" Memórias de Alice - VIII "
Círculos no "feminino" --- Do que nunca foi e jamais deixa de ser
© Lúcia Costa Melo Simas ( 2013 )
Tudo e o seu contrário
[ Novas "Cidades Invisíveis". Representação onírica de "grafismos" urbanos ]
© Levi Malho
Qualquer pensador, que freie a sua tendência ou propensão de projetar no futuro as suas utopias, sabe que está a ter bom senso. Nada mais arriscado do que falar em nome do futuro, qual Pitonisa de Delfos ou profeta que se arrisca ao ridículo ou ao descrédito nesse jogo de perfeito azar. As emboscadas do presente estão no óbvio que não se repara e no que é realmente importante em cada época e passa desapercebido. Escolher um facto mais relevante de uma época é tarefa para o distanciamento de um historiador.
Estudando o domínio masculino exercido sempre sobre as mulheres, Goffman (1922-1982) pretendia mostrar que as mulheres pertencem a uma categoria particularmente desvantajosa no social e tal sempre se conservaria. É muito curioso que Pierre Bourdieu tenha tantos temas que, de tão óbvios parecem agora que não se destacaram quando eram estudados em antropologia ou psicologia e, de repente, o que este autor escreveu tornou-se repetido de boca em boca. Sabia-se que há uma forma de coação que se apoia no reconhecimento de uma imposição social ou psicológica e Bourdieu apenas deu a designação a este fenómeno “violência simbólica” quando a luta contra essa mesma brutalidade disfarçada se estudava em múltiplas áreas sociais.
Se Simmel, numa época de transição, se colocou na fronteira entre a igualdade e dignidade devida à mulher, a sua visão tende mais para duvidar de qualquer possibilidade de uma cultura feminina, das suas capacidades criadoras e ainda mais de aptidões da mulher, lado a lado dos homens, nos mais diversos estudos científicos.
Face à diferença física e à maternidade, historicamente, as mulheres são objeto de uma consideração particular, pois têm isenção de certos trabalhos penosos, de ir para a frente da batalha, e curiosamente como “sexo fraco” é-lhe permitido manifestar com mais veemência os seus sentimentos em público, ou receber mais algumas mercês em forma de cortesia. Goffman, tal como outros já tinham referido, alude ao jogo da sedução em que o homem é o primeiro a avançar mas a mulher também é quem “ autoriza o acesso a si mesma ”.
Figura 1 - A "coquetterie"
A alegria e o riso que tanto pode ser felicidade ou troça. Quem descobre o segredo feminino?
Temos Simmel como o filósofo que analisou a coquetterie, conceito que não traduziu e também o queremos imitar, deixando que o termo francês mantenha a sua especificidade. De algum modo, há certas reflexões e formas de pensar que demonstram coincidência, ou mesmo conhecimento, das obras do dinamarquês Kierkegaard (1813-1855) que morreu jovem, enquanto Simmel escreveu já bem mais idoso sobre tal assunto[i].
O jogo de sedução entre homens e mulheres, no que respeita à coquetterie é ambivalente. Todavia é evidente que, o alto valor atribuído à feminilidade, é um presente envenenado que apaga a mulher da cena social nos outros papéis que desempenha e lhe oferece apenas um tempo curto em locais apropriados. Há grande subtileza de jogos de estatutos conferidos ao sexo feminino e masculino. Os espaços e limites atribuídos às mulheres nas instituições e os comportamentos que lhe exigem são uma teia em que a mulher tem dificuldade em definir com firmeza o papel que desempenha.
Se a sociedade não condena os homens por frequentarem lugares aos quais as irmãs, esposas e filhas não acedem sem perder a sua dignidade, o ferrete da condenação é evidente nas mulheres, mesmo que a sociedade se diga avançada. O certo é que, em cada época há atrasos e tradições, mudanças que se consideram convenientes e outras que a pressão social condena, por muito inocentes ou fúteis que possam mais tarde parecer. Todos os tempos são épocas avançadas, o importante é descobrir o que é que está atrasado.
