo poderiam criar enquanto mulheres
[13]
    A cultura objetiva seria então a que se pode elevar e adaptar ao homem, esse que já atingiu os graus académicos que certificam a sua cultura objetiva, aquela da qual se orgulham os alemães nos seus poetas e artistas.  A noção de “Bildung” toma outra dimensão quando se refere à duplicidade cultural objetiva e subjetiva. Se temos, nas lições de Nietzsche, uma noção inicialmente reformadora da educação, depois é elitista da cultura facilmente explicável pelos exemplos que o então jovem professor aponta. Já a separação da cultura em Simmel é baseada na divisão do género e não das elites face ao rebanho que sempre prefere o pasto farto e a subsistência garantida às agruras de um viver materialmente pobre mas onde só o homem superior convive com espíritos como os dele.
    É importante salientar que a noção de elite e de ócio traduzem uma forma de pensar a vida em função de valores e de uma radical dignidade, tanto mais que o ócio só pode ser de quem pouco relevo ou força económica possui. Em tudo, Nietzsche condena a sociedade que nos deu dogmas e retirou dignidade. A paixão e a exasperação tornaram conta do seu espírito para escrever uma obra devastadora. A mulher, afirma-se aqui, pela sua negatividade e pathos que o eleva muito acima do comum dos pensadores. E ele sabe disso.
    A mulher é pois vista apenas como mãe e geradora do Homem. Não passa de um ser de superfície e o homem é que tem a profundidade dos abismos.

 

 

Figura  27 - Quadro de Rosenthal, A mulher reduz-se passivamente à sua essência materna e a cultura será sempre de cariz masculino.

 Há nesta imagem uma certa semelhança com as imagens de Nossa Senhora, Virgem Mãe.

 

   A análise destes autores sofre de uma deformação impossível de ultrapassar. É uma escrita de homens para ser lida por homens que se interessem por conhecer facetas femininas que apresentam uns aos outros. A base desta reflexão estaria numa observação psicológica de mulheres que os rodeiam e nelas encontram as qualidades e defeitos que melhor adaptem a mulher ao ambiente de acordo com a subjetividade e a objetividade cultural. É pertinente ver que a exigência de canalizar a obra feminina para a cultura estabelecida  e a causa do seu “fracasso” pois é óbvio que se deve a ter de se submeter aos moldes masculinos e à cultura objetiva à qual não pode ter acesso pela sua própria essência que a natureza lhe concedeu .
    É nesse enigma para o masculino de uma outra forma de cultura que a mulher possa criar, sem ser submetida à cultura masculina, que está uma das melhores análises simmelianas. O que se revela fora da possibilidade de investigação é que está fora do entendimento do que não pode participar. Não podendo examinar o diferente que separa e cria sempre um conflito entre homem e mulher. Eliminar a diferença colocando-se do lado da história escrita e da vivência feminina no cerne do seu devir, toca na pedra angular da história, que temos de aceitar ter sido sempre escrita por homens para homens e o contributo feminino fica oculto da superfície e esta é o se revela pois só é histórico o que deixou testemunho, algo comprovado e escrito. No abismo das águas está a condição humana, algo tão profundo que elimina o verdeiro e o falso de tal modo que o enigma da história radica no enigma da mulher.
        A conclusão é a condenação e incompreensão simelliana do progresso económico na forma como este se estava a dar e a sua falsa noção da essência criadora que a presença secundária e oculta da mulher trouxe no desenrolar da história.

 

 

Figura 28 - Caricatura do citadino, presa do consumo e dos seus apelos constantes

 

