"  Memórias de Alice - V "

  •  Estar na Moda ou "Tudo novo, nada de Novo".

  • Condição Feminina e "Belle Époque"

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas ( 2013 )

 

 Actualidade de Sísifo

 [ Quadro de Almada Negreiros. (Trabalhos femininos de grande dureza.)  Gare Marítima de Alcântara. Lisboa. 1945/47. ]

© Levi Malho

 


 

E a Moda descobre a Mulher

 

 

 

 

 

 

 

 

Quando se evoca a Belle Époque parece que passa uma brisa de cores vivas e um perfume de Primavera se espalha no ar. A ilusão desce nos olhos que nunca viram senão imagens de outros olhos que podem mentir tão bem como os nossos quando a melancolia do que nunca mais volta se senta ao nosso lado.

Nessa velha Europa, nos finais do século XIX e início de outro, há aquele desacerto que herdamos, de tantos livros, imagens e recordações de que havia pessoas felizes em tempos parisienses, com todo o equívoco que a cidade luz empresta a quem só a pôde ver pelos olhos dos que lá foram. Havia aquele gosto lento de contar a ouvintes que não perdiam nem uma só frase e agora, “todos vão a toda a parte” e perdeu-se o encanto do longe por caminhos de modernismos técnicos e celeridade implacável.

      O lado obscuro da cidade não era para narrar e menos para visitantes incautos se perderem. À partida, era logo uma limitação pois a maior parte, a menos ridente ou feliz, não era para ver.

As mansardas e os becos enlameados da cidade, os cheiros nauseabundos do lixo e da podridão, a vida dos pobreza e a enorme miséria do operariado não abonavam a essa Belle Époque tão famosa. A par largas e belas avenidas, das ruas povoadas de gente elegante, das moradias carregadas de luxuosas e ricas mobílias e objetos, as fachadas coloridas, as cidades assemelhavam-se de longe a parques de diversões e não a formigueiros de animais diligentes e de aspeto bem negro. As invenções, novas técnicas que se anunciavam, os espetáculos, os restaurantes, os jornais, os jardins e passeios de elegâncias, havia a fotografia que encantava todos e ainda mais o cinema a deslumbrar multidões, muitos males e degradação se escondiam. Curiosamente foi na Europa que esta indústria cultural mais cedo se desenvolveu.

Os contrastes no seio da condição feminina têm aspetos sociais que refletem bem a dominação masculina. Se a medicina pode estancar a perda de vidas devido à gravidez e aos partos que passaram ser mais cuidados, o paradoxo do anonimato da maioria dos trabalhos das mulheres que se ocultava para realizar os trabalhos que engrandeciam um número muito mais pequeno de damas mais afortunadas não parava de crescer por sonhos de uma vida melhor.

 

 

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Figura 1 - Mucha é famoso no exotismo, no sonho e na possibilidade de juntar o Belo e o Impossível no desejo que a publicidade transmite

[ Anúncio de A Caixa Forte – Obra Social ]

 

 Colocava-se Paris no centro de uma Europa, com uma paz que alguns sonhavam duradoura. Irradiava luz, a cidade das multidões ruidosas e despreocupadas, gente das províncias e de todo o mundo queria vir a Paris. Abriam-se, para cada Exposição Mundial, as portas de ouro de um futuro maravilhoso, num mundo de prosperidade e euforia que contagiaria tudo e todos.

Podemos visualizar quadros encantadores de lindas jovens criadinhas, vendedoras de violetas, costureirinhas e sonhar, que eram tão felizes como bonitas, nas suas cuidadas vestesa encherem de figuras femininas se passeavam pelasruas, parques e jardins, onde antes eram bem raras as damas. Aparentemente as cidades resplandeciam de elegâncias,com as suas novas e largas artérias tal qual polvos gigantescos de que poucos cuidavam dos perigos que os seus tentáculos levavam bem longe. Encontraremos descrições de ambientes onde o bem-estar parecia real, quer em restaurantes, cafés e teatros, quer nos deslumbrantes ou modestos salões, onde só se recebiam círculos de amigos, conhecidos entre si. A alegria de viver só se consegue imaginar ao observar ainda as gravuras da época, jóias de extrema formosura, a delicadeza de brancas fachadas das belas casas, decorações radiosas e noites de festas constantes que mais pareciam dias sem fim.

 

 

Figura 2 -  Tudo fica com ar de festa ou à sua espera

 

De tudo isto há que descobrir um paradoxo que se oculta e é visível por todo o lado.

Na Belle Époque, a mulher toma-se moda .Serve de tema para a poesia, literatura em geral, pintura, surge nos espetáculos, na publicidade nos cartazes da Belle Époque é rainha de beleza, no teatro é aplaudida como na ópera, é tema de estudos de medicina, leva Freud e a psicanálise a desvendar desejos secretos do homem.

 

 

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Figura 3 - Este é um tímido arremedo de nova forma da publicidade.

