" Memórias de Alice - VI "
(...) naquele engano de alma / ledo e cego (..) - [Camões, Os Lusíadas, III, 120 ]
Sobre "Cartas de Amor"
© Lúcia Costa Melo Simas ( 2013 )
Danças de "roda"
[ Pintura artesanal num vidro (Pormenor). Porto. 2011. ]
© Levi Malho
O sensato frade que tenta, com boa argumentação lógica, avisar dos perigos Romeu de Montecchio, apaixonado por uma jovem da casa inimiga, os Capuleto, ouve deste, uma frase sem réplica:
Nada sabeis do que falais, pois não estais apaixonado. (Shakespeare)
Este caso é um modelo das paixões, de que assim a lógica desaparece e a mente embrenha-se em labirintos absurdos. Como uma espécie de loucura ou comicidade, para quem não está envolvido na situação amorosa também causa riso ou torna-se ridícula para os espetadores. As reflexões do famoso humorista, Jerome K. Jerome (1859-1927) em “Três homens num bote” de 1898, acerca de dois namorados, observados por outras pessoas, demonstram um falso um sentido do real revelando falta se bom senso e caem num ridículo enorme se sem darem conta do cómico que diverte os outros.
Também Antero, num soneto, que parece um pouco desconcertante, mostra que, no jogo da sedução, a “coquetterie”, foi muito frustrante pela imaginação de poeta. O seu soneto “Jura” carrega desmedido despeito, talvez sem grande dor, pelo ridículo em que uma jovem o colocou e que Antero não suportou.
Tratou-se da conclusão de um jogo de sedução que terminou com o poeta cruelmente ferido e desenganado:
Jura
Pelas rugas da fronte que medita...
Pelo olhar que interroga — e não vê nada...
Pela miséria e pela mão gelada
Que apaga a estrela que nossa alma fita...
Pelo estertor da chama que crepita
No último arranco d'uma luz minguada...
Pelo grito feroz da abandonada
Que um momento de amante fez maldita...
Por quanto há de fatal, que quanto há misto
De sombra e de pavor sob uma lousa...
Oh pomba meiga, pomba de esperança!
Eu t'o juro, menina, tenho visto
Coisas terríveis — mas jamais vi coisa
Mais feroz do que um riso de criança!
Figura 1 - Este soneto “ JURA” é uma imprecação apelativa que altera final do poema para uma interjeição bem direta. Toda a comparação termina com incentiva bem direta à “menina”
Figura 2 - O choque que o riso produz quando inesperadamente rompe um discurso e revela o que tanto queria ocultar.
O riso é o remate final para dar azo a mostrar como foi atingido no seu orgulho.
Trata-se, visivelmente de um jogo de sedução entre a menina e ele em que o ridículo envergonha e atinge Antero.
O lírico usa a sua arte logo que acorda do encanto em que a “menina” o envolveu e a gargalhada é o que o ridiculariza diante da jovem. Será que foi atingido por esse riso em público? Então, o despeito e a ferida no seu narcisismo seriam muito maiores.
Embalado por “um talvez… ou quem sabe”… um olhar mais doce e eis que o poeta caiu na cilada e no jogo de "coquetterie". Desfeito o equívoco, só Antero não conseguiu manter-se livre. O orgulho ferido e o ressentimento dão-lhe um sarcasmo inicial muito subtil até ao remete com uma vingança amarga. As comparações que usa remetem para o imaginário e ele tinha-a de sobra .Não se pode considerar que existiu qualquer traição feminina, houve apenas um jogo. Quando esse jogo de sedução termina, é forte o desengano do poeta que já pensava ter agradado àquela jovem que afinal se ri dele. Também Garrett, na Inglaterra, ficou cativo da "coquetterie" das inglesas que o jogam com a mente e não com o coração, e nada mais era que jogo de salão.
Figura 3 - Caricatura a Almeida Garrett.