Com os seus privilégios de classe, ainda pode ver de longe, as transformações que o urbanismo estava a trazer, mas sonha com uma sociedade elitista, de intelectuais e pensadores, que nunca se poderia reduzir às relações comerciais, fabris e outras. Estas realidades, na sua visão, sempre se submeteriam a outras culturais que elevariam o social. A sua predileção pelo colecionismo de objetos raros e requintados era grande, algo comum em toda a Alemanha, quer Viena quer Berlim onde isto é mais notório.
    A noção de cultura que Nietzsche
[14] propor mostra toda a ilusão que se criou acerca da noção da liberdade e o seu exercício que conduz a uma falsa igualdade. Por isso se fala em nome de uma proclamada “liberdade”, a qual não se pode discutir mas aceitar como dogma, tabu que lidera toda a vida dos novos “escravos” mas não do homem livre. Isso obriga-nos a rever e a pensar na escravidão de forma diferente e em função da sua oposição do ócio na sua aceção primitiva e de viver para um plano superior que em nada se compara com o negócio: “(...) o trabalho do escravo é muito pouco trabalho em comparação com o do ‘trabalhador’”. A cultura extingue-se com esta escravidão que se aceita paradoxalmente em nome de uma liberdade que retira a difnidade huama e reduz o homem a uma peça para a produção geral.
    O trabalho insidiosamente vai afastando toda a condição humana para dar lugar ao modo como se encara o trabalho. Toda ou qualquer atividade que se afaste do dever inconscientemente interiorizado de trabalha faz com que se diga peremptoriamente para acabar com divagações ou cultura, numa ligeira palestra de ócio.

“Bom, agora vamos ao trabalho.

Com tal frase, aceita-se um corte total com a esfera familiar, o lar, o domínio doméstico, afetivo, ou humano. Claro que com isto a mulher sofre um perfeito corte com tudo o que era a sua condição humana. Isto já Nietzsche vislumbrava nos seus aforismos carregados de profecias. Assim o ocioso é aquele que vive para bem da humanidade e nã em função dos seus interesses. Esse é o escravo que não se pode comparar com a noção tradicional de escravo pois é um homem que tem um fim definido e objetivos pessoais na vida.

 

 

 

Figura 29 - As memórias de ontem são um longo olhar melancólico sobre uma Viena recordada com traços de infância

 

 

Sendo bom observador, Zweig reparara que essa era uma prerrogativa e prova de delicado bom gosto dos judeus de “boas famílias”, conceito que recordava ainda quando a sua ingenuidade infantil aliava à confiança entre todos. As memórias dessa época de solidez e certezas face ao mundo circundante contrastaram grandemente com o fim trágico da sua vida.
    Viena, após uma era grande cultura, arte e concertos e espetáculos, foi perdendo o brilho e a beleza que lhe emprestavam as velhas famílias ou as ricas famílias judias. “Quem vivia em Viena respirava no ar o sentido do ritmo e os escritores traduziam na escrita essa musicalidade
[15]

 

 

 

Figura 30 - A música e toda a cultura impregnava o espírito vienense

 

A arte dava uma noção de segurança, tranquilidade e de viver sem pressa,  para experimentar a beleza que parecia desabrochar com o quotidiano.  Já a nova aristocracia e as formas de vida que vinham de Imperado e da sua austera e gelada corte, só manifestavam o gelo severo e taciturno do espírito de um poder a quem nada interessava a literatura.
    Quanto mais envelhecia, mais sombrio e austero se tornava, se bem que o sofrimento da morte do filho Rodolfo e da esposa pudessem causar essa frieza de quem mais lia do que as ordens e decretos militaristas. A sua vida privada, a hipocrisia moral e os espiões que o rodeavam tornam este imperador mais carregado de duplicidade e de facetas pouco vulgares. A atmosfera cultural que Zweig recorda era tecida de fios invisíveis entre artistas, músicos, melómanos, numa atmosfera de sacralidade da cultura que se sentia apagava os interesses pela política, economia. Os vieneses de todas as classes vibravam com a cor e a música num processo que podia ter florescido se os ventos da guerra não soprassem sobre toda a Europa.
    Nietzsche ou depois Spengler vieram desvanecer os sonhos da cultura superior, quando as massas se manifestam rompendo com a serenidade e a atmosfera cultural para expressarem um ódio insuflado por longos tempos de recalcamento.   Tudo o que era música ou cor tinha de se expressar como festa e assim acontecia com as procissões, enterros ou paradas militares. Essa sensibilidade por todo o que fosse cor, música e festa, esse gosto pelo teatro como jogo e reflexo da vida, quer fosse no imaginário, quer na realidade, eram fenómenos sociais que toda a cidade compartilhava.
     Os jornais eram a prova desse interesse desmesurado pela cultura dado o relevo com que tratavam assuntos artísticos descurando muito qualquer outro tema. Eram os aspetos culturais que mais interessavam os vienenses que se interessavam pela leitura dos jornais.