Diligentemente, muitos cientistas tentaram demonstrar a inferioridade natural das mulheres. Com o positivismo e cientismo, a ciência parecia ser inimiga das capacidades feminina e pronta a demonstra as suas teses. Franz Joseph Gall (1758-1828), anatomista germânico, descobriu certas características mentais nos homens, através dos seus exames aos crânios, e a possível inferioridade feminina. Curiosamente, experimentou a sua teoria num grupo de generais, sem lhe ser dado a saber a sua profissão e, quando acabou as suas observações, declarou não ter encontrado naqueles homens nada de comum, a não ser a alta agressividade de todos, o que causou grandes gargalhadas. A sua teoria das bossas cranianas e possibilidades de se poder determinar as localizações cerebrais através da observação do crânio causou escândalo e revolta. As suas ideias chegaram até a ser proibidas na Áustria e na Alemanha[ii].
Figura 2 - A tese das bossas cranianas.
Início da topologia das áreas cerebrais, depois conformada por Broca e com grande êxito nas lobotomias de Egas Moniz,
Mas o mapa cerebral com as correspondentes faculdades mentais que conseguiu laboriosamente traçar foi um contributo decisivo para a futura topologia do cérebro. Por sua vez, o médico italiano Cesare Lombroso (1835- 1909) procurou determinar, através dos estudos do cérebro, as características do criminoso nato. A sua influência foi tão forte que impressionou figuras eminentes e escritores como Émile Zola, Anatole France, e Fernando Pessoa. Criou um centro de estudos em Pavia, acerca de psiquiatria. Foi um criminologista que começou a analisar as possíveis influências do meio sobre a mente, ideias que num primeiro momento alcançam sucesso e, depois, desconfiança. Curiosamente, em Ponta Delgada, no liceu que existia até aos anos sessenta as obras de Lombroso contavam da biblioteca desse estabelecimento de ensino e estas teorias referidas nas aulas de filosofia, com referências à antropologia criminal e à obra “O homem delinquente”.
Figura 3 . - La Donna et “ l´homo delinquente”.
( Estudos de Lombroso )
Um criminologista português que se tornou celebre no estrangeiro foi o esquecido pedagogo e filósofo Ferreira Deusdado (1858-1918) que, a convite do próprio czar foi a um Congresso em São Petersburgo a fim de levar a cabo uma remodelação do sistema prisional da Rússia.
É mais um autor que preconiza a uma pedagogia diferente para os dois sexos “ A educação (…) como praticam os americanos, é uma utopia para a Europa e um erro de método [iii] para a ciência.” Segue ainda as ideias acerca da confrontação do volume do crânio do homem e da mulher, e obviamente nota como são desiguais e o feminino menor, mas acrescenta para acentuar mais as diferenças que o cérebro masculino quanto mais civilizado mais aumenta a sua desigualdade com o feminino. E chega assim à conclusão que quanto mais civilizado for uma sociedade mais desigual serão os dois cérebros mas sempre a favor do homem e não da mulher. A sua conclusão é portanto ambígua. Se não se deve masculinizar a mulher, nem dar a mesma educação “pois têm destinos diferentes” , não é a favor da emancipação feminina, e, “se a mulher não é sem inferior, nem superior, nem igual ao homem, é por sua natureza diferente". Logo, a sua tese é de uma educação feminina que deseja que seja “melhor” do que a que existe, mas logo acaba por concluir que o homem é possuidor de uma inteligência superior à feminina.
Figura 4 - O peso e a comparação que os cientistas realizam é sempre desfavorável ao "sexo fraco"
Entre os mitos e preconceitos, a velha lenda de uma paragem precoce no desenvolvimento intelectual das mulheres continuou. O médico Moebius, cuja obra, já no título “A inferioridade mental de mulheres” manifesta na sua tese, as suas intenções. Os seus argumentos insistem na divergência do tamanho do cérebro, tese que foi desmentida só muito tempo depois. A inferioridade feminina era similar, em certos aspetos de falta de maturidade, à mesma que também se atribuía às raças negras, ditas inferiores e infantis.
Tanto as mulheres como os escravos negros e muitos indígenas dos povos colonizados por brancos evidenciava esse tratamento benévolo mas inferiorizante como se fossem crianças grandes ou pessoas com uma inteligência diminuta e assim, na melhor das hipóteses são tratadas.
