" Memórias de Alice - X "
Os Salões. Ilhas no "Oceano das Massas"
© Lúcia Costa Melo Simas ( 2013 )
" Bifurcações do Tempo "
[ Efeitos da "maré-baixa" no litoral Norte de Portugal. Praia de Ofir. Fão - Ofir. 2008 ]
© Levi Malho.
Figura 1 - Autorretrato de Sabine Lepsius
Através de apontamentos acerca da pintora Sabine Lepsius (1864 -1942) entramos num mundo artístico europeu com centro em Berlim, atravessando épocas bem conturbadas de conflitos e guerras. Em parte, bem se podia dizer tratar-se de um herdeiro dos salões franceses, onde as mulheres se interessavam por estimular os talentos dos seus frequentadores curiosamente sem se interessarem por se tornarem também escritoras.
Figura 2 - A velha cidade de Berlim, antes da grande e rápida industrialização
A bela alemã Sabine, por si só, representava nomes famosos que hoje estão já cobertos de pó, mas que nos levam para o meio das transformações intelectuais da sua época. O seu pai era Gustav Graef, um pintor dedicado a quadros históricos, o irmão um historiador reconhecido e o marido, também pintor, Reinhold Lepsius com quem casou aos 34 anos. Conheceu o poeta Stefan George (1868-1933), com quem teve uma amizade tão profunda que a levou a escrever uma obra biográfica “Geschichte eines Freundschaff ", publicada em 1935, depois da morte do visionário poeta. Sabine foi uma das raras mulheres amiga do poeta.
Este, nos anos vinte, tornou-se um ícone e o mais célebre poeta alemão e figura de culto. Através deste entramos no seu polémico e famoso "Círculo de Georgianos”. Estes são uma faceta ultra secreta, muito poderosa e pouco estudada mas que marcou o destino histórico da Alemanha. Ultraconservador e muito polémico, influenciado por Nietzsche e Mallarmé, foi visto como génio e profeta na sua visão do futuro da Alemanha. Passou a ser perseguido pelos nazis e finalmente refugiou-se na Suíça onde morreu.
Figura 3 - A unidade europeia era uma farsa.
Mas a cultura e os movimentos estéticos circulavam sem peias mantendo uma certa comunidade acima da política.
Sabine sofreu a miséria e a perda de estatutos sociais, pois passou pelas terríveis convulsões do seu país que viu completamente derrotado e perdido por duas guerras atrozes.
Figura 4 - Quadro de Sabine, em que representa o filho protegido pelo profético George Stephen e com estreita ligação ao secreto círculo georgiano
Na grande guerra perdeu o filho e o irmão em poucos dias e veio a morrer ainda em pleno conflito com a Alemanha já perto da derrota final.
Simmel (1858-1918) foi um seu amigo de infância e a amizade manteve-se pela vida fora. Só mais tarde, Simmel também teve um salão com a peculiaridade de se poder tornar num meio de conviver com os intelectuais e pensadores do seu tempo, com muitos dos quais nem sempre concordava. Não foi um académico pois se viu sempre afastado das universidades, possivelmente pela origem judaica como acontecia a outros, e assim o seu salão substituía o convívio com homens e mulheres mais esclarecidos que o frequentavam. Para ele, isso servia para a mulher se manter na sua interioridade da casa, ao mesmo tempo que estimulava uma socialização mais elevada.
O estilo de Simmel, sempre sob a influência de Nietzsche, com quem chega a conviver, recebe também o tom pessimista de Schopenhauer. Por isso chega a escrever um ensaio sobre estes filósofos Schopenhauer e Nietzsche (1906).
As críticas à sociedade e as reflexões sobre a mulher estão bem patentes no seu pensamento e, nas suas ideias, aceita o dualismo cultural de Nietzsche alertando o seu sentido no que respeita à cultura feminina.
Vivendo numa época de grandes mudanças com desertificação do campo para as cidades, divide o urbanismo crescente em duas formas: a quantidade e a qualidade do ser humano.
Figura 5 - A democratização e liberdade da imprensa passam ao largo do pensamento de Nietzsche e depois de Simmel
Ao invés do nivelamento, ou aceitação democrática do bem-estar geral e da elevação das massas, é a elite que o atrai, de acordo com a visão do humanismo de Nietzsche.