O poeta confessou que se prendeu no "flirt " e, como sentimental, não resistiu às damas que não entendiam o coração do português
O extraordinário filósofo Kierkegaard observou em “O Banquete” e em outras obras como “O diário de um sedutor”, que quando aparece o riso, ou o cómico, não há apaixonado que resista. O ridículo que Antero sofreu como joguete nas mãos de quem chama criança foi o desabar de um sonho. Ao chamar criança, a essa jovem menina, busca anular a sua feminilidade e diminui-la. A sua ironia está no jogo de negação da mulher que o rejeita e, sem a acusar, anula-a retirando a feminilidade e intitulando-a criança. O riso é duplamente cruel. Mas a criança revela sem medo a verdade. A jovem rotulada criança é o modo de Antero se vingar do despeito que sente. Quando pretende ver nesse riso “uma criança”, quer invalidar a feminilidade da coquete que o magoou.
Figura 4 - Um vago sorriso, um olhar sem dono, meia dúzia de cerejas tentadoras.
A "coquetterie" vence toda a poesia de Antero que se prende sem prender a jovem que se diverte.
Antero coloca a jovem na infância na busca de a ridicularizar e anular com a crueldade de quem se sente ferido no seu orgulho. É um jogador que não aceita a derrota. A veemência do final do verso mostra bem a confusão e o despeito que o tornou ridículo. Ser ridicularizado é o fim de qualquer devaneio. Só envergonha e fere quem prova o amargo veneno de uma gargalhada.
Curiosamente e em forte contraste com este soneto, dedicou a uma jovem de quinze anos, a quem demonstra claramente um imenso apego, palavras que desmentem o que, provavelmente depois escreveu:
Mas tu, criança, sê tu boa… e basta!
Sabe amar e sorrir… é pouco isso?
Mas a ti só te quero pequenina!
Na sua obra “Sonetos” continuava enlevado e preso pelas graças da jovem e, por diversos epítetos carinhosos é fácil verificar que se trata da mesma jovem. A ela se dirige com os mesmos, criança e menina, e repentinamente “filha” que tem uma conotação várias vezes repetida pelo poeta, de mulher ou até de esposa. Era esse o tratamento generalizado na burguesia de então de assim chamar com certo carinho paternal a consorte, e o hábito prolongou-se por
gerações, até na linguagem mais corrente. Seria Antero um sedutor? É provável que sim, tanto mais que viveu numa época propícia a sentimentalismos, para mais sento poeta ainda com mais violência as leituras e os encontros com jovens familiares tornavam vulgar um certo tom afetivo.
Viveu na "Belle Époque" e vê-se que tem um mundo de combate e de intervenção social, toma uma exterioridade objetiva bem forte, na escrita, nos diálogos com os colegas e amigos, das discussões e nas na busca de uma filosofia que desse fim a essa busca por todos os autores que leu e meditou.
Por outro lado, existiu o seu lado subjetivo, aquele que procurou esconder do público, aquele em que amou as mulheres, mas sempre numa dimensão que separava claramente os dois mundos. Eça, Oliveira Martins, Teófilo Braga, Alberto Sampaio também tiveram uma vida pessoal e privada e outra pública e sobre a qual estruturavam a sua vida subjetiva. O casamento, o emprego, o objetivo de vida, todos os companheiros foram encontram. Antero, pela exigência da perfeição, pela busca da Verdade, da Justiça e do Amor encontrou tantos caminhos que por eles se perdeu e com isso quase perdeu a obra e perdeu a vida.
A sua lírica, em geral, canta a mulher bem dentro das formas dos poemas românticos, com enlevo e paixão. Sublima o sentimento pela Mulher, ora a vê com objeto de respeitoso culto, ora repara na sua capacidade tentadora, o que está patente nos poemas escritos na sua estada em Paris. Aí retrata as mulheres com cruel desprezo, o que é bem raro nos seus versos (Carlos Fradique Mendes, Versos, “As flores do asfalto”.
(…) que têm elas, que assim nos endoidecem?