Figura 5 - Os escravos e indígenas eram rotulados de pobres seres inferiores, ou crianças grandes que com pouco se podia enganar
O facto aconteceu tanto na Europa, como nos E.U.A. Bastará que se recorde os romances do século XIX, relatos de missionários e mesmo de defensores desses povos ou das mulheres para o modo indulgente com que se referiam a todos esses seres humanos. Por vezes, durante muito tempo ainda, em banda desenha ou em filmes de aventuras dos heróis brancos, os criados, escravos ou indígenas eram satirizados pela sua idiotice, falta de capacidade de entendimento ou ingenuidade ridícula. “O bom selvagem” transforma-se no selvagem imbecil ou selvagem criança grande, tal qual a mulher, remetida a uma inferioridade que devia ser protegida vigiada.
Figura 6 - Uma criança branca e um índio Dakota teriam a mesma capacidade mental, infantil e sem capacidades abstratas
Estes seres, considerados inferiores têm, tal como nos animais, cães e cavalos, uma força “instintiva de fidelidade” ao dono. Os maltratados selvagens dos velhos filmes passados na selva, morrem devotadamente pelos seus donos ou patrões. E tudo parece tão natural que, após uma lágrima furtiva, as aventuras continuam sem mais pensar no que se passou. A mulher, também, tem uma “natureza” dedicada e submissa, por isso A Dama das Camélias se deixa morrer, por ser indigna do homem, sem que o passado de ambos tenha sequer suspeitas de confronto.
Figura 7 - A leitura e a porosidade da cultura.
Os " múltiplos Públicos ", sem separações entre o popular e o erudito
Em Fidélio, a esposa tenta que a matem em vez do marido. A bela filha de “ O Rigoleto”, Gilda, prefere a morte a saber que o pai matará o amante traidor. Também o escravo fiel dá a vida pelo seu senhor com uma naturalidade que só o contexto da época aceita uma tal lógica. O pobre e velho cão morre por obedecer ao dono que atira um pau para o animal ir buscar ao mar.
Em “A cabana do Pai Tomás” em que a célebre autora e Harriet Beecher Stowe, que tanto êxito teve com a sua obra para a luta contra a escravatura, usa um cenário imaginário em que coloca os escravos muito semelhantes a animais pouco inteligentes Esta senhora pertencia a uma família cujos membros foram nomes quase todos famosos. Todavia, estudando de perto a vida no Norte, sabe-se que nada sabia da realidade e não conheceu verdadeiramente nenhum escravo. A ambiguidade da adjetivação dos negros é prova da sua boa vontade e, no fundo, muito vincado por uma certeza da superioridade dos brancos. No caso do menino escravo, filho da personagem Eliza, que descreve e com capacidade de mil e uma habilidades, não deixa de o assemelhar a um macaquinho, Por seu lado, a perversa criança negra e escrava Topsy, com todas as suas maldades, diabruras e caretas, a sua comparação constante com animais e a sua malvadez enorme ao lado da angelical e linda Evinha, a gentil criança branca que o Pai Tomás salva das águas demonstra bem como a superioridade estava do lado dos libertadores mas, nem por isso, menos dominadores.
Figura 8 - A beleza branca e loura bem superior de Evinha ilumina as mentes obscurecidas e infantis dos escravos.
( In "A cabana do Pai Tomás" )
Tudo isto é uma preponderância “natural” de séculos que não se vê pela força do hábito.
Figura 9 - A comparação entre a mãe e o bebé serve até de publicidade durante longos tempos.
Muitos foram os cientistas, no âmbito da medicina e anatomia que partiam de pressupostos “naturais” dada a fragilidade e passividade atribuídas ao sexo feminino, provas de vulnerabilidade e sinal de fraqueza do entendimento.