 

 

Figura 31 - O livro foi durante séculos o transmissor e a presença viva da cultura

 

 

 

 Já Simmel, em Berlim, entendia que numa visão mais abrangente da cultura mas que depressa se dissolveu Simmel via que “o jornal resultava da atuação de diversas pessoas, mas se transformava em objeto cultural sem uma unidade de espírito. Os elementos reuniram-se segunda uma lógica sem criadores, mas interior a eles como realidades objetivas.”[16] Ora ambos os escritores partilhavam de uma ideologia que via em todas as manifestações possivelmente culturais, uma etapa para atingir uma superioridade do espírito o que veio a desmoronar-se por completo.

 

 

 

 

 

Figura 32 - Monumento a J. Strauss o músico das célebres valsas.

Harmonia, cor, musicalidade, tudo parece oferecer uma serenidade que em breve se vai desfazer

 

 A cidade da música, dos artistas, das primeiras mulheres que se interessavam vivamente  por arte e até pela psicanálise era um cadinho de criação que bem depressa se tornaria num cativeiro fatal para a maior parte dos habitantes. Em breve, tropas e tambores troariam sobre as suas cabeças e a confiança uns nos outros desaparece como aquela segurança de bairros e casas que pareciam a salvo eram transformadas em ruínas.
     “Viver e deixar viver” não era tido como fraqueza, mas sim como uma tolerância que abarcava todas as classes e o gosto pela cultura generalizava-se. Os nomes de escritores, artistas e cientistas que cita e viveram nessa época só demonstram que era real a sua visão, por certo já com algo de imaginário que a melancolia lhe atribuía.
    O quadro geral é de uma forma de cultura que tocava a todos. Porém, o velho imperador, desatento a tudo o que fosse arte ou literatura, só levava a sério os ventos do militarismo, que depois trouxeram as grandes tempestades do fanatismo e da loucura que arrastaram as massas e vieram pôr termo de forma inimaginável e aterradora a toda uma vida onde a segurança se aliava à tolerância num plano em que a cultura florescia. Os nomes das celebridades vienenses dessa época, quer músicos, artistas, escritores são uma prova de que Viena teve uma primavera que terminou num banho de sangue que a loucura da intolerância causou.

 

 

Figura 33 - A cultura submerge sob o caos da barbárie dos povos e do ódio sem limites

 

 

O horror de tudo isso sofreu Zweig, demasiado sensível para suportar as sucessivas perdas não só afetivas, mas principalmente a perda irreparável das raízes de uma tão forte como bela cultura. Na sua carta de suicídio, apesar de todo o terrível pessimismo que sentia face à horrenda boçalidade, intolerância e fanatismo em que via mergulhada a cultura europeia que tanto amara, deixou um clarão de esperança num futuro que considerava não ter já forças de esperar ou sequer de recomeçar.

    Assim, em boa hora e conduta digna, achei melhor concluir uma vida na qual o labor intelectual foi a mais pura alegria e a liberdade pessoal o mais precioso bem sobre a Terra. Saúdo todos os meus amigos. Que lhes seja dado ver a aurora desta longa noite.
(1942, em Petrópolis. Brasil)

 

 

 

Figura 34 - Este suicídio integra-se nos intitulados fatalistas.

Para Durkheim designa-se por uma lenta desagregação de um social em que deixou de crer e nada encontrar para obstar o fim.

 

 

 

As crises e as duas guerras que atravessou foram evocadas na forma como via uma cultura de refinamento do espírito, no culto pela arte e pela música, no teatro, colocam Zweig numa espiral de saudade cada vez mais depressiva e, no entanto, ainda mostra alguns laivos de esperança como se pode ler na sua obra “Brasil, país do futuro”. Já para o sociólogo esse requinte torna o salão e a casa, locais onde a excitação e a brutalidade da modernidade não chegam. Aí é que melhor se cultiva a subjetividade da mulher e onde a feminilidade aparece no seu esplendor, sem necessitar de trabalho, produção ou talentos objetivos.
    Inexoravelmente, uma barreira cada vez mais frágil separa esses salões literários, tão requintados e elegantes, da invasão em força das massas por todo o lado.  A tragédia que agora se vai viver é o dualismo de duas culturas, no sentido mais lato, porque com as premissas teóricas o futuro não se escreveu e sem poderem conciliar-se, aniquilam-se mutuamente.
    O nosso presente, nada mais é e, paradoxalmente, isso é tudo, é a formação de uma nova cultura. Terão acesso, homens e mulheres, mas com ecos das profecias do professor da universidade da Basileia. A globalização e a construção de uma consciência planetária evocam o rebanho e as elites. Do mesmo modo as pradarias verdejantes atraem multidões enlouquecidas pelo êxito, fama ou poder. Na sombra, como elites que também George Steiner refere, ao contrário do que escreve,
Mário Vargas Llosa a seu respeito, que não concorda com o pessimismo steineriano, “a cultura é um convite.” [17] 
    A isto Llosa mostra a sua real irritação por tal pessimismo evocando no prefácio da obra que traduziu, e a opinião que contesta neste ensaio “um protesto contra a banalidade e vulgarização dos produtos culturais de consumo: “Não é a censura política o que mata a cultura: é o despotismo do mercado e os incentivos do estrelato comercializado”. Ora se o salão foi inicialmente uma forma algo tímida mas relevante para a cultura e para a libertação dos espíritos no seu conjunto masculino e feminino, para Steiner a noção de uma Europa onde o espírito ainda reinaria, situava-se nos cafés por serem mais recentes e visíveis. Mas há, de novo, o esbatimento do elemento fundamental do feminino. À roda de uma mesa de café, a superfície da história pode ser revista e até escrita. Mas a realidade é mais profunda e contraditória.

 

 

Figura 35 - A noção de cultura europeia aqui patente é marcadamente masculina e fechada a qualquer tipo de influência das mulheres

 

 

A Europa é feita de cafés. Estes vão do café preferido de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos bandidos de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. […] Desenhe-se o mapa dos cafés e pastelarias, e obter-se-á um dos marcadores essenciais da ‘ideia de Europa’.
    Quando esta “ideia da Europa” se transmuta numa multiplicação de intervenientes de todo o mundo, numa linguagem nova que a Internet proporciona, teremos a noção de uma cultura global, onde, ao lado do mais alto e nobre do espírito, convive o comercial, o estupidificante ou o fútil dos géneros. A cultura, que nunca foi uma prerrogativa europeia, mas nela se concentrou, alastra-se e comunica-se a todos os espíritos que aceitem o convite. Mas agora, esbatem-se cada vez mais as fronteiras entre os dois sexos.

    Do imenso tumulto e transformação do que hoje se quer comunicar ao falar de cultura, nem Schopenhauer, nem Nietzsche e muito menos Simmel se iriam aperceber da mudança do espírito da mulher. O que era um enigma aceite por todos é que agora se dê o fenómeno oposto.

 

 

 

Figura 36 - Pintura de Elisabeth Blaney Plaston.   O livro que esta jovem adolescente lê é o Futuro da Mulher

 

A mulher consegue ler estes autores entre muitas obras e entende-los sob a sua perspetiva. Agora há uma unidade que é a possibilidade feminina de ler a escrita masculina consciente da diferença. A dupla consciência de ambos, de tudo o que une e separa a mentalidade objetiva e subjetiva, para usar termos que Simmel aplicava, é, nem mais nem menos, que uma nova condição humana com situações e contextos diferentemente compreendidos e vividos por mulheres e homens, numa partilha de cultura que não pode ser de antagonismo nem de igualdade.
    Note-se que, se mudou a subjetividade feminina, o mesmo tem de se dar com a subjetividade do homem. A mulher não deixou de participar e cada vez mais participa da cultura objetiva, mas não pode ser por assumir um falso sentido masculino. Só assim o cerne da totalidade se altera. Simmel não teve a perceção dessa possibilidade já estar ao seu alcance visto preconceitos atávicos lhe tolhiam a escrita.  

 

 

Figura 37 -  A violência direta contra as mulheres tende a desaparecer.