[ Um certo ar de pecado e de perdição na curva do vestido negro e no olhar de lobo com o impecável chapéu alto e inútil bengala. ]

 

 Os intelectuais mais avançados, interrogam-se timidamente acerca das suas capacidades nas ciências e, além da enfermagem, a pediatria parece-lhes uma forma de medicina que merece a sua aprovação. Curiosamente, os pediatras não são, de forma alguma, a prática clínica que se incline mais para o lado feminino. Já a enfermagem, passado o seu tempo mais respeitável, tomou um rumo feminil tal como o de educadora de infância e empregos afins que os homens continuam a considerar “maternais”.Deixa o seu pedestal de esposa e mãe para se tornar presa da aparência, e surge a figura feminina, que vai da altiva dama, passa pela costureira e culmina na “mulher fatal” no culto a um eterno feminino que nunca se consegue decifrar.

Caixa de texto:  
Eugénia de Montijo, por uma questão de conforto, descobria as crinolinas ( in. Mello e Souza [i])  e acabou com o uso das anáguas engomadas e tãodesconfortáveis que serviam para preparar as saias. Segundo parece, foi a mulher de Napoleão III, quem levou à fábrica, que depois se tornou na famosa Peugeaut, um esboço de uns arames de aço e verga que armariam as saias com muito mais conforto para uso das damas da corte. A partir de então, a fábrica, que antes estava à beira da falência tomava fôlego, começa a criar guarda-chuvas, bicicletas e acabaria por ser essa marca famosa de automóveis.

A moda descobria uma presa que rapidamente passa a ser sua cativa. A vaidade feminina, a rivalidade entre as damas e o culto pelo gosto, quer exótico, elegante ou extravagante leva a moda a apossa-se da figura da mulher e, através dela, mesmo que não lhe toque, o dinheiro circula tal qual Simmel previa.

 

 

 

 Figura 4 - As damas da corte de Napoleão III aliavam o luxo a uma comodidade nova: a crinolina

 

 

 

Descobria-se um filão de consumo exageradíssimo com enganos e gastos sem fim. Estamos longe da emancipação ou dignificação da mulher, na luta pelos seus direitos, igualdade no emprego, de inteligência ou capacidades artísticas ou mesmo científicas.

Não se trata do género tal como a cultura o caracteriza, mas uma certa forma de ser mulher. Não é a mulher instruída, profissionalizada, a respeitável mãe de família ou a dona de casa perfeita. O voto, que as sufragistas tanto desejam, será alcançado mas serão os homens que são votados, sem que os lugares na administração e nos serviços tragam grandes benefícios à mulher e muito menos o reconhecimento das suas qualidades como chefe. A democracia excluía as mulheres, embora estas não fossem vítimas passivas e o nascimento do feminismo é a prova da sua luta por mais direitos. Mas a sociedade, em vez de olhar com maior dignidade para a mulher, tratou de a exaltar na forma da sua feminilidade, como garridice e sedução.

 

 

 

 

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Figura 5 - Uma pintura de Jean Benjoud.

[ Repare-se no contraste da dama e a mãe que espreita, com o filho ao colo. ]

 

 

 

 A moda serve para a rivalidade entre as mulheres e o prazer de agradar ao olhar masculino, de captar a atenção, numa outra forma mais subtil de dominação pois “estar na moda” é uma variável que morre e se renova a cada instante. Assim, o salão e a casa não bastam para as mulheres aparecerem como elemento de manifestação do poder masculino. A sociedade aceita que saia mas que se adorne, agrade, seduza. Em suma, torna-se necessário aparecer e todos os pretextos são bons. Antero esteve em Paris, pouco antes do terrível episódio da Comuna pelo que relatou, feriu muito a sua sensibilidade e apagou as suas ilusões acerca de um proletariado consciente do seu valor ou unido por uma causa.

 Só encontrou, com grande desilusão, grande penúria material, acompanhada de miséria moral e física. Ao tentar inserir-se na classe operária, em 1867, poucos meses suportou tal ambiente e tarefa, que antes considerava a sua vocação de proletário, ao lado dos seus irmãos.  

 

Figura 6 - Paris tinha muito mais feridas ocultas do que as alegrias do progresso

 

As suas impressões são pungentes, angustiadas, de quem se sente dominado por forças superiores ao que poderia suportar. Nos poemas denota uma visão infernal da cidade … A luz vibrante e vivida do gás/Inunda a multidão, inimiga da paz! Sai desta confusão uma horrível poesia/ Uma volúpia atroz, uma estranha magia,/Que irrita, acende e faz os sentidos arder/ Exaltação magnética, aromas de mulher (…) Sem destino e sem dono ardentes e cruéis… É o povo das antigas Babéis/É Godoma, outra vez, e o lago de Somorra, /E as Bacantes febris da desgrenhada Roma/ Com mais força somente, e esta nova paixão,/ Que sai do foco a arder da Civilização.” ( In[ii]. Noites de primavera no Boulevard )

 

 

 

Figura 7 - Antero procurou a poesia do trabalho e encontrou a vil circulação do dinheiro

 

 

Terminou num fracasso e voltou, numa prostração que o levou a refugiar-se numa quinta do Minho. Já o seu amigo Eça traçou um quadro de uma deliciosa ironia do novo parisiense que se entedia e aborrece face a tanto que pode ter a mil maravilhas que o dinheiro pode obter. Antero, na vida real adoece de fadiga, de asco, ou de esmorecimento.

 

 

 

Figura 8 - Desce a escada da desilusão e encara com a sordidez e a miséria, sem luz nem lirismo.

[ Imagem de fábrica de operárias ]

 

Eça traduz de modo também desencantado, mas carregado de crítica mordaz quanto à fé e religiosidade feminina com a bela visitante de Jacinto, Madame de Oriol ao seu palacete, enquanto mordisca um biscoito e beberica um Tokaji, conversa, faz-se admirar, hesita  um pouco em ir à igreja da moda, a Madalena afrontar as emoções do Père Granon!:

 

 

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Figura 9 - Um requintado vinho que o rei Luís XV servia a Madame Pompadour e Eça conhecia, por viver na Capital.

 

 E como Jacinto, reparando casualmente no chapéu que ela trazia, se curvara com curiosidade, impressionado, Madame de Oriol apagou o sorriso, toda séria ante uma coisa séria:

--- Elegante, não é verdade?... É uma criação inteiramente nova de Madame Vial. Muito respeitoso, e muito sugestivo, agora na Quaresma. (…)Aproximei o meu focinho de homem das serras para contemplar essa criação suprema do luxo de Quaresma. E era maravilhoso! Sobre o veludo, na sombra das plumas frisadas, aninhada entre rendas, fixada pôr um prego, pousava delicadamente, feita de azeviche, uma Coroa de Espinhos! Ambos nos extasiamos. E Madame de Oriol, num movimento e num sorriso que derramou mais aroma e mais claridade, abalou para a Madalena.

 

 

 

 

 

Figura 10 - Fachada de La Madelaine, início do século XX

 

 

Jacinto, no seu palácio sente que enfraquece e a “civilização” o torna nervoso, irritado, sem prazer que lhe retire o desânimo mesmo que habitasse famoso nº.202

 

 

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Figura 11 -. A cidade de Paris, no final do século XIX

 [ Obra de Camille Pissarro ]

  

Mas ninguém o retira de Paris. A boa prosa portuguesa pela fina ironia de Eça relembra as teses de Simmel e da circularidade do dinheiro. A cidade e a civilização escreve Eça pelo seu personagem Jacinto, só se compreende pelos “ armazéns servidos pôr três mil caixeiros; e de Mercados onde se despejam os vergéis e lezírias de trinta províncias; e de Bancos em que retine o ouro universal; e de fábricas fumegando com ânsia, a inventar com ânsia; e de Bibliotecas abarrotadas, a estalar, com a papelada dos séculos; e de fundas milhas de ruas, cortadas, pôr baixo e pôr cima, de fios de telégrafos, de fios de telefones, de canos de gases, de canos de fezes; e da fila atroante dos elétricos, tramas, carroças, velocípedes, calhambeques, parelhas de luxo; e de dois milhões duma vaga humanidade, fervilhando, a ofegar, através da Polícia, na busca dura do pão ou sob a ilusão do gozo – “ supremo progresso para alegria de viver.

 

 

Figura 12 - Sob o óculo de Eça, a ironia cintila e cativa

 

 

Já, Balzac e Vítor Hugo, denunciavam uma sociedade onde surgia a fábrica que dava pão para o trabalhador, mas leis não resolviam a questão social dos deserdados e a mão-de-obra não utilizável, mendigos, crianças, velhos, estropiados…

Dão-lhe novos papéis e assim Sarah Bernard é um modelo como artista, mulher fatal e como moda.

 

 

 

 

Figura 13 - Inventa-se a Noite!

[ O Lazer dos burgueses e dos ricos. A Mulher torna.se mais bela, mais sedutora e os espetáculos cada vez mais atraentes. ]

 

       A multidão sai das casas com um fito diferente do passado. Vai em busca do divertimento. Agora é a era o espetáculo, depois o cinema e os locais de prazer, onde a mulher vai para ser vista, ou onde trabalha para ser vista e porque também faz parte dos espetáculos. Durante algum tempo, muito breve, podem sonhar pois lhe pagam e tem admiradores. Pode sonhar chegar a ser também uma dama. Cafés, restaurantes, praças e jardins ficam “cheios”. É a urbanização que se manifesta com todo o seu fulgor e agitação bem visíveis, mas eram consideradas naturais e assim se sustentavam infatigável e penoso trabalho de mulher, não se falava nem se procurava ver. Todavia as contradições eram.

A aparição feminina dá-se por todo o lado, a sua importância em tantos assuntos, o seu aparecimento no cinema, nos espetáculos, nos concertos, nos chamados cabarets, aplaude-se a feminilidade. Já o seu infatigável e penoso trabalho de mulher, não se falava nem se procurava ver. Todavia as contradições eram bem visíveis, mas eram consideradas naturais e assim se sustentavam.

 

 

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Figura 14 - A máquina veio dar à mulher um trabalho redobrado com a exploração de mão-de-obra barata

 

Esta alegria de viver, não ficou apenas nