" Memórias de Alice - IX "
Aventuras no "feminino". Paradoxos do Poder e da Sedução
© Lúcia Costa Melo Simas ( 2013 )
Wine and Roses
[ Publicidade a "Vinhos do Porto" da "Casa Ramos Pinto". ]
Parede prédio. Zona da Ribeira. Porto.2006
© Levi Malho.
Figura 1 - Nome de família, vaidades e poder
Durante muitos anos do século XIX, a carreira profissional de um professor universitário dependia no número de alunos inscritos. É óbvio que isso causava dificuldades a muitos académicos mas, para o sociólogo Simmel, as suas necessidades financeiras estavam muito para além do que carecia, com a sua bela herança.
Figura 2 - A escolha dos alunos determinava muito do futuro do académico
Com as suas palestras e conferências brilhantes, (Costa Pereira, 2004)[1] cativava um grande público de modo a passarem a ser “verdadeiros acontecimentos culturais” aos quais também acorria, em grande número, o público feminino mais culto e com interesses intelectuais ou artísticos. Essa presença de mulheres, não sendo tolerada nas universidades, mais aumentava a sua fama por ser um orador sedutor. Dominava excelentes qualidades de comunicação, pois a sua oralidade expositiva, ao que se diz, ultrapassava em muito a escrita. As suas traduções são prova disso e a preferência pelos pequenos ensaios, outra peculiaridade sua.
Os assuntos femininos despertavam a atenção de intelectuais, dos conservadores, dos escritores e artistas, bem como de vanguardistas mais ousados e atentos às mudanças que o género feminino estava a trazer à modernidade.
As operárias e assalariadas surgiam em número que aumentava sempre em todas as cidades. Todavia, a mulher não alcançava um melhor estatuto ou regalias. O trabalho produtivo ao contrário do reprodutivo, não passava de um campo minado de paradoxos.
Figura 3 - Os miseráveis que se arruinavam, após uma vida de luxo ou após as guerras, era m em número considerável
Para os pobres e miseráveis, os mesquinhos ganhos das mulheres, sempre traziam mais algum rendimento e, além de muito comum, era aceite e bem visto. Para a sobrevivência e pouco mais, um acréscimo pecuniário mesmo com pesados encargos e esforços, auxiliava a família.
Já o trabalho das mulheres na classe média desprestigiava o grupo social. Tanto os pais, como os maridos perdiam muito do seu estatuto social se permitissem que as suas filhas e esposas trabalhassem. A situação manifestava um paradoxo. Ainda se continuava a ver a mulher dependente do homem, mas continuava a ser como que inútil a sua instrução ou cultura. A sua educação, sem direito à profissionalização não tinha sentido, nem razão de ser. A cultura ou a instrução sem objetivos não passavam de adornos que até possivelmente tornar-se-iam nocivos para as famílias.
Mesmo no virar do século XIX, tal como outros, Ferreira Deusdado mostrava-se contra a educação que se dava à mulher.
Figura 4 - Ferreira Deusdado, o famoso criminologista, pedagogo, filósofo e antropólogo transmontano (1860 -1918)
Não devia ser igual à do homem e uma das causas estava em que “Na alma feminina predominam as faculdades sensitivas e imaginativas, no homem as faculdades intelectuais”[2] Os defeitos que aponta à mulher, e são muitos, volúvel, astuciosa e dissimulada e teriam por base a educação defeituosa. O problema porém não se corrigia com a igualdade de instrução. Na sua ambiguidade, aceita que há casos em que se demonstra a superioridade da mulher em relação ao homem, todavia este pedagogo só vê a mulher destinada a ser por sua “natureza” uma boa filha, esposa amantíssima e mãe dedicada.”[3]
Figura 5 - A esposa, a mãe e a menina, criança já se prepara para o eterno retorno do lar.
Pintura de Eugénio Eduardo Zamppini, ( séc. XIX ).
Aqui se desenha um poema, uma quimera, um regresso à natureza e todos os ideais para um povo já marcado pelo género ao nascer, vestir e cuidar A felicidade “natural” de Rousseau é uma bela caricatura fácil de seduzir o olhar desatento
A propensão para uma prosa, abundantemente ornamentada de adjetivos poéticos e vagos, mostra a ingenuidade e desconhecimento do âmago feminino.
O século XX traz um modelo feminino complexo. A burguesa no centro do seu reino, o lar, e a mulher que luta por uma emancipação, vagamente consciente das suas capacidades a um afastamento cada vez mais profundo. Entre a exaltação da novidade e da tentação do conformismo e da conservação das velhas tradições, a presença da mulher, com instrução, profissões que nunca almejaram, ameaças da guerra, trazem também a valorizada na sua exterioridade, no requinte dos pormenores, na valorização das cores, dos extravagantes chapéus rodeada de una decoração de um mundo de fantasia com um palco vazio à espera de seres transfigurados, mágicos.
O antagonismo entre objetivos de vida contraditórios causa divisões até entre o sexo feminino. A moda começa a manifestar a sua força e até nos meios mais conservadores, as revistas, o jornal, o romance circulam como elementos algo democráticos.
A figura da mulher torna-se estilizada, usando o ambiente da natureza para melhor se evidenciar. Há um sonho de uma visão idílica dos animais, das florestas e dos bosques. Mas também aparecem as damas desportistas, as mais ousadas nas ciências e muitas figuras mais pragmáticas e adaptadas ao urbanismo e aos seus tentáculos.
Nesse contexto paradoxalmente idealizado e pragmático, surge a feminilidade como objeto de adorno, um modo comercial de chamar a atenção. Logo que a publicidade se apercebe do efeito espetacular da mulher nos anúncios, esta é um excelente meio de criar uma atmosfera românica e apelativa que, na realidade, se transforma no desejo da compra de algum objeto de consumo, cada vez mais acessível a grande parte da sociedade.
Figura 6 - O Lar, a casa acolhedora. A mulher e a sua beleza realçada pelo perfume do sabonete
Figura 7 - A máquina de costura Singer e a dama greco romana no meio de um jardim das delícias para uma dona de casa feliz
Algumas mulheres beneficiam com esta mudança, mas o contraste crescia entre as damas burguesas e as pobres assalariadas nos casos cada vez mais numerosos. Todavia, tanto as altivas clientes das lojas de bom-tom, como as empregadas, tantas vezes, maltratadas e vilipendiadas por qualquer pequena falha, na generalidade, a mulher perdia a sua essência. Torna-se num objeto que deixava de valer por si, mas passava a valer em função da compra ou do fim que com a sua figura pretende atingir. Nas classes ricas, o luxo que uma dama ostenta servia para demonstrar o poder do nome que usava.
Figura 8 - O nome da família da dama aumenta o prestígio para a demonstração do poder masculino aqui bem presente ao colocar a capa na saída do baile
Também se vê desaparecer a solidez da arte clássica, pela valorização dos ornamentos, das cores vivas e das linhas ondulantes, que tornam as ruas e as praças das cidades, um constante convite para o espetáculo da vida moderna.
A mistura de uma cultura erudita com os elementos da cultura popular e popularizante abria as portas a exigências novas das leitoras, muitas delas criticadas por ocuparem os tempos livres desse modo. Eça atribui mesmo a Maria Monfort que descreve como uma das vítimas da literatura romântica e daqui deriva o seu carácter pobre, excêntrico e excessivo. Leviana e imoral, é, em parte, a culpada de todas as desgraças que ensombram a família “Os Maias”. Se, este é um modelo, muitas outras críticas são dirigidas à mulher por se ocupar de leituras e “ter as mãos desocupadas” com a cabeça cheia de sonhos.
Luísa, a heroína de “O primo Basílio” também serve de tese para a crítica da burguesinha romântica e ociosa que alimentava a imaginação desocupada e pouco culta, com os amores de “A Dama das camélias” e as tragédias e afetos ilícitos e fatais. Sonhava com homens como Armando Duval o “herói fatal”, uma figura dominada pelo capital do pai e cujos preconceitos levam à morte a bela Margarida Gautier. A ausência do marido e a ociosidade leva-a recordar o primo e inicia uma paixão que se reativa intensamente do seu lado.
Figura 9 - Quadro do pintor Thirdvold-Johnson. ( Séc. XIX.)
A leitura e a ociosidade das burguesinhas incultas. Luísa insere-se bem neste grupo.
A criada Juliana explora a seu proveito a infidelidade de Luísa. Eça é cruel e extremista no retrato que traça a Juliana. A sua cobiça, desejo de ascensão social e vingança de todas as patroas que odeia ferozmente são facetas que o colocam do lado da burguesia e seus valores. O possível socialismo queirosiano não atua a favor da invejosa e explorada criada. Afinal, estava em causa uma desigualdade e preconceitos sociais que davam a Luísa um estatuto que a detestada e já quarentona criada teria oportunidade de conhecer e desejava também ascender. A “natureza” designaria o lugar de cada um e os defeitos, apontados à astuta Juliana, mostravam o modo como Eça sinalizava as diferenças sociais. Determinadas pela psicologia social, tanto as virtudes como os vícios condicionavam-se pela hereditariedade por um lado e a classe social por outro. Se há da parte da família dos Maias uma forte hereditariedade que passa de geração em geração. Já as serviçais, na época, não estavam isentas de vícios que a sua posição de pobreza e falta de recursos, no meio da riqueza e do luxo deveria produzir com o choque de contrastes.
Figura 10 - Anúncio de a "Casa Africana"
Famoso por décadas, destinava-se a ser lido pelas senhoras que se elevavam no seu estatuto por terem criadas para os trabalhos da casa
As assalariadas, criadas e domésticas, velhas ou jovens apenas atrairia um ou outro burguês, fosse velho ou novo. Pela sua garridice, alguma beleza, ou ligeireza de costumes tornar-se-iam em casos furtuitos, entre muitos, levados pelos homens, sem preocupação ou escrúpulos pelos resultados que tais leviandades poderiam ter.
A cultura burguesa, nos seus vários degraus de poder e de capital, distingue-se sociologicamente da pobreza no seu conceito no que se refere a dinheiro e a gastos. A cultura da pobreza vive centrada no presente, na sobrevivência do ontem. As relações são fugazes, tanto um vizinho rouba ou tem com ele uma grande e forte altercação, envolvendo mesmo atos físicos para além de injúrias porém, já amanhã, dar uma ajuda, apoio ou empréstimo. Não se pensa no amanhã, por isso assim que há dinheiro logo todo se gasta e sem usar o bom senso.
É comum as assistentes sociais, já bem treinadas neste trabalho de lidar com famílias carenciadas, notarem como é complexo o modo de gerir e de comprar os bens essenciais e separar os dispensáveis. Os gastos podem parecer absurdos, em vez de pagar uma dívida, compra-se um brinquedo caro a um filho, mas não há o pensamento no amanhã, que caracteriza a poupança burguesa, a sua constante preocupação com o controle de gastos e o bom uso de toda a mais-valia.
O pobre, tal como o aristocrata, apropria-se do que deseja sem medir muito bem as consequências para a sua bolsa. O aristocrata gasta com inconsciência dos bens que possui e centra-se na noção de poder e força da sua linhagem.
Figura 11 - A pobreza também vinha para fora de casa.
Mulheres de todas as idades misturavam-se com crianças nas sórdidas vielas
O paralelo que se estabelece entre estas duas formas de cultura, a da pobreza e a da aristocracia mostra bem como vivem o dia-a-dia e para a amanhã ficarão as aflições e os problemas. Já o burguês tem um sentido muito próprio da sua classe, acerca dos bens que deve conservar ou obter. Nesse aspeto, as relações que são muito mais livres e instáveis na cultura da pobreza, esta pela fragilidade de valores e desconhecimento de regras ou já na aristocracia, o casamento sempre foi um contrato, o poder sempre se rodeia de corrupção e a noção de códigos de honra apenas servem para certos hábitos seus, pois esperam já que todos tolerem as suas excentricidades
Com a ascensão da burguesia aparece um estatuto social perfeitamente regulamentado pela posse e pelo poder de compra e venda dos produtos. A mentalidade burguesa tem bem mais sólida a noção do público e do privado. A mulher também representa um valor, um nome vale um dote, uma fortuna, tudo tem um lado de troca e de negócio se bem que não se fale de dinheiro em determinados meios mais elegantes ou elevados.
Figura 12 - Grupos, cafés ou locais públicos.
As senhoras apresentavam um comportamento sumamente discreto em contraste com os exageros de adornos.
A burguesia trouxe um novo conceito de família e não era antes partilhado pelo resto da cultura. A família alargada, com sólida posição patriarcal e uma série de contratos aumenta a necessidade de dominar diversos meios e conhecimentos, da contabilidade, da banca, das finanças e das economias de mercado. A balança, o selo, o contrato recordam profissões importantes. O notário é uma delas, mas por acréscimo de respeitabilidade e de sinal de honradez, o padre tem um papel de imposição de regras e, repare-se mesmo como as homilias são ditadas para a caridade dos ricos e não para a pobreza dos pobres.
Figura 13 - A Igreja exigia a cabeça da mulher coberta.