É assim que se refere ao seu próprio distanciamento do exterior e a uma certa neurastenia que lhe parece própria do citadino. A casa, que de certo modo idealizava, mesmo que nela vivesse, é aquela que tem a sala, o piano, os quadros, os belos objetos e até a obsessão pelo colecionismo. Tudo isso, segundo escreve mais tarde, W. Benjamim, (1892-1940) serão formas de uma juventude que desaparecerá nas "trincheiras da grande guerra.”. Também ele não suportou a guerra e o seu suicídio uma forma de derrota pessoal, uma trágica morte, durante a sua fuga às forças nazis.
Criar uma ilha no meio da massa, uma ilha ou, no dizer tão perspicaz de Walter Benjamim, “um camarote para o teatro do mundo”. Assim se define o “Salão da Belle Époque” em que a distinção, o estilo e a cultura traduziriam a vida em arte.
Figura 6 - A estética era uma das formas de unidade da Europa que ultrapassava as divergências políticas e sociais que inflamavam as massas
Este meio seria onde melhor a mulher mostrava as suas capacidades intelectuais. Os primeiros passos para demonstrar o talento que lhe negavam nas artes, na pintura e muito mais na escrita e habilidade para as ciências. A cultura feminina não se deveria misturar com a objetividade da cultura masculina. Só depois de adquirir maturidade que seria real e autónoma.
Figura 7 - Esta seria a cidade que visualizava Simmel embora já tudo estivesse em enorme mudança
Seria necessário, de acordo com Simmel, partir, “de uma unidade indiferenciada chegar a uma multiplicidade diferenciada, rumo a uma unidade diferenciada”. (Waizbort, p 505) pois a sociedade é vista como a elaboração de uma obra de arte. Waizbort é um sociólogo que vê na estética as raízes do modernismo. Neste sentido, os seus estudos acerca das ideias de Simmel e da moda tomam um sentido muito mais profundo e significativo.
Figura 8 - O operariado feminino
As tarefas monótonas e mal pagas que tantas mulheres tinham a seu cargo não foi assunto que o sociólogo estudasse, ou pelo menos, tentasse compreender.
O abandono da “casa” seria um problema a ultrapassar.
Só nos primórdios culturais haveria essa “unidade indiferenciada” dos sexos, a qual também Ferreira Deusdado aceitara. Nas tribos e povos primitivos ambos os sexos tinham possibilidades de realizar os mesmos papéis, mas quanto mais elaborada se tornou a sociedade menos a mulher contribuiu para a cultura.
Ora toda esta cultura de salão é bem factícia. Os seus representantes nem se dão real conta de tudo não passa de um distanciamento estóico, só aparentemente sólido e sofisticado da realidade citadina. A troca de ideias sobre temas culturais, intelectuais e estéticos é a cultura da sociabilidade matriarcal, descreve Waizbort no que se refere a Simmel que vive no artifício do salão, um modo de não sentir que está em “a casa” mas onde afirma que se educa e aprende a arte da vida.
Ali se discute a arte e também começa o jogo. A feminilidade apresenta a maior elevação e requinte para a época, num espaço considerado subjetivo que proporciona uma multiplicidade de temas a tratar que serão a futura microssociologia. Repare-se porém que é já o estiolar do "salão" em que se tenta manter a distinção num tom de elitismo com um cariz burguês em nostálgico declínio.
A jovem Marianne Weber (1870-1954) esposa do também famoso sociólogo Max Weber, considerava que pela conversação quem escutava a palavra de Simmel parece que “se sentia inteligente” por o entender e além disso encantava os ouvintes.
Figura 9 - Marianne Weber ainda jovem e antes de se tornar também crítica feminista e discordar de Simmel é ate do marido, o famoso Max Weber.
Este casal Weber, que pertencia a sua roda de amigos, nem sempre concordava com as suas ideias e Marianne, mais tarde, não deixou de o criticar pelas suas opiniões acerca da mulher, que não eram mais do que um eco do consenso tradicional. A partir de 1908, Marianne tem também o seu salão e em 1911, escreve uma crítica a Simmel, após 20 anos de diálogos., acerca da distinção na mulher e no homem do sentido filosófico do " relativo e o absoluto no problema dos sexos", no qual como socióloga feminista censurou o" conceito simmelliano de relações de género".