Têm o que mais as almas apetecem
Têm o aroma irritante e acre do Vício (...) - [1867]
Noutro soneto, Antero idealiza excessivamente o sexo feminino colocando-o num pedestal tão elevado que se torna ambíguo. A sua imaginação não domina a simbologia que usa e há uma antítese no ardor da linguagem para sair de um coração que esfriou no burilar dos versos.
Não mostra a arte de seduzir a amada, mas a de apurar palavras. O seu narcisismo transforma a mulher num ser que abandona as suas características femininas. Torna-a numa negatividade, sem realidade em si mesma, vazia e inofensiva, em termos sociais, para a masculinidade.
Coloca a sua situação desprendida de tudo se….eis o que pede:
Mãe
Mãe - que adormente este viver dorido,
E me vele esta noite de tal frio,
E com as mãos piedosas até o fio
Do meu pobre existir, meio partido...
Que me leve consigo, adormecido,
Ao passar pelo sítio mais sombrio...
Me banhe e lave a alma lá no rio
Da clara luz do seu olhar querido...
Eu dava o meu orgulho de homem - dava
Minha estéril ciência, sem receio,
E em débil criancinha me tornava,
Figura 5 - Quadro de Mary Casey.
A poética de Antero recorda e presentifica a figura materna, tal como se recorda outrora, no seu tormento do presente. Os medos de Antero face às emboscadas da vida e a sua noite que o rodeia, recorda a mãe que velava quando, na ilha o chão tremia e, os sismos marcaram para sempre o sentido da precariedade da condição humana
Há aqui uma transição da evocação da figura materna para uma troca, o seu orgulho de homem, que num arroubo lírico agora, ele dava, num apelo direto a uma mulher amada, para que o aceite assim menino novamente; no último momento transfigura toda a realidade e torna a amada, sem feminilidade, sem receios da sua sexualidade, no pedestal que ergueu à mãe ausente.
Acrescente-se que, este poema, repudia a sua verdadeira mãe, a realidade, aquela que vive na ilha distante e, possivelmente, se lesse tais versos, sofreria uma dolorosa desilusão psicológica por ver-se desejada e depois por outra substituída. Afinal, o filho que tão saudoso se mostrava e que depois de a venerar, coloca todo o seu afeto aos pés de uma outra mulher, uma desconhecida, uma futura nora, por quem se tem de dar por esquecida.
No âmago de Antero, uma ferida narcísica persegue-o toda a vida e é possível ser devida àquela separação tão cedo da sua família, arrancado, ao que ele dizia ser, “ um viver quase patriarcal da sua ilha”, e depois jamais terá sossego pois o seu mal vem de muito longe.
Descuidada, feliz, dócil também,
Se eu pudesse dormir sobre o teu seio,
Se tu fosses, querida, a minha mãe!
Figura 6 - Postal antigo
Depois de sonhar com um imaginário colorido de melancolia, a simbólica de Antero recusa o tempo.
Ao exaltar a mãe ausente na sua negatividade e ao suplicar a anulação da jovem, o poeta cria um ideal que remete o sexo feminino para o não ser. A negatividade da Mulher é a morte da realidade.
A confusão que estabelece entre a feminilidade e a maternidade não é de modo algum um equilíbrio no jogo. Afasta a sexualidade da mulher para lhe emprestar o que ainda não é ou o que remonta às suas reminiscências. A maternidade afasta a feminilidade, quer em relação ao passado, ao evocar a sua própria mãe do poeta enquanto criança, quer ao futuro da jovem a quem dirige o poema.A fantasia anteriana não aceita o presente e não quer o futuro.
Nega a realidade para se refugiar na sua saudosa infância. A mulher, a quem interpela em tal soneto, ao lê-lo, sentiria que Antero não a ama. Apenas, evoca a mãe que, essa sim, está ali presente vestida de saudade e de tristeza, diante dos escolhos de uma vida atormentada por mil “fantasmas” que o próprio poeta criava.