Só que a moda torna a modéstia em exibição de bens e competição de ostentação. A caridade da esmola nada juntava à injustiça da situação.
Por ironia se dirá que a existência dos pobres que sofrem neste mundo, são a salvação dos ricos que só entrarão no Reino dos céus pela sua generosidade e distribuição de bens aos pobres. É claro que se deve fazer entender que os alcoólicos e as suas famílias têm culpas a pagar, ou as mulheres solteiras com filhos são pecadoras perigosas, os vagabundos são uns ociosos e isso não é carta de recomendação.
Os governos intervêm na aplicação de leis que, cada vez mais, conferem o direito à instrução, tanto feminina como masculina, se bem que o Estado sempre cuidasse mais destes últimos. Houve sempre o equívoco que nunca foi esclarecido de se confundir instrução com educação. Ora este erro foi sempre fatal para o ensino. A lucidez do bom senso do povo sempre teve a noção de que faltava algo na instrução das crianças e especialmente dos jovens pois a frase “ Não tem educação, até parece que não anda no liceu” tinha aquela carga de dupla aprendizagem.
Ora, Bourdieu vai marcar bem a diferença dos educados em casa com os aculturados que só aprendem nas escolas. É óbvio que para a classe média a linguagem dos professores que também a ela pertencem seja fácil de apreender e o mesmo, com raras exceções e cuidados, os aculturados, que pouca educação recebem em casa com as famílias disfuncionais, fiquem sempre desfavorecidos nos estabelecimentos de ensino. A educação tem padrões próprios de cada estrato social e é impossível que através da instrução a norma educativa seja apreendida sem dificuldades por todos.
A vulgarização da instrução aumenta em grande número com novos leitores e ainda mais as leitoras. Não obstante essa igualdade aparente da democratização da leitura trazia novos problemas.
Figura 14 - Ler?
Mas na pressa e no febril interesse por um anúncio que mais alienação traduz
O artista, em especial os escritores, não beneficiaram com a troca. É verdade que não estavam mais sujeitos ao gosto dos ricos e dos aristocratas, poi os mecenas desaparecem mas o gosto do grande público é que determina as preferências das obras a publicar. Ora esse grande público quer dramas, desgostos de amor, quer casos passionais, vilões e jovens angelicais.
Ironicamente, o escritor e o artista, já independentes do mecenas e do letrado, tornam-se presas de um gosto duvidoso de um público ignorante e grosseiro.
Camilo tem uma obra “Onde está a felicidade?” (1856) que está carregada de ironias, reflexões e um sentido crítico social louvável. A dualidade do assunto tratado com romantismo e as notas a cada passo que acompanham o desenrolar dos episódios é realista e fortemente mordaz. Mas, a obra não foi bem recebida pelo seu público.
Figura 15 - Fotografia que Camilo enviou a Ana Plácido, a mulher fatal da sua funesta estrela
Por uma certa vingança literária, Camilo não abandona o tema e escreve mais duas obras sobre os mesmos personagens, alterando o estilo realista para um negro romantismo. Através de um personagem narratário, já presente na primeira obra, coloca os apartes mais críticos mas abandona o realismo e segue a linha mais vincado do romantismo, tratando de alterar as complexas personagens com as quais joga até as levar senão à dor, às mais cruéis mágoas e à morte. Guilherme do Amaral representava a sociedade exploradora, estouvada que parece gastar por vício e Augusta, a mulher trabalhadora e com ideais e valores ingénuos.
Ele representa a leviandade o poder do dinheiro e do estatuto como forma de promoção social. Guilherme, o sedutor, simboliza a riqueza e a costureira Augusta além de representar as gentes de poucos recursos, acredita na Vida e na fé que a animam. Com o apoio do primo Francisco, que nutre grande afeto por ela, lutam por vencer a desgraça. Mas, a obra não agradou os leitores. Realista e mordaz o fecho da obra deixa os românticos desanimados com tamanho materialismo.
Figura 16 - Guilherme do Amaral um personagem com sete vidas na pena afinada de Camilo.
Um romântico que estava bem ao gosto da época.
A conclusão não pode ser mais prosaica. Guilherme, casa com uma prima e ao regressar de viagens, sabe que Augusta agora é nobre, novidade contada por um jornalista, alter-ego de Camilo. Na ida para mais um baile diz:
… queres saber "onde está a felicidade?"
-Se quero!!…
- Está debaixo de uma tábua, onde se encontram cento e cinquenta contos de réis”.
Acontece que os fiéis leitores reclamam os dramas românticos, por conta desta viragem para os temas realistas. Camilo, levado por uma certa vingança irónica e literária, em vez de abandonar o assunto, escreve mais dois livros sobre os mesmos personagens. Chega mesmo a dizer que nunca obra alguma lhe dera tanto gosto em escrever. Mantém os apartes críticos, mas abandona o realismo e segue a linha vincado do romantismo, tratando de modificar as complexas personagens.
Figura 17 - A figura de Guilherme do Amaral passa a ser a de um homem carregado de remorsos e dos erros do passado, ao gosto e tom romântico
Assim, em1861 escreve “ Romance de um homem rico “ e depois, em “Memórias de Guilherme do Amaral” 1863); (obra póstuma) com as quais joga com os seus personagens
Outra sujeição ia surgir. Claro que os editores, atentos ao lucro, indicam os temas e reprovam tudo o que entendam que não terá o aval das massas. Assim, a originalidade dá lugar à inovação e a estruturas repetitivas das obras acarretando a multiplicação do medíocre mas com êxito seguro nas vendas.
Aparece uma cultura popularizante onde a originalidade dá lugar à inovação, a intemporalidade da obra desaparece e prende-se a assuntos que relatam cenas do presente, sem capacidade de ir mais além, mantendo a estruturas repetitivas das obras. Isto acarreta a multiplicação de obras medíocres mas de êxito seguro nas vendas.
A cada passo, as heroínas dos folhetins e romances demonstram dores de cabeça aflitivas e uma pressão nervosa que seriam a prova dos efeitos nefastos do urbanismo. Tudo isso é muito ridicularizado por autores que se adaptam ao estilo popularizante. Almanaques e anedotas circulam à roda das dores de cabeça das damas que, o médico logo cura, indicando a necessidade de um chapéu novo.
Figura 18 - Um chapéu novo cura qualquer dor de cabeça feminina
Curiosamente, os folhetins de cordel abordam muitas vezes apenas temas que levem as leitoras em especial para atmosferas e ambientes de aristocracia, luxo e requinte que contrasta com as desgraças que as heroínas sofrem.
Apesar de toda a exaltação das virtudes dos pobres, dão grande valor ao capital e aos títulos aristocráticos o que logicamente influencia o público.