Por sua vez Marianne ia tornar-se conhecida, até idade avançada, como feminista nos círculos intelectuais e políticos. Na época em que escrevia o ensaio “A filosofia do coquetismo” 1909, Simmel estava bem dececionado a nível das possibilidades da sua carreira profissional. Casara em 1890, aos 42 anos, com Gertrudes Kinel, de quem teve um filho, grande admirador do pai. As tentativas dos amigos em lhe arranjarem um lugar nas universidades foram sempre inúteis e um revés que suportou mal toda a vida. A esposa, em solteira, também escrevia, mas com um pseudónimo, o de Marie Louise Enkendorf, (Costa Pereira, 14-19).
As suas obras só foram publicadas depois de sua morte o que se compreende, devido possivelmente ao caráter do marido e aos assuntos arrojados que tratava. Como professora teve muitos admiradores e uma respeitável reputação.
Figura 10 - Gertrudes tem um olhar distante, desdenhoso, parece estar ausente, sem desejar sequer agradar ou ser simpática seja para aquela hora ou para o futuro. Uma indiferença que choca pelo que esconde de desilusão da Vida
Uma fotografia de Gertrudes, que podemos encontrar facilmente, mostra-nos uma mulher sem idade definida e uma expressão fria. Se bem que o ar desdenhoso, saliente ainda mais a desagradável impressão que nos deixa, além dos seus olhos baixos, a velar ainda mais o pensamento, as mãos contradizem a serenidade que quer demonstrar. Cruza-as desajeitadamente, com muito pouco à vontade. Nunca deve ter sido bonita, tem algo pouco atraente que afasta qualquer simpatia espontânea.
O marido, que conheceu tantas belas mulheres, nos salões tão frequentados podia compará-la com a impetuosa e fascinante Lou Andreas Salomé e a sua irradiante simpatia, a própria Elisabeth Nietzsche, a beleza de Cosima Wagner .
Figura 11 - Cosima Wagner, filha de Liszt
Figura 12 - Lou Andreas Salomé e Elisabeth, irmã de Nietzsche, que tanta intriga odiosa criou a volta da jovem russa
Com uma longa experiência de trato com tantas damas, deve ter adquirido uma visão muito crítica das mulheres. O gosto em cativar o seu pequeno público, com o habitual brilho da sua palavra, revela claramente que tentava ser um sedutor. A personalidade encantatória e fascinante de Lou Salomé, com quem teve oportunidade de conviver largamente, deve tê-lo iludido, considerando que deslumbrava a jovem. Esta tinha uma tal capacidade de entender e de dialogar com filósofos e intelectuais que já cativara Nietzsche, mas sem nunca se prender a ele.
Sentimentalmente livre, Lou conseguia captar as atenções e aparentar seduzir quando, no seu caso, todo o encanto que, na maior parte dos casos sentia, não passava de um interesse puramente intelectual que depois desiludia tantos corações. É possível que a coquetterie de que Simmel tanto fala se refira, em parte a esta intelectual russa. O próprio sociólogo insiste em afirmar que o jogo da coquetterie só acontecia com mulheres superiores, educadas e intelectualmente elevadas.
É provável que o aspeto, se Simmel não o beneficiasse, não fosse tão cativante como o seu verbo. Muitas fotos suas mostram um ar sobranceiro, soberbo, mesmo quando esboça um leve sorriso, mais sardónico do que bondoso, que não dispõe bem nem causa uma simpatia espontânea.
Figura 13 - George Simmel 1858 – 1918
Provavelmente esse conjunto de feições daria um certo tom elegante mas a ironia do sorriso deixa a pairar no ar interrogações acerca da sua observação distante e fria da realidade. Dir-se-ia pairar um pouco acima do comum dos mortais. A sua conceção da mulher tem pois um tempo e um espaço que coloca de modo muito próprio os dois sexos numa fase de grandes mudanças e contradições.
Tais factos não podem deixar de assinalar o modo como observa as mulheres, tanto mais que com a sua fortuna familiar, podia frequentar os salões, marcados pela subjetividade e intimismo, e prestar atenção ao comportamento culturais dos géneros nesses salões ainda hoje recordados.