Os estudos que versavam as diferenças entre géneros feitos por cientistas imbuídos de superioridade masculina são muitos. Curiosamente por entre muitos conceitos erróneos devidos a sua época, o Nobel da medicina portuguesa, admite a “dignidade e igualdade da mulher”.[iv]
Cada vez que a complexidade social aumenta, o espaço de relação entre os dois sexos é menos claro ou determinado pelas instituições que reúnem e separam a convivência dos sexos, em nome de um respeito e delicadeza pela feminilidade. Muitos cargos ou funções não podiam ser ocupados pelas mulheres. Uma dessas funções, que resistiu longo tempo há aceitação da mulher, foi a financeira, empresarial, ou cargos de chefia política ou científica. Isto até parece supor que a mulher é um ser com carácter muito mais fraco, pois tinha ali a tentação ao lado. O que acontecia na Europa, não seguia o mesmo rumo nos EUA, onde a igualdade da educação e das tarefas surgiu mais cedo. Apesar de tudo, os exemplos mostram como a dominação é patente. Foi sempre visto como “natural” a profissão de médico ser praticada por um homem e a de enfermagem por uma mulher. O mesmo sucede com um chefe que tem uma secretária e não um chefe feminino que tem um secretário..
Aquelas reuniões dos homens entre si para tratar de assuntos considerados que só eles devem tratar veiculam hábitos ancestrais das decisões das tribos guerreiras, em que os homens reunidos com os seus chefes se separavam dos outros membros, mulheres, jovens e crianças. Mas, até há bem pouco tempo, assim se realizavam as conferências de paz ou de guerra em gabinetes dos generais, estrategas e representantes políticos. Apenas, uma presença tímida de uma silenciosa secretária seria, talvez, mas nem sempre, admitida.
Figura 10 - "Paris em privado"
( As damas desaparecem de cena após a refeição. Os sexos separam-se por tradições arcaicas e anacronismos inconscientes )
É curioso a persistência da caricatura dessa tradição, nos grandes jantares de cerimónia, em que as mulheres e homens se separam ao servirem-se os licores e café. A dona da casa, com um gesto mais ou menos discreto, convida as restantes senhoras para passarem a outra sala. Entretanto os homens reúnem-se num outro salão onde discutem assuntos que não consideravam adequados aos ouvidos femininos. Entre as famílias pobres, as mulheres comiam depois dos homens, pois estes eram servidos em primeiro lugar. Depois, enquanto as mulheres iam para a cozinha acabar de arrumar todas as louças e artefactos da refeição os homens permaneciam à mesa em longas conversas.
Figura 11 - O recolhimento de um salão nem sempre servia para grandes reflexões, mas para intrigas e discussões de toda a ordem
Esta tradição arcaica não é aquela que se liga às damas que abriam salões literários e artísticos, na sua residência e tinham dias próprios para receber. Teremos de remeter muito para trás do século XIX, para historiar a génese e formação desses salões. Existiram mulheres que deram um forte contributo na elaboração de uma linguagem mais burilada do idioma francês e uma liberdade de espírito que veio a manifestar-se em “As Luzes”, com o seu cadinho gigantesco de mudança de mentalidades por entre o contraditório e paradoxal.
Naquelas cidades em que se diz que “todos conhecem-se uns aos outros” o hábito de receber e de discutir os temas mais variados fazia com que uma cultura subjetiva, tal como a designa Simmel[v] tomasse um grande avanço e esteve na base desse grande movimento a que se convencionou chamar as Luzes, embora esse Iluminismo teve as correntes mais divergentes e antagónicas sem base comum para além da liberdade para uns, razão para outros e para todos a noção de progresso. Surge também uma noção também apenas ocidental que foi o otimismo. No Oriente, quando o conceito de progresso é posto em prática, há sempre uma ocidentalização das culturas e uma proximidade civilizacional.
Durante o século XIX, considerou-se o “salão intelectual” em toda a Europa como a forma mais elevada da socialização que os dois sexos podiam partilhar. Porém, com a massificação, a separação crescente entre a casa e o emprego, o público a aumentar com os espetáculos e a convivência entre grandes grupos, os bailes e toda uma diversão que implique uma grande massa, o salão começa a decair e a perder vitalidade.
Figura 12 - O teatro! Os grandes espetáculos juntam públicos de todos os géneros. Uns vão para ver e outros para serem vistos.