Simmel refere-se no seu texto” As Metrópoles e a Vida Mental[4]” ao facto dos seres humanes terem a sua saúde danificada, em especial o seu sistema nervoso. O anonimato e a multiplicidade de reações que cada um dos milhões de indivíduos de uma grande metrópole têm de enfrentar em função da economia, torna, afirma Simmel as pessoas calculistas.
Figura 19 - O baile de máscaras é a representação do anonimato e o efémero
Na verdade, todo e qualquer contrato obriga a ser cauteloso. A racionalidade impera e a indiferença aumenta na proporção de todo o contrato ser oficial, ligado a uma justiça formal e regulável.
Figura 20 - A impessoalidade e indiferença da economia cria a indiferença acerca das pessoas que nada mais são do que objetos de troca
Com o dinheiro o que seria qualitativo transforma-se com o em quantitativo pela medição que passa a ser indiferença por todo o objeto sempre em função de outros, com a constante possibilidade real de tudo ter um preço e possível de calcular. Avaliar o que nos rodeia em termos formais torna o dinheiro algo terrivelmente poderoso para a mente humana.
Até nós próprios nos desvalorizamos, passamos a objetivar-nos em termos de maior ou menos valor económico. Em suma, transformados em objetos face a outros objetos numa infinidade de formas anónimas e indiferentes umas às outras.
Para demonstrar a nova rede de impessoalidade citadina refere a opinião de um historiador (…) “Londres nunca se comportou como o coração da Inglaterra, mas muitas vezes como o seu intelecto e sempre como a sua bolsa”[5] Curiosamente não se refere à mulher que, vista nesse prisma, muito mais se devia ressentir da sua fragilidade por ser o “sexo fraco” incapaz de tolerar as vidas que os homens citadinos de todas as classes suportam, num ambiente excessivamente exigente e levado ao limite das possibilidades de acesso a todas as solicitações, sem o sossego e serenidade que a vida no campo proporcionava.
Figura 21- A ilustração dos estatutos.
A dona de casa no primeiro andar a criada na porta, a cozinheira no centro e a mulher dos recados na outra
A grande separação da casa e das instituições formais dá ao público e ao privado um valor novo que com a ascensão da burguesia coloca a mulher numa esfera reservada. Toda a força da formalidade social desaparece no que se diz “casa”, um local reservado a consolidar forças, a recuperar a personalidade. De tal modo essa linha separadora entre o público e o privado é forte que um vizinho na grande metrópole é um desconhecido, indispensável que assim seja, para preservar o círculo onde cada um se sente reconhecido pelos outros. Os clubes e outros locais reservados são assim uma necessidade de separação que a transformação do qualitativo em quantitativo que a força do ouro trouxe.
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Figura 22 - O clube representa um círculo reservado a membros da sociedade, com algum poder e distinção que os possibilita separarem-se dos outros .
A seletividade torna o clube muito maior a aspiração burguesa
Quando esta mentalidade urbana do substituível e do indiferente se alastrou por todo o mundo, o peso da indiferenciação trouxe um exacerbar do individualismo por uma necessidade de preservação da personalidade de cada qual.
Assim a moda tem uma força ainda maior pois é o que separa e une, o que distingue e confunde, o que passa e permanece. As modas passam cada vez mais depressa e a moda é cada vez mais uma força a que a economia tem de estar bem atenta.
Neste bulício, a mulher aprende regras sociais novas, mas também se torna volúvel e fútil, preocupada com a sua aparência, a sua elegância e a distinção que a separe das outras, no que se refere à sua feminilidade, com os seus atributos realçados pelo requinte da moda e do luxo.
- Quadro de Lee Lufkin-Kuala "O leque preto" A casa não deve ser o tema do pensamento desta senhora
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Figura 23 - Os bailes, salões, passeios, teatros, concertos ou outros espetáculos dão aso a abandonar muito mais amiúde a casa.
Mas é ainda a mulher que limita com a sua ausência ou presença o quantitativo do qualitativo, logo que não esteja a ocupar funções ditas masculinas.
As tarefas de cuidar da apresentação, da beleza da cútis, do cabelo, da pele, da elegância de uma cintura fina, do requinte e da graciosidade, juntavam-se aos espetáculos excitantes, a corrida para novos divertimentos, mais os seus preparativos para festas e espetáculos. De tal modo tudo se tornava mundano que até a frequência da missa e das cerimónias da Igreja eram estudadas, nos modos e nas vestes, tal como examinavam a melhor forma de se ataviarem, para receber ou visitar as amigas.
Figura 24 - As preocupações femininas, se bem que fúteis e passageiras com a moda, tornavam-se num meio enorme de circulação económica.
A cultura, no meio da qual, cada um se move, em linhas transversais por diferentes círculos, permite ao citadino ocupar uma variedade de envolvimentos sociais de acordo com cada círculo. Assim, o impessoal e o aventureiro, o indiferente ou o citadino, o inadaptado ou o viajante alcançam uma maleabilidade de adaptações que não deixam de ser desgastantes.
Simmel descreve cada um desses papéis e, de certo modo, experienciou-os, até mesmo o de estrangeiro pois a sua personalidade peculiar o levava a sentir-se desajustado na sua própria pátria e até na sua tão querida cidade.
É um vago tom de nostalgia que se lhe nota no que escreve de modo a que, em parte há um paralelismo de origem e de sentimento de perda comum ao famoso escritor vienense Zweig[6]. Mas a inadaptação de Zweig chega muito mais tarde. Ainda teve tempo para reunir as recordações da infância e de ser vienense rodeado de uma determinada cultura que o marcaria para sempre. A música, a arte ou a poesia impregnaram a sua personalidade. Por entre as suas muitas obras, tem biografias dedicadas a mulheres, com estudos psicológicos de grande profundidade. “Maria Antonieta”, “Maria Stuart” ou ainda “ Vinte e quatro horas na vida de uma mulher” são clássicos como outros em que a sua prosa é exímia em traçar retratos e impressionar o leitor. Veja-se o caso de “O Jogador de Xadrez”.
Obras de Stephan Zwieg
O grande e nostálgico escritor, sempre rodeado de espetros, parecendo que foram tão felizes, chegam sempre carregados de nobreza perdida, a alma vienense, esculpida por um judeu apátrida que antes se sentia confiante e em segurança.
Há entre os dois autores a mesma tristeza dos tempos de outrora, mas o pobre Zweig teve de enfrentar os cavaleiros do Apocalipse, enquanto Simmel morria rodeado ainda de sonhos de paz e de continuidade de uma sociedade doente, ferida de morte.