Se, a jovem tivesse um bom sentido da realidade, perceberia que aquele “dormir sobre o teu seio” era a sua anulação de mulher, a isso acrescentaria o sentido do ridículo e concluiria que o poeta caia no ridículo ou no cómico. Antero revela bem o que sente. Ao dirigir-se à amada, trai-se e manifesta as suas secretas desilusões.
O sublime que o poeta tenta emprestar à sua emoção é um risco enorme. A separação entre o ridículo e o sublime não é mais do que um fino cristal que, de repente, se parte. O imaginário descodificado pela lógica, capaz de pensar essa mesma realidade, em figura materna, torna o poema cómico. Se, por acaso, este poema fosse escrito por uma mulher, o poema registava um sentido filial, romântico e carregado de desventura. As razões do poeta estão da projeção da mãe para a amada. E a sogra, para a jovem só empresta o cómico e o riso sem nenhum ideal. Sem cilada poética, nem tão bela rima ou métrica, o homem viril e determinado melhor diria, se tu fosses, querida, dos meus filhos, sua mãe.
Figura 7- Pintura "Mulher com leque" ( Autor Desconhecido )
A jovem parece meditar com gravidade em decisões que quer tomar.
Já parece que pertence ao passado algum acontecimento que aguarda apenas pelo fechar do leque como se fecha uma página da vida. A seriedade ponderada de toda a atitude demonstra aquela beleza que talvez iludisse Antero ao vê-la como Mãe.
Com toda a lógica, a jovem que fosse alvo desta declaração, veria nessas promessas um futuro carregado de nuvens. Num compromisso em que o enamorado se diz capaz de se tornar tal qual uma criança “descuidada, feliz, dócil também,” merece forte preocupação por anseios que nada mostram de maturidade. Não é a docilidade do marido o que uma mulher espera e, face à sociedade, o descuido e a docilidade só merecem reparos severos. Os arrebatamentos do poeta confundem até ao fim a feminilidade da jovem a quem se dirige. Afinal, é a figura materna idealizada e já apenas pintada a cores que a saudade e os desenganos da existência tratam de colorir o que está no coração desiludido.
Curiosamente, vimos este poema “Mãe” colocado em homenagem ao “Dia da Mãe” Nada mais paradoxal e falso. Psicologicamente, a dor do poeta projetada idilicamente num imaginário é traiçoeira. A simbologia oculta, possivelmente ate do próprio Antero a “dor que deveras sente” . Aqui, como tem tanta poesia, as ciladas do pensamento afastado da lógica por uma poética, revela um mundo interior carregado de contradições.
Figura 8 - Quadro do Pintor Eduard Manet.
A tríada entre os dois jovens e o livro que se une pela voz é muda para quem contempla o quadro.
Só o imaginário capta um indefinido e secreto laço.
A jovem, que ouve o que o tímido leitor lhe dita, tem um ar distante. Quem sabe que também Antero ao ler os seus poemas se causava admiração, também deixava aquela incerteza que o jogo das palavras poéticas tenta alcançar o que a "coquetterie" alcança? Os jogos da sedução são tão subtis que nem sempre os jogadores se apercebem dos erros das suas jogadas. A voz e o elo entre estes dois seres e, todavia parecem bem distantes.
O que uma alma sente é inexprimível e sempre incompleto. As palavras traem. Deve ser verdade que, ao falarmos dos outros e dizermos o que pensamos deles, revelamos talvez melhor quem somos. A poesia com os seus excessos e arroubos está cheia de ciladas à custa do coração humano. O fluir da vida é o rio que não se pode deter, nem com toda a beleza do verso, nem com todo o sentido de humor que se descobre, nas artimanhas do inconsciente, quando este se manifesta na poesia.
© Lúcia Costa Melo Simas (Texto) - Regressar a " Os "Trabalhos e Dias" "
© Colaboração na concepção da página - Levi Malho.
Actualizado em 26.Julho. 2013
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