( No palco se morre ou se mata. No efémero das emoções esquece- se o antes e o depois. )
Pouco a pouco, há o salão que se transforma na continuação das aulas dos académicos. Temos de recordar que era proibido às mulheres a entrada nas universidades e instituições académicas mais prestigiadas. Por toda a Europa, só muito tardiamente, as mulheres entraram no ensino superior. Ora, nessas casas em que se abriam as salas para reuniões de debates intelectuais, o sexo feminino tinha direito de assistir e até de participar.
Figura 13 - A música, a pintura, a leitura. O homem de sedutor a seduzido
Assim os grupos dos dois sexos trocavam ideias, escutavam colóquios e palestras de modo informal. Essas ocasiões proporcionavam ainda a ocasião e os meios de jogar a sedução e o agrado, como algo entre o atrevido e o tímido, o intelectual e o sentimental, o galanteio e a ironia.
Ousar ou não ousar, dar uma atenção excessiva ou repentinamente virar a cara, ocultar o rosto com o leque, agita-lo subtilmente, tirar ou colocar as luvas, sorrir ou franzir a testa descontente, tudo isso fazia parte de um jogo feminino em que o homem usa toda a sua perícia de sedução e que durará enquanto nenhum dos jogadores se queria dar por vencido. Nenhuma frase é assertiva, tudo tem um sentido que cada um interpreta a seu modo e responde usando os mesmos termos, com um talvez ou um “quem sabe?” que nada promete nem nega. A timidez e o leque são uma arma de um jogo em que cada jogador ignora a próxima peça do xadrez que se irá mover.
Simmel parece colocar a coquetterie sob uma forma de sucedâneo do amor e ainda mais sob uma forma lúdica. “o que caracteriza a coquetterie na sua manifestação banal é o olhar de revés, com a cabeça meio virada. (…) uma maneira de esquivar-se ligada, porém, a uma maneira furtiva de entregar-se, de dirigir momentaneamente a atenção sobre o outro”[vi] Esse olhar que dura apenas uns segundos, é um interesse e logo um desinteresse,
Figura 14 - O tempo de um olhar.
( A questão : "ousar ou não ousar” ? Logo me escondo com o leque.)
Simmel aborda tres formas da coquette se comportar. A primeira é a aduladora, poderias, até podias conquistar-me mas não vou deixar, a segunda é a depreciativa “eu até deixava, mas não és capaz” e a última a provocadora, talvez possas conquistar ou talvez não. Tenta!
Figura 15 - A coquete provocadora
Talvez… “Tenta”!
Curiosamente, Simmel não descreve o comportamemto masculino que não é inocente, nem passivo, neste jogo. A aceitação é dupla e são dois os jogadores. Mas o modo de agir é bem diferente e o próprio Simmel, pelo modo como se refere às mulheres, sabe bem muitas das jogadas deste tao subtil jogo.
Figura16 - Quadro de Frédéric Andreotti, (pormenor)
As palavras lisonjeiras nada prometem mas agradam
Uma frase galante dita de passagem e voltar-se para falar a outra dama, uma admiração excessiva que parece dar certezas e segurança, seguida de sentenças sombrias acerca da existência, uma facilidade em levar a jovem a rir, ou a desconcertá-la, pela frase usada e afastar-se para outro grupo, um olhar mais ousado que logo se extingue ou ainda seguir silenciosa e teimosamente a coquette com o olhar até que esta o perceba e logo depois passar para uma confidência rápida com um amigo ao lado, com desinteresse ou possível crítica. As formas eram muito adaptadas a cada caso e nisso temos a exemplificação de Kierkegaard em “O diário de um sedutor”.
Figura 17 - Quadro de Abram Solomon “In first Class”
Aqui o jogo é bem subtil e ocasional. O acaso de Kierkegaard
Enquanto o pai ou marido dorme, o sedutor atua habilmente
Se a garridice tem aspetos de coquetterie o seu efeito pretende exercer-se sobre todos, em geral, muitas vezes pelo uso de adereços que parecem ter a intenção de chamar a atenção. Todavia, a psicologia explica que, muitas pessoas tímidas que dificilmente dialogam com desconhecidos ou cavalheiros que mal conhecem, usam esse meio para se sentirem seguras, com a sua aparência exuberante. Mas, o mecanismo de defesa é frágil pois, se chamam a atenção, não conseguem atrair senão de longe, causando aspeto de dama orgulhosa e inacessível.