Só em 1914, quando ia eclodir a terrível conflagração mundial, foi aceite como professor numa universidade, bem longe de Berlim e por pouco tempo. Não foi um êxito, mas mais um afastamento da sua cidade que muito o marcou. Era em Estrasburgo, quase na fronteira, e parece que seria mais pelas suas contribuições para a fundamentação da sociologia do que pelo seu real valor filosófico. Quer por divergências graves, falta de alunos e talvez por sentir fortemente a ausência dos salões de sua mulher, acabou por pedir a demissão. Em 1918, morre nessa cidade, bem longe do seu tão querido centro que Berlim foi para ele.
Quase no final da sua vida, é que quebrou o distanciamento da realidade, que toda a vida parecia manter ou a que as suas origens o obrigaram. Costa Pereira (pp.13-14) considera que teve “um último e desesperado esforço para ser incluindo numa comunidade onde fora sempre um “estrangeiro”, inadaptado a que se acrescentaria ainda “um sedutor”. Assim se entendem as suas demonstrações de um patriotismo impetuoso e declarações em que “quer encontrar o absoluto nas partes”.
Além de estar muito focada na oralidade, a língua alemã em geral tem particularidades e subtilezas que se perdem nas traduções. Os tradutores advertem bem que a escrita simelliana é densa e complexa com dificuldades de traduzir os termos como “fluido” em que torna um verbo num substantivo e usa uma linguagem muito perto da oralidade. Esse fluido está na linha do devir, conceito que toma uma presença constante na sua filosofia.
Figura 14 - A fluidez de que tanto fala Simmel parecesse com o devir hegeliano que estudou.
As influências nos seus ensaios são da mais diversa ordem.
Não se pode deixar de considerar a ironia deste seu estudo sobre a sedução que foi fundamentalmente escrito para homens e hoje pode ser estudado por mulheres.
Esta é uma das contradições que o autor obviamente ignorou. O facto reveste-se de alguma surpresa pela dualidade do homem e do escritor. Dá a impressão de que não quer ver as mulheres da sua época, numa Alemanha onde as mulheres já tinham uma cultura e instrução que as tornava menos confinadas a um mundo fechado em que as coloca. Paradoxalmente, era além-fronteiras, e muito em especial nos EUA, que o seu nome ganhava peso. Terá forte influência na Escola de Chicago.
Figura15 - A Escola de Chicago teve um forte impacto pragmático na sociologia no que respeita ao estudo do urbanismo.
Nunca se procurou traduzir o termo coquetterie ,de origem francesa, nem há possibilidade de uma tradução mais correta para esse termo que só se pode aliar-se à ideia de agradar e seduzir. O problema abordado tem uma complexidade que envolve a psicologia, a sociologia mas Simmel também lhe reserva uma faceta filosófica. Nesse ponto, o mais viável é que segue Kierkegaard no tom e na temática da ironia.
Figura 16 - Os salões hoje são apenas uma recordação.
A cultura das massas não permitiu mais uma tal setelividade e elitismo.
A estrutura da sedução existe, com todas as suas subtilezas, como parte da condição humana tal qual se fala disso. Seria assim, profundamente errado assumir que isso é apenas um fenómeno feminino, e ainda mais restringi-lo, ao tempo dos salões onde parece que teve um êxito em todas as cidades.
Tais factos não podem deixar de assinalar o modo como observa as mulheres, tanto mais a frequência nos salões e a atenção ao comportamento dos dois sexos é bem notório nos seus ensaios. A sedução e toda a sua poderosa força manifesta-se nas mais diferentes situações e, ganhou novo fôlego com os estudos publicitários na sociedade de consumo. Recorrendo ao imaginário, o objeto é transformado, mitificado, simbólico e revestido do sonho de uma posse que desilude por que toda a sedução era um imaginário que se rompe com a realidade.
As massas devem viver no "mito da felicidade" sempre tão próxima que se espera acontecer todas as manhãs.
© Lúcia Costa Melo Simas (Texto) - Regressar a " Os "Trabalhos e Dias" "
© Colaboração na concepção da página - Levi Malho.
Actualizado em 12.Outubro. 2013
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