Mas a violência simbólica aumenta com muito mais vítimas na pressão social coletiva e dos mas média que perturbam cada ação feminina

 

A mulher, depois do horror das guerras, dos genocídios, do direito do voto, da sua emancipação e real direito ao seu corpo, altera as premissas lógicas de onde parte a cultura até agora teve um pendor desvantajosamente masculino. O encontro com o Outro, se conseguir abolir o dualismo de colocar de fora o diferente e de aceitar a analogia dará a cada qual capacidade de se ater à sua própria consciência do mundo. É daí que partem dois seres diferentes. A igualdade ou a liberdade perdem o sentido que o social que quer dar e escraviza sempre. Há a contradição hegeliana indissolúvel como há o dualismo, ou o senhor e o escravo. Sabe-se que a consciencialização teria de partir do escravo mas também se tem de ter em conta que só atinge a revolta real quando sente que nada em a perder pois se encontra absolutamente desesperado e cônscio da sua situação. Ora as circunstâncias, por terem muitas modalidades de alienação e sempre existem formas que ocultam a um e outro dos opositores a sua essência e a sua alienação, a revolta é uma utopia.  O problema é tanto mais grave quanto a força impiedosa e constante da imprensa, da publicidade e da oferta de objetos de consumo aumenta. A imagem feminina é trabalhada em empresas e laboratórios que preparam milhões de formas de aliciar a mulher no que toca aos cuidados com a aparência que depois se transformam em gastos incontroláveis. Esta é numa forma que se diz já da vida social que se relaciona com a cultura na sua superfície  a que toda a burguesia e não só quer participar. A cultura feminina pode dizer-se que já não é subjetiva. Tornou-se num subproduto cultural a que se pode chamar cultura cor-de-rosa.

 

    

Figura 38 - Caricatura.  A cliente secreta

O fascínio do consumo multiplica-se pelos papéis, imagens e aparências que a pressão social obriga sob a forma de culturalismo que se impõe a todas  as idades, raças e credos. Por traz do consumo não está o vazio mas o lixo aterrador

 

 

A cultura que se veicula com a arte sofre no século XX uma transformação como nunca tinha acontecido. A quantidade supera por completo a qualidade. Os meios postos à disposição dos artistas são completamente novos e caem em catadupa num público massificado. Os critérios de continuidade, novidade e originalidade são distorcidos. A banalização de objetos, a fugacidade da moda e mil e um artifícios para atrair a atenção de um público cansado da monotonia de um quotidiano marcado pelo trabalho absorvente criaram um estranho mundo novo. A mulher perdeu a definição dos seus papéis definidos nem critérios de valores que a realizem no trabalho ou na família.
    Em vez da pretendida emancipação surgem alienações na competição com o sexo oposto, com toda a multiplicidade de tarefas, de obrigações e cuidados a ter com a sua imagem. A constante mudança de papéis que agora cumpre rouba, mais uma vez, a sua consciência de si e uma noção de dignidade que se move entre o ridículo, o caricato, o artificioso e a busca de uma realização pessoal que se move na indefinição que o privado e público confunde.
    Com toda a crítica à cultura industrial, tanto de Adorno como de Horkheimer, o tema toma mais foros de luta contra o capitalismo industrial que nos cerca cada vez mais. As referências ao tema feminino não centram o problema na vítima em que novamente a mulher se torna. Toda a cultura das massas tem essa falta de consciência feminina da sua essência e a exploração tanto pelo desejo de agradar na dependência simbólica, económica e cultural. O interesse pela arte é ambíguo com objetivos de lucro e de afastar a atenção para os verdadeiros problemas sociais.
    O pragmatismo leva o público a desinteressar-se por aprofundar conhecimentos e parece esmagado pela informação superficial, sempre diferente e que nunca passa da quantidade para aquela qualidade superior que tantos esperavam.
A era que temos é de um pragmatismo onde o lucro é o objetivo mais forte. Assim o intelectual, quer seja homem ou mulher, é afastado da cena seja ela social. Política ou cultural. A pressa com que tudo é vivenciado não permite uma clarificação ou aprofundamento de dados. Que aconteceu ao intelectual de outrora?

 

 

 

Figura 39 - Pintura caricaturada do homem de génio, do intelectual e do poeta.

Para Nietzsche isso aconteceria pois o homem superior não é o rico e bem sucedido. É sim o que vive aceitado o seu Sim á Vida e a alegria, a incompreensão e o desprezo do rebanho é a ponte por onde se chegaria até ao Super Humano do regresso integral à vida

 

 

 

Figura 40 - Hoje acontece que o intelectual é visto como desconfiança, se não com troça.

O intelectual fica de fora do social. Ou porque não é aceite ou porque é rejeitado por uma maioria que não quer quebrar a ordem.

 

Caricaturado pelas multidões das massas que o consideram desnecessário e sem uma opinião válida, desprezado por especialistas nas tecnologias e na informação, é logo posto de parte, pois face à rapidez da comunicação e ao pragmatismo, traz uma lentidão, aparência inútil face à maioria do público. Por outro lado, sentindo-se acossado, fora da sua esfera, prefere viver encerrado nas redomas das instituições académicas.
     A comunicação tem em si mesma a sua existência pois é apenas o facto de comunicar sem interesse pela mensagem. Reside aqui a contradição desta atividade presente nos mass media e em tantas outras formas. O vazio da mensagem na comunicação está na informação que não se traduz em novos conhecimentos. A era da informação é também a era da comunicação, mas isso implica um vazio de que espetadores não se dão conta e de que são atores exímios os comunicadores. Em pouco tempo reduzem toda a informação a repetições sem contudo e com um falso pragmatismo repelem aprofundamentos e passar ao conhecimento.
     Nas catedrais do saber não há já poder. Este esvaziou-se transformou-se em política, em arma de longo alcance com palavras e até com armas. Esvaziou do poder e, sem intervenção social há uma longa repetição exaustiva mas que se curva sobre si mesma.   Aí se exerce um falso poder na bizantinice dos ensaios em que discutem sobre temas debatidos até aos mais recônditos pontos, numa linguagem barroca, desusada mas vazia, desprovida já de vida e que só enche aflitivamente livros de assegurado bolor. Aos intelectuais apenas lhe pede informações mas nunca, ou raramente, conhecimento ou cultura. Isso, ninguém pode pedir a ninguém neste curto tempo. Um diálogo cultural exige o que a sociedade não tem para dar: paragem, ócio.
    O lazer ou a informação com sentido pragmático estão muito longe das conversas dos antigos salões, dos lentos cafés da Europa e cada indivíduo nem tenta encontrar um tempo de reflexão. Há uma solicitude excessiva sempre presente que não nos permite meditar profundamente sobre o que somos e que sentido se está a seguir. A solicitude rodeia-nos com nuvens se sorrisos, de canções e de delicadeza que nos engana porque não somos capazes de ver que escondem o perfeito vazio. 
    Se o cientista é temido ou admirado por um prémio Nobel que o tira da sombra por momentos, já no que toca à cultura a sua banalização e superficialidade mostram a ruina de uma sociedade onde tudo está ao mesmo nível. A falsa democracia e a falsa liberdade só favorecem o lucro de num neocapitalismo com um leque de formas manipuladoras tanto mais tirânico como mais global e disfarçado. 
    Sem grande distinção entre os dois sexos, para além da maternidade e o peso, que onera a mulher, muito mais do que o homem, o trabalho é o paradoxo que tornou a feminilidade mais subjugada, mais reprimida na sua essência por pressões sociais que se revelam escravizantes desde a infância e já desabrocham na adolescência. A sociedade de hoje parece oferecer um “ compasso de espera” aos jovens estudantes mas em vez disso oferece-lhes um vazio cultural, uma degradação e até uma anomia completa de valores. O trabalho não se assemelha ao do servo
porque o trabalho é a monotonia e a repetição de tarefas sem sentido, alheias ao homem ou à mulher, todavia é o motor coercivo da vida pessoal, no seu todo, obrigando a um sacrificio de tempo, rotulando o ócio de lazer, sem dar azo à reflexão e, se toda a disponibilidade deve ser para o trabalho, a cultura passa a ser diversão, entertenimento, formas de espetáculos dionísiacos na sua embriaguez e alucinação coletiva. A vida noturna, ao longo das horas que passam, liberta as forças do homem primitivo que foram controladas durante o dia.

 

 

Figura 41 - Depois seremos nós que temos de ser colocados "Do lado de fora".

 A libertação do lixo é bem provisório

 

 

 

A cultura transformada em culturalismo aumenta em grande quantidade as necessidades de consumo que é imparável. Mas não eleva o espírito e a sociedade através da ideologia impõe o que se deve ler, ver, preferir. A arte não consegue manter um sentido. Nem partindo para o “non sens” se não há objeto ou artista que não estejam como nunca sob a máquina industrial. Tanto as mulheres como os homens não se libertam de uma falsa arte que experimentou todos os caminhos e chegou ao zero. Ainda tentou ir mais além mas não há nada que a sociedade se negue a consumir. Do consumo ao lixo vai um passo e da sociedade que temos o que de mais pesado e horrendo é o lixo em todos os sentidos que produz e ao qual não nós próprios não escapamos.