Figura 18 - Aceito estas rosas, mas não passa tudo de uma demonstração do meu domínio e não do teu!
( Nada te prometo. Aceitaste o jogo, mas não sabes nada do que vai acontecer… )
No campo em que os jogadores dos dois sexos podem ser exímios é na coquetterie designada por “espiritual”. Aí os diálogos são vivos, com o falar sem pensar, contradizer-se, desvalorizar-se de modo a mostrar pedir cumprimento, ou protesto, o riso que tem um pensamento sério, ou uma frase séria que esconde ironia, uma mentira que pretende criar interesse ou que seja facilmente refutável, é o uso de toda uma linguagem em que um talvez é não e um sim nega, ou um não sei que diz que sabe.
Figura 19 - Pintura de F Andreotti. "O Poema"
Este trio é uma aposta do sedutor qual Don Giovanni de Mozart.
" Questa" ou "quela"?!!!
Temos de notar que este tipo de coquetterie não se extinguiu e ora se sofisticou, ora se banalizou, ou desacreditou por ser excessivmente óbvias as tentativas de sedução.
Figura 20 - A obra nada teria a ver com a coquetterie no seu sentido mais requintado ou de sutilezas de jogo "de finalidade sem fim"
Se bem tenha um passado muito distante na história, este jogo de coquetterie durou todo o século XIX, mas esteve mais presente na Belle Époque. Simmel insiste na sua presença apenas nos salões e limitada a algumas elites de intelectuais, escritores, poetas, compositores e artistas. O próprio Simmel notou que não nem todas as mulheres tinham capacidade para dominar essa arte que só a elevação do espírito e a inteligência dava aso. Portanto temos de acrescentar que este coquetismo não é recorrente em mulheres de espírito inferior, prostitutas e de classe baixa, pois Simmel, tinha por referência o jogo do “prazer desinteressado” de Kant.
Figura 21 - O jogo da coquetterie tem de ter mais razão do que coração.
( Cada jogada é uma pluralidade de variáveis que se deslocam e multiplicam. Não se pode conhecer os lances do Outro )
Se o jogo vale por si, e tem um tempo fora do tempo, podemos estar a falar de um sucedâneo da faculdade de julgar de Kant, já não no que se refere à arte e a sensibilidade do público face ao agradável, ao belo ou ao sublime, mas ao prazer de jogar, sem finalidade de ganhar, mas inserido no encanto do próprio jogo, um pouco como uma “epochê” fenomenológica. A coquetterie tal como procurou analisar tanto Kierkegaard, Simmel ou tantos romancistas que, por entre as páginas das peripécias dos personagens, tem a argúcia de descrever mil modos de coquetterie. A sedução sem finalidade, tem o mesmo esquema do juízo desinteressado da arte.
Figura 22 - Quadro de Renoir- "La Promenade"
( A hesitação é calculada, o talvez aceite ou recue, o rosto que se desvia por pejo ou fingimento, contrasta com a galantaria masculina e o aspeto que aparenta uma firmeza que não existe. Há uma antítese entre o sim e o não em que o prazer da mulher é o instante e o do homem não. )
Para atingir esse grau da “finalidade sem fim” há, na coquetterie, o que de mais elevado há na arte de saber jogar. Por haver a maior liberdade na sua forma mais pura de jogo. Apenas o receio de um ponto final leva cada jogador a ter a sua própria lógica mas sem comprometimento. Todavia há uma igualdade, ou melhor ainda, um domínio da mulher sobre o homem enquanto o jogo durar. Este domínio é real e só termina se um dos jogadores desiste ou cede. A mulher com a coquetterie tem todo o poder que as formas que usa lhe dão sobre o homem que aceitou o jogo.
Figura 23 - A feminilidade é o instante que reproduz a eternidade no tempo
Quando o efémero capta a beleza o prazer é o individual no geral.