Naturalmente que a mulher tem de pagar um preço que, no início da modernidade, pesava bastante. As heroínas, de centenas de romances dessa época, têm características muito comuns a servir de estereótipo. Eram belas donzelas pobres, obrigadas a trabalhar, a ocupar-se de tarefas de perceptoras, damas de companhia, governantas, secretárias. As suas labutas oscilavam entre as casas e as ruas onde pouco a pouco cada vez mais se movimentam. Compreende-se a ambiguidade do papel que representam face às outras jovens burguesas. Sendo agora pagas pelas suas funções na sociedade recebiam a censura implícita de quebrarem os limites que representavam do público e do privado.
Figura 25 - Fora o público, dentro o privado.
Apesar de servir para demonstração do poder, a casa é o local onde o homem sem a mulher perde qualquer sentido.
O luxo é pois uma dominação feminina que não se nota sem grande reflexão do social-
É isso o que as diminuía por terem de trabalhar, mesmo que fossem trabalhos de agulha, sempre tão mal pagos, damas de companhia de senhoras idosas com todas as suas idiossincrasias e doenças, ou enfrentar empregos de balcão, de restaurantes ou de secretarias em que teriam de ser pacientes e, com muita sorte, se não fossem excessivamente atrativas, sonhadoras ou levianas.
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Figura 26 - Este foi um dos míseros trabalhos que a sociedade sempre ocultou ferozmente: o trabalho da agulha
As filhas de uma modista, de uma cantora, atris, cabeleireira ou afins, que formaram um longo cortejo de trabalhos citadinos, que tinham já capital para frequentar colégios, viam a sua reputação colada à das mães e, muitas vezes, eram rejeitadas pelos grupos elegantes, aquele estrato social a que Bourdieu deu o nome de “herdeiros” e nos quais se colocam também as jovens.
Figura 27 - A fama de uma atriz podia ser ambígua.
A sua conduta era uma herança pesada para as filhas, apesar do poder economico
Só uma lucidez muito forte, que não alcançava a natural imaturidade juvenil das colegiais evitava quase sempre que notassem o facto.
Em “A Feira das Vaidades” de William Thackeray, (1811-1863) a ingénua Amélia e a calculista Rebeca representam os dois estratos sociais unidos por interesses e estratégias diferentes. Becky Sharp não é apenas uma aluna de colégio, ou uma jovem bem determinada a subir na escala social, trata-se de um modelo de uma tese demonstrativa de toda a arte feminina de sedução interesseira ao lado da estupidez masculina.
Figura 28 - Com esta obra, Thackeray, passou de autor desconhecido a celebridade comparável a Dickens
É por ter ido tão longe na análise social da sociedade londrina que esta obra se tornou intemporal. Thackeray captou a época vitoriana vivendo e observando como espetador, de um ponto de vista exterior que, por isso, podia dissecar com crítica mordaz os costumes da própria sociedade da qual se distanciava. Acido, cruel, implacável, cada cena que se desmonta é uma convivência de diferentes estratos, todos carregada de vícios, onde o mal e o bem não lutam entre si, antes se combinam numa visão sinistra. Não seria justo comparar tal obra com os propósitos que levaram o generoso e poético Dickens a escrever.
O capital agita, para o pior e para o melhor do que a era vitoriana traria.
Figura 29 - O escriturário, o contabilista, a classe média, a figura burocrática.
Ocultação e o pequeníssimo parafuso que faz girar sem parar o sistema. que se esconde por trás do colarinho branco mas encardido?
A função do dinheiro, quanto ao sexo feminino, chamou a atenção para as consequências da impessoalidade urbanística da sua circulação e este passa a ser uma necessidade de algo que possa girar mas, apesar disso, nunca desaparecer. É a faceta libertadora dos vínculos e o abandono de valores pessoais. A mulher, ao entrar na atividade das instituições e a ter um papel crescente na economia cria novas formas de consumo e também novos consumidores.
O capital funciona sem rosto, sem relações humanas, é por uma mediação e nada mais que tudo circula. O dinheiro é impessoal, mudo, discreto e nada parece ser melhor do que o vil metal para conviver sem ter de pensar em seres humanos em número de milhões.
O dinheiro deixou de ser um padrão de valor ou meio de troca, entre bens e serviços para ganhar uma racionalidade que retira qualquer relação mais pessoal entre compradores e vendedores. Curiosamente, quanto mais dinheiro está em jogo e mais se pensa em verbas, em gastos, lucros ou perdas e menos se pronuncia a palavra dinheiro.
Quanto às compradoras, que depressa encontram nas cidades, mil e um meios de gastar mais e mais objetos e adornos de toda a espécie.
Até aos nossos dias, a ida às compras, à cabeleireira, modista, chapeleira ou lojas de requinte que não pararam de crescer nas cidades e, se não compravam logo o que desejavam, os pais ou maridos satisfaziam os inúteis caprichos. Não há melhor forma de fazer o dinheiro rodar e passar de mão em mão do que entregá-lo a uma dessas damas que encontra na novidade das compras um objetivo para a sua ociosidade ou, na nossa época, para os seus tempos de lazer.
Figura 30 - A moeda de nada serve num deserto.
Por isso Saint Exupéry diz no meio do deserto: "Os homens não sabem o que é uma laranja!"
Uma questão que se deve colocar ao burguês rico é o que faz ao dinheiro que consegue ganhar?
Se tem filhas, tem de preparar um dote e isso implicava ter um capital apreciável ou largas propriedades. A esposa por sua vez precisa de vestuário condigno, de jóias, tem de aparecer em cena e igualmente de viajar, de veraneios nas termas ou à beira mar.
Assim o dinheiro circula, na forma de jóias, perfumes, óleos, cremes, vestuário elegante e variado, capital para o casamento e bens próprios. Deste modo, muito do que se compra e se vende é em função da mulher. O casamento é pensado sempre com a atenção ao dote e assim perdura até ao século XX.
Sem se dar muito conta disso, as mulheres é que faziam rodar a economia, a venda e a compra de mil e um objetos comprado para a mulher ou por ela. Os casamentos, sendo de conveniência, traziam o risco de infidelidades, mais comuns entre os homens pois a pressão social sobre eles é bem mais suave. Novamente, as “outras” mulheres adquirem muitas vezes capital que, por serem leviana ou aventureira perdiam facilmente. Há ter em conta aqui o peso da cultura da pobreza que, nessas mulheres, vindas de classes sociais a roçar a miséria, continuava viva na sua mentalidade do agora e ânsia de viver apenas o dia presente.