 

 

Figura 42 - Quadro do  pintor Vassili Valilievich Verseshchaginl.  Que resta da riqueza dos povos, dos sonhos, ódios e afetos

 Os corvos no seu grasnar, acompanham a derrota da cultura

 

A dança, o filme, o espectáculo, o ambiente degrada-se como se, de novo, as bacantes viessem com o seu canto do bode para a cidade num retorno que não deixa de nos interrogar. Quando o lixo esmaga a sociedade e a ordem, o trabalho e o consumo se mantiverem as falsas formas de cultura continuarão.

 

 

 

Figura 43 - A essência do dinheiro é o vazio quando nada mais se puder trocar.

 Usando as palavras de Simmel, até quando o homem é o "animal de trocas”?.

 

Mas as margens comprimem cada fez mais os centros.   A ilusão da democrasia é já uma farsa, as manifestações culturais são anti cultura, anti sociais, até atingem o anti grau de anti humanismo. Nas cidades industrais do mundo inteiro os espaços são invadidos pelo mais vulgar dos lixos que demonstram a desordem a chegar já aos centros. Sem poder conter tudo o que se destroi, sem poder parar a máquina do comsumo crescente, as cidades perdem a beleza, o trânsito é caótico e um simples passeio, em muitos lugares é um privilégio raro, para as “caminhadas da saúde” que só podem ser em falsos jardins, os ginásios, centros da cultura do corpo e do hedonismo.

 

Figura 44 - Hoje, este exemplo de Nápoles, mostra um horror que se aproxima. Qual a cultura que sobrevive?

 

 

Em breve, a circularidade do dinherio, nas suas mais variadas formas, perde o sentido que subiu tão alto e se pode reduzir repentinamente a Nada.

 

Figura 45 - A globalização faz circular o dinheiro.

Mas é preciso que se troque por produtos. Se assim não for o capital desaparece e o metal sonante representa zero

 

 

A racionalidade da produção levou ao trabalho na sua maior abtração. Ninguém duvida de que o ser humano tem uma série de atividades socio culturais em todo o tempo e ligar. O que está a acontecer é a dissociação do tempo e do gasto da força completamente alheios aos seres que assim passam as suas vidas, transformando-se em mercadorias e submetendo toda a sua vida a essa ativiadade que lhe é tão abstrata. As suas necessidades e interesses, as suas motivações  no que pensa ser o que de mais privado têm, revelam que estão submetidas inexoravelmente ao tempo e espaço, ao ritmo desse trabalho a que absurdamente está alienado.

 

 

 

Figura 46 - A circularidade da produção alheia-se da realidade e o pesadelo será a incapacidade da continuação pois não há fora

 

    A tentativa de uma separação entre a vida pública e privada dá-se pelo que se pode chamar a dualidade da culturalidade. Se na maior parte dos casos, o dia se pode dizer apolíneo e toda a semana um ritmo de lógica que pautura pela maxima produção e tarefas que na sua particularidade não se revestem de interesse para esses seres humanos, diligentemente ocupados, com todos os ritmos e ritos da lógica a presidir à globalidade dos seus atos, a noite,especialmente os fins-se-semana, transformam-se numa vivência dionisiaca, com os seus adeptos e toda a libertação das forças vitais que se libertam numa outra vivência que nega qualquer lógica, mas uma busca do prazer, do gozo e do esquecimento da realidade.

 

 

Figura 47 - É caridade ou medo? Consciência pesada ou pensar já no futuro ?

As margens não serão assim tão dóceis e capazes de atitudes de humilde submissão Outras margens são capazes de comprimir os grandes rios, pelo menos assim pensava Brecht

 

 

Enquanto nos lares os idosos tentam sobreviver mais uma noite, as crianças dormem serenas e as margens sociais se agitam em desespero, no centro, a noite avança com todo a sua farsa que vai dos programas televisivos em aumento crescente da violência e da pornografia, a embriaguês com todo o seu cortejo de bacanal reina até ao romper da aurora de dedos cor-de-rosa, tal como dizia Homero

 

 

Figura 48 - As Bacantes, ninfas ligadas a Dionísios.

Delas teria surgido a tragédia, o canto do bode. A embriaguez e desordem. Origem da tragédia grega para Nietzsche. O cortejo das Bacantes a celebrar Dionísios, por entre danças e exageros sem conta.