Kierkegaard não pensou no estádio estético feminino e na sua essência em si mesma sem necessitar de se objetivar
É com perspicácia que Simmel que, com este comportamento a mulher ganha uma domínio e uma liberdade sobre o homem que raramente possui. “Entre o sim e o não, o talvez, a oscilação e incerteza, colocam a mulher numa liberdade que não tem forma puramente negativa, mas afirmativa. A incerteza e o indefinido que prende o homem liberta a mulher. A orientação para um fim está presente no homem e ausente na mulher se for realmente o jogo da coquetterie em que a dominação simbólica, ao contrário do que diz, Bourdieu, neste caso específico, é totalmente a dominação da feminilidade sem sombras de ser igual, companheira, filha ou mãe. É a essência do feminino na sua potência que apenas se afirma centrada em si mesma.
Na perspetiva do estádio estético que Kierkegaard[vii] tanto estudou, a coquete tem uma certa semelhança mas sem a desordem e a busca exterior a si, do sedutor, há na feminilidade uma certa consciência de viver como que numa “epochê” da realidade, mas centrada na sua essência, e ser a dominadora mesmo que por instantes. O engano e a máscara que o sedutor usa são a garridice que não obriga a ser fiel, nem a tornar infeliz ou comprometer o outro. A mulher sabe, através da coquetterie, a força da sua arte feminina e permanece no instante e na imediatez, com a consciência do prazer de agradar e de ganhar, sem sair do campo do jogo. Mas há aqui a liberdade do jogo pois ao contrário do esteta kierkegaardiano que persegue de aventura em aventura um prazer cada vez mais fugaz, cada vez mais desesperado e infeliz, o instante feminino é o prazer na essência do ser que “já não é criança e ainda não é mulher, nem a idade lhe retirou os encantos. Assim, consegue uma dominação simbólica consciente de que é um prazer seu, mas efémero e, assim mesmo, é uma arte de perfeição e de equilíbrio. A mulher sabe que tem apenas uma liberdade de jogar, um prazer do instante, que não é imaginário mas com uma eternidade “fora do tempo” que toca o instante e anula o antes e o depois, porque tal como no jogo, se sabe que é uma vida paralela tão real como a que depois tem de atravessar. A mulher coquete só tem a temer a si mesma, esquecer-se da multiplicidade dos papéis da sua existência e dos estatutos que o social lhe impõe. O estádio ético é o que a sociedade imperiosamente lhe reclama, “a beleza da mulher ganha com os anos[viii]” para o ético e não deixará de se realizar, para outra forma anónima do geral e do destino que lhe concede o matrimónio e a maternidade.
Figura 24 - Pierre Auguste de Renoir. “Mère”
O destino que leva a eterna contradição entre a flor e o fruto
NOTAS:
[i] Simmel, Georg, Fidelidade e gratidão e outros textos, 2004, Edição Relógio de Água, Coleção Antropos, p. 155 e seg.
[ii] Investigatión Y ciência, HIstoria de la Medicina, http://www.investigacionyciencia.es/mente-y-cerebro/numeros/2003/4/gall-y-la-frenologa-3820, 28.07.2013.
[iii] Deusdado, Manuel Ferreira, Ensaio psicológico da mulher sob o ponto de vista da pedagogia e da história, , p 214. Apud Artur Manso, Brotéria, Vol.164, abril,2007.
[iv] Egas Moniz, A vida sexual, 1918, 4ª edição,
[v] Simmel, Georg, Fidelidade e gratidão e outros textos, 2004, Edição Relógio de Água, Coleção Antropos, pp. 199-204.
[vi] Simmel, Georg, Ensaio, A Coquetterie, 2004, Edição Relógio d Água, Coleção Antropos, p. 153 e segts.-
[vii] Kierkegaard, Soren, L´Alternative, in, Oeuvres completes, 1970,Éditions d `Orante, Paris
[viii] Kierkegaard, Soren, Post-Scriptum, p.200.aux Miette Philosophiques, Edições Gallimard, Paris, p. 200.
© Lúcia Costa Melo Simas (Texto) - Regressar a " Os "Trabalhos e Dias" "
© Colaboração na concepção da página - Levi Malho.
Actualizado em 09.Agosto. 2013
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