As chamadas “mulheres livres” eram um caso à parte, mas não tão marginal como a sociedade nos queria fazer crer. Temos o caso de tantas pequenas e grandes cantoras, bailarinas, atrizes que enlouqueciam e arruinavam barões e burgueses, empresários, nobres e valdevinos. Basta citar a famosa Sarah Bernard que soube gerir muito bem a sua fortuna, o que demonstra lucidez e espírito prático raro.
Qualquer senhora de uma cidade cosmopolita que tivesse possibilidades monetárias elevadas, não teria o mínimo rebuço em levar horas a escolher um vestido, exigir uma cor diferente, obrigar os empregados a moverem-se à sua roda, a escolher-lhe, horas a fio, uns sapatos, umas fitas ou luvas e acabando por não comprar nada depois de deixar atrás de si um caos e um perfeito desvario numa loja onde antes reinava a ordem.
Figura 31 - Sob o olhar crítico do homem está todo o capricho do tempo da escolha de um chapéu perfeitamente inútil que faz girar a economia
A distância entre o pé delicado que experimentava o sapato de veludo não se podia medir com o da empregada que tentava agradar e satisfazer os caprichos ou a obstinação por um qualquer enfeite fútil e bem inútil, por vezes, bem dispendioso. Mas o olhar do dono da loja conhecia as suas clientes, seguia-as e agradar-lhes tornava-se na sua ambição constante.
Daí que a submissão e o servilismo das assalariadas manifestava-se em estar sempre em ação, sorridentes e complacentes com todas as fantasias das clientes.
Figura 32 - Estas mulheres labutavam arduamente sem perspetivas de um futuro melhor.
Estes trabalhos nunca prenderam a atenção dos estudiosos da condição feminina
Apesar de tudo, eram ainda mais privilegiadas do que as lavadeiras, engomadeiras e outras cujos serviços pesados os homens nunca reparavam, mesmo estando ao seu lado, pareciam seres transparentes, pouco mais do que objetos, sem consistência própria.
O problema da sedução feminina foi tratado sob diferentes ângulos por Kierkegaard, (1813-1855) em “O diário de um sedutor”, “A alternativa”, ou mais ainda em “O Banquete”[7].
Sendo uma obra filosófica, não deixa de ter um certo encanto que o torna favorito entre as leituras juvenis, quando, de repente, um jovem se vê a contas com uma leitura que diverte, faz pensar e é intemporal na sua essência.
Os personagens da obra limitam-se a ser os convidados, diversos comensais, que se reúnem como em “O Banquete” de Platão, mas não é tanto para falar do Amor mas muito mais da Mulher. É óbvio que, escrito para ser lido por homens, só estavam presentes homens e, entre eles, sentava-se um alfaiate com a sua visão muito pessoal do sexo oposto.
Com jactância afirma-se como quem melhor conhece as mulheres. Sem a sua ajuda as mulheres não têm sedução nem requinte. É a sua missão vestir as mulheres e através dele transformam-se em seguidoras das modas mais extravagantes e loucas. Para a dama que está no alfaiate este não é visto como um homem. Entre os vestidos e objetos que escolhe e experimenta o alfaiate é mais um objeto do que um ser real. A sua presença não é vista pela dama como a de uma pessoa mas sim de um meio para depois seduzir homens que a verão com essas roupas e atavios ou então causar inveja e despeito nas outras mulheres.
Agora não tem garridice e a situação até tem um lado cómico. Assim se despe e experimenta os trajes e esquece a sua dignidade, mas o alfaiate jamais se vai assemelhar a um sedutor. Mal o supusesse “a senhora de alta roda logo revelaria um sorriso de compaixão ou de desprezo pelo alfaiate que se atrevesse a pronunciar a primeira frase de sedutor”[8] ( O Banquete,)
Figura 33 - Caricatura da época O espartilho, o alfaiate, a ajudante, 0 empregado negro e, na frente bem divertido um macaquinho.
Tudo para ter uma “cintura de vespa”
Por isso o pudor não existe e “A moda (…) é mulher porque a moda é a inconstância na insignificância, sequência e consequência ao que vai da extravagância até à loucura.
Figura 34 - ”Como estou bonita” é a imaginação na sua forma mais fútil e desprovida de essência. ( Desenho do século XIX )
Exercitante a imaginação as mulheres teriam um desempenho fantástico na arte, na música e sabe se lá até onde poderá ir?.
Neste caso, como se diverte o alfaiate perante a loucura feminina!pagos, damas de companhia de senhoras idosas com todas as suas idiossincrasias e doenças, ou enfrentar empregos de balcão, de restaurantes ou de secretarias em que teriam de ser pacientes e, com muita sorte, se não fossem excessivamente atrativas, sonhadoras ou levianas
Vale mais uma hora de observação na minha loja de modas, do que dias, meses e anos de estudo.” A mulher é a moda constante sem se olhar à classe a que pertence. A forma global do requinte e da frivolidade, da reflexão de cada uma é para atrair o olhar e atenção das outras mulheres. Para provar todo o seu poder o divertido alfaiate afirma que, mesmo no meio da solenidade de um casamento, tem todo o poder. Sem a sua autorização e a sua sanção, o casamento suspende-se. Basta que se precipite e diga que o arranjo floral do cabelo da noiva está mal colocado! “A cerimónia é suspensa, senão alunada.” (…) A mulher deveria ser obrigada a jurar pela moda para que os seus juramentos pudessem ser tidos por verdadeiros”
Figura 35 - Caricatura à escravidão do espartilho.
O atrevimento de um alfaiate só era permitido na sua função de "objeto" de embelezamento da dama ocupada apenas em verificar a sua elegância.
A crítica é de tal modo mordaz que “ Nesta vida tudo é questão de moda, o temor de Deus, o amor, as crinolinas, os brincos nas orelhas e no nariz ”[9] (O Banquete).E numa nota final bem profética dizia que a mulher pela moda se tornava o mais ridículo dos animais, se prostituía e a sua maior ambição era conseguir que chegasse a “usar um brinco na ponta do nariz”.
Figura 36 - Eis que se realizou já a moda e se verifica que os filósofos, até pela voz de alfaiates, têm razão
Tinha o filósofo dinamarquês uma lucidez espantosa face a esse monstro em que a moda se veio a transformar.
Simmel tem uma crítica mais sociológica da moda, usando a sua tese dos diferentes círculos em que todos se integram e se separam, se imitam e se distinguem. A moda finge possuir uma eternidade nas nada mais errado que a sua permanência. Paradoxalmente, a memória esquece e retoma elementos do passado.
A economia tem um motor potentíssimo na moda. Segue-lhe os movimentos, sugere, veicula a alteração das modas através de uma fluidez e uma mudança constante na circularidade dos objetos.