 

Obviamente que a posse, o uso e o gasto levam a descartar cada vez mais depressa não só os objetos, que cada vez mais aumentam sem ter fim, como as pessoas pois qualquer realção, seja de que espécie for, familiar, filial ou empresarial ou institucional  tem sempre prazo. A porta aberta para a ilusão de felicidade está prometida por toda a parte mas nunca não pode entrar. A busca ilusória da transcendência da vida numa exterioridade onde não existe, cria nas mulheres uma insatisfação e busca infinda de uma felicidade perfeita. A promessa percorre toda a sociedade sem encontrar  nunca uma resposta.
               Enquanto a noite avança, a sociedede mostra outro rosto. A banalidade de tudo, a perda de sabedoria, um gozo inconsciente que mostra aquele inquietante hóspede de que Niezsche falava e agora está mesmo entre nós.

 

 

 

Figura 49 - Há  um brinquedo no lixo. O menino da bola não

Mas muitos meninos são lixo, seus pais os vendem ou dão. No mundo já não se pode separar nada. Não se recicla seres Tudo está dentro e nada pode deitar-se fora. O  horizonte não se traduz. Nem dia nem noite. O Tempo já acabou?

 

 

Figura 50 - A legenda mais difícil de escolher. A dor da beleza destruída não tem fim.  

Sem beleza, nunca mais saberemos escrever

 

 

 

 

 

Figura 51 -  O vazio social sem ordem, nem lógica.

Uma pseudocultura que é um regresso ao zero Carnaval no Rio de Janeiro. Três dias de loucura, de espetáculo só cor e batocada para não ouvir o silêncio. Depois, tudo será lixo, para retornar no ano que vem.  Um ano de preparação e um dia de espetáculo. Da cultura que tínhamos, teremos chegado ao zero? E depois?

 

 

 

 


 

Bibliografia geral e Notas


 

[1] Simmel, George, O Conceito e a Tragédia na Cultura Extraído de  "Simmel e a modernidade",1998,  Brasília p 23

[2] Simmel, George, Filosofia del denaro, (Philosophie des Geldes, 1900; 2a ediz. accresciuta, 1907), a cura di A. Cavalli e L. Perucchi, UTET, Torino, 1984.

[3] Baudrillard, Jean, El sistema de los objetos, 1969, Edição Seculo XXI , México p. 223.

[4] Jaeger, Werner, Paideia a formação do homem grego, Editora Astra, 1995, p.147

[5] Lima Santos, Mª de Lurdes, Análise Social, vol. XXIV (101-102), 1988 (2.°-3.°), 689-702. Questionamento à volta de três noções (a grande cultura, a cultura popular, a cultura de massas)

[6] Lima Santos, Mª de Lurdes, Ibidem.

[7]  Bourdieu, Pierre, «Le Champ Littéraire. Préalables critiques et príncipes de méthode», in  "Lendemains", n.° 36, 1984.

[8] Simmel, George, A psicologia do dinheiro ,1889.

[9] Soarez, Rosana Kriterion vol.46 no.112 Belo Horizonte Dec. 2005,  Kriterion: Revista de Filosofia. Print version ISSN 0100-512 Kriterion, vol.46, no.112 Belo Horizonte, Dec. 2005, 2.8.13.

[10] Nietzsche , Friedrich, Humano, demasiado humano, 1997, Ed. Relógio d’água, tradução de Paulo Osório de Castro, Lisboa.

[11] Nietzsche, Frédéric, El Gay Saber, 1961 Obras completas ,III, Aguiar, B Aires, p.109.

[12] Simmel, George, Fidelidade e gratidão e outros textos, 2004, Edição Relógio d´Agua, Coleção Antropos, Lisboa , pp 204-207.

[13] Simmel, George, ibidem, pp 220-221.

[14] Nietzsche, Friedrich Humano, demasiado humano, 1997, Ed. Relógio d’água, Lisboa.

[15] Zweig, Stephen, Le mundo de ayer, Memorias de un europeo. Librodot  http/: www.librodot.com

[16] Simmel, George, O Conceito e a Tragédia na Cultura, Extraído de  "Simmel e a modernidade",1998,  Brasília

[17] Steiner, George, Uma ideia da Europa, 2005, Gradiva, Lisboa-