Tanto nas classes mais elevadas como as mais baixas, por razões diferentes, de conservadorismo, de tradição ou necessidade de uso, a moda não tem efeitos tão rápidos como nas classes médias ou nas elites. O uso dos objetos é lento e com certa lógica em se desgastar. A moda torna o lixo violento porque nada tem valor de uso, mas valor de inovação. Assim a moda começa a circular a um ritmo cada vez mais veloz. O desperdício é uma das facetas terríveis da moda.
Nos casos mais comuns, dos estilos e da moda em geral, é quando esta aparece que tem o seu momento áureo. Segue-se o declínio fatal e veloz já que se vulgariza, e o preço desce pois é um objeto vulgarizado, com a economia atenta às possibilidades que a moda oferece especialmente o pormenor fundamental de ter em conta para que: “ a aparência de um individuo não caia no geral mas se eleve acima dele.”[10] O paradoxo deste jogo está na contradição de quanto mais diferente mais risco de imitação e banalidade. Acrescente-se que o elemento, que a todo o custo todo o indivíduo tenta evitar, é o ridículo. O risco será tanto mais elevado quanto a possibilidade de inovação. Já a linha que separa a originalidade, ausente na moda, é uma aderência ao que se pode chamar classe ou um tempo certo para aceitar nova moda.
Muitos êxitos esperados são fracassos pois há um tempo certo de sintonia com o geral para a aceitação da inovação e a intuição dos criadores nem sempre dá conta do tempo certo. A moda tem um movimento tão inconstante que só as máquinas bem poderosas do marketing tentam transformar insucessos em vitória. Há uma sintonia do inconsciente coletivo que lança a moda e ela propaga-se como um incêndio num imenso monte de palha.
Há sinais curiosos para transformar a visão das coisas e tentar que a moda esteja presente. Num letreiro de uma cidade, vimos a hipocrisia da mudança e a estratégia do dinheiro:
“Compram-se velharias. Vendem-se Antiguidades.”
Ao que nos foi dado estudar, a peça de teatro Oklahoma, antes da sua estreia parecia tender para um inevitável fracasso por desinteresse do público. Foi então que, no meio da preocupação geral, um publicista teve a ideia de mudar apenas ligeiramente o cartaz e rapidamente acrescentou-se a todos os o ponto de exclamação com que a peça, do género opereta é conhecida: Oklahoma![11]
Figura 37 - O tempo em que Oklahoma era colorido ninguém lá tinha ido e se pasmava com o cinemascópio
Este subterfúgio da exclamação adicionou um tão forte apelativo que demonstra as idiossincrasias do público.
A ocasião certa em que as massas absorvem tudo, música, roupa, estilos é uma imprecisão da massa que forma a cultura, só que não se é possível de determinar, mais ténue do que uma brisa perpassa no seio anónimo. Mas, se o coletivo das massas absorve tal modelo de moda, eis que a inovação é um fenómeno prodigioso, um enorme sucesso comercial que salta e catapulta para o topo da fama com um êxito, tantas vezes momentâneo, porque ao seu lado, na sombra, caminha sempre atento e traiçoeiro o ridículo e o esquecimento.
O brilho do momento é um sucesso incompatível com o intemporal. Dura a sua chama o mais alto que podia sonhar e logo se apaga e oferece milhões de robabilidades, sem nenhuma certeza de sucesso. O sonho arrasta consigo milhões de seres alienados que nunca deixarão o anonimato. Mas esse desperdício oculta o poder e a fragilidade da moda. A economia e todo o capital giram à roda da mudança, para que as modas passem e a moda fique. Assim, citando Simmel: Seguramente não há nenhum símbolo mais claro para o caráter de absoluto movimento do mundo do que o dinheiro. O dinheiro não é senão o suporte de um movimento, no qual precisamente tudo o que não é movimento é completamente diluído, ele é por assim dizer actus purus[12] (Simmel, 1991, p. 714).
Neste caso, o que faz mover não é o seu suporte, o dinheiro é uma presença, mas para ser constante há que ter uma força que se esconde na moda e na troca.
Esta força é a mudança que não existe onde não há dinheiro, mas este faz é o suporte para mover e o que se move é a moda. A moda altera a eterna repetição, sendo eterna mas manifestando-se de mil modos e maneiras.
Uma exemplificação disto foi possível de ver num filme muito discutido política e socialmente. Um povo que se encontra infelizmente em vias de extinção são os Bosquímanos, um povo que atravesso 5 milhões de anos sem alteração na sua existência. O filme “Os deuses devem estar loucos “[13] por certo que não tem por tema a moda, mas o objeto diferente, o inútil! O “estranho” algo que para nada serve mas deve ter um sentido. Se o objeto é apenas uma garrafa de Coca-cola vazia, atirada de um avião, pouco interessa, mas sim como o inútil e distinto, que só pode pertencer a um faz ruir toda a estrutura social. Aquele objeto é barroco, estranho, em suma: está a mais.
A desorganização dá-se por “estar a mais”
Daí que o filme prossiga com uma viagem para tentar levar de regresso o objeto que muda tudo.
Não era nem um bem nem um mal. Simplesmente rompia as regras, confundia, fascinava, assustava, dividia o grupo, pelo estranho, o inadequado e inexplicável.
Pode dizer-se que é “a moda” sem poder de circular, sem paralelo, sem antítese, sem espiral de desejo ou diluição na banalidade. Na sociedade ocidental, a Coca-cola é já um estilo de vida, objeto proibido por regimes políticos, banalidade de adolescente, publicidade já desnecessária, rancor de quem se marginaliza, se revolta mas não atinge o segredo evidente da permanência da moda.
A moda precisa de comparação e semelhança, exige hierarquias, por isso Xi, o personagem do filme tem de partir e levar o objeto.
Nunca como hoje o dinheiro é esse “actus purus” mas por isso mesmo é vazio. Aquela garrafa que caiu do céu não tem sentido. Apenas desorganiza por estar a mais. A ação colossal do dinheiro está ali separada do seu objeto, a moda.
Não pode movimentar o pequeno mundo dos bosquímanos e, por outro lado, está o poder do dinheiro está oculto à realidade da vida dos povos. Raramente se vê o dinheiro, mas sim o seu efeito, essa constante mudança, que mais faz girar a sociedade, as massas, o grande ou pequeno público, os filmes, os brinquedos, as casas, automóveis, interesses técnicos e científicos na porosidade dos valores que se atraiçoam ou se aliam nas mentalidades sujeitas aos ritmos da moda.
Ora, mais de meio mundo é mulher. Este meio mundo em certos lugares e países pouco pode. Aparentemente. Mas, em todo o mundo, os homens gostam de mulheres. Têm mães, irmãs, companheiras, filhas e uma série de seres femininos que sempre atuaram na sombra.
As grandes fortunas são geridas por homens, é certo, mas toda a fragilidade da mulher remete para a fragilidade rotativa da mente do homem que por ela compra e vende, alma e coração, tesouros e riquezas, perde batalhas, satisfaz caprichos, cai em ciladas ingénuas, mata e morre em nome de uma mulher. Helena é a guerra de Tróia, a morte lenta da Idade Média tem por protagonista uma pastora, Joana d´Arc (1412-1431) de vida breve mas que mostrou as contradições medievais. Com ela morriam os anjos e surgia na Itália o culto a um feminino que se exteriorizava e apenas exaltou a moda. O renascimento fez surgir a Vénus das águas mas acolheu-a pela sua juventude e não pelo facto de ser Mulher.
Com os banqueiros e a ascensão da burguesia, as cidades povoam-se de gentes que cada vez mais se ocupam de formas todas bem diferentes mas todas para o mesmo fim: o capital.
O papel da mulher entre o limiar da porta da casa e a rua tem a grande mudança de definição A dama nobre, a senhora, a dona de casa, burguesa ou não. Na rua: a assalariada a “mulher livre” e a marginalidade que vai lentamente diminuir, quando se impõe por seus méritos, nas artes talvez mais facilmente, depois nas ciências e a noção de mulher livre já tem uma conotação que se espera que seja semelhante à do homem. Enquanto a conceção de homem livre foi sempre elevada e respeitável com o mesmo conceito empregue na mulher, quase todas as definições eram possíveis.
Figura 38 - As ruas das cidades, tinham os seus bairros pobres. Aqui as mulheres ocupavam-se de trabalhos bem pesados.
O aspeto não tinha grande atração mas as janelas eram postos de observação
Foi o capital, a era da industrialização, as grande metrópoles e as organizações do social cada vez mais complexas que criaram e continuam a acrescentar mais necessidades para o público e assim o trabalho feminino passou a ser considerado cada vez mais como normal e comum.
Figura 39 - As famílias alargadas da burguesia davam à "casa" o lugar "sagrado" e reservado das mulheres.
As criadas, ocupavam-se das tarefas pesadas e conviviam com um luxo que não deixaria de causar inveja ou sentimentos de injustiça social
Mas o capital que trouxe a dama burguesa para a cidade, transportava um paradoxo. Face a tal situação de poder ter cultura e elevada instrução isso confrange os conservadores, mas não hesitam, como é o caso de Deusdado, de ornar de poesia e flores a gentileza do feminino, mas fechando as portas à sua realização em si mesma.
Figura 40 - A idealização da mãe no cenário da "Dona-de-casa" perfeita.
Dois filhos, uma menina eum rapaz, uma boa sobremesa e a Mãe na alegria do Lar
Por outro lado, educação e cultura não terão com certeza valor para um lar. Eis o perigo que Deusdado temeu e Simmel assinalou nos seus salões. As mulheres demonstravam terem uma subtileza de entendimento e uma alta perceção dos assuntos que os homens não conseguiam acompanhar.
Esta ambiguidade está patente em muitos autores e Deusdado está perfeitamente consciente disso, mas o filósofo transmontano recua e remete a mulher para o lar. Assim, determina que o seu futuro só pode ser o de dedicadíssima mãe, então o que aprendeu tem algum sentido pois, afinal cumpriu o seu destino de geradora da humanidade.
Figura 41 - O lar, a doce figura na sua "meditação" A mulher solteira é um problema, casada um prémio, freira um altar escreve F. Deusdado.
( "Quadro de Ruth Eastman "- Johnson, de 1885. )
A solidão e a espera do que nunca acontece é a verdade do seu olhar a noite imóvel em que se tornou.
Temos então a transição em que entra o capital, a mulher e a moda.
Por entre guerras e atrocidades, por entre sufragistas e feministas, o capital não pode parar quando não há tanto armamento e estratégias e planos militares para estabelecer. Continua-se a estudar o conde Von Clausewitz e a mulher inventa o alfaiate, o perfume francês, a moda italiana, o exotismo, as joias de Tiffany, as luminosas Galerias Lafayette (nobre e revolucionário francês que nunca devia ter ido às EU para trazer ideais tão perigosos. paradoxalmente até para si mesmo) a dança dos anos loucos e em cada outono regressam de toda a parte, vindas de lugar nenhum.
O capital gira cada vez mais depressa, passa de mão em mão sem parar. Parar é acabar com a economia e a mola vital centra-se e brilha como nunca
É a moda. A moda é cada vez mais forte, depois que a moda descobriu a mulher. Mas agora a mulher, que há muito e muito tempo descobrira a moda, agora está a descobrir o poder.
NOTAS:
[1] Simmel, Georg, Fidelidade e gratidão e outros textos, 2004, Edição Relógio de Água, Coleção Antropos, Prefácio pp,. 12-24
[2] Ferreira Deusdado, Manuel, A antropologia criminal e o Congresso de Bruxelas”, 1894, Imprensa Nacional Lisboa., p.51.
[3] Manso, Artur, F. Deusdado e a educação da mulher, 2007, Brotéria, vol. 164, Braga, pp 337-339.
[4] Simmel, Georg, As Metrópoles e a Vida Mental, pp 75 e sgt
[5] Idem, Ibidem, p 79.
[6] Zweig, Stephen, Memórias de ontem
[7] Kierkegaard, Søren, O Banquete,1972, Guimarães 6 Cª. Editores, Coleção Filosofia e Ensaios, 3ª Edição
[8] Idem Ibidem, p.145.
[9] Idem, Ibidem, pp. pp. 143-151.
[10]Waizbort Leopoldo, GEORG SIMMEL SOBRE A MODA – UMA AULA. (GEORG SIMMEL. SOBRE A MODA – UMA AULA- waizbort@usp.br 13.08.13.)
[11] Oklahoma! (1955) IMDb,
[12] Simmel, Georg, 1991). Philosophie des Geldes. 1991. Gesamtausgabe Bd 6. 2 ed., Frankfurt, Suhrkamp.( A Moda, tradução, in Ensaios Idem.
[13] The Gods Must Be Crazy, Director: Jamie Uys - Ano: 1980 País de Origem: BOTSUANA / ÁFRICA do Sul
© Lúcia Costa Melo Simas (Texto) - Regressar a " Os "Trabalhos e Dias" "
© Colaboração na concepção da página - Levi Malho.
Actualizado em 30.Agosto. 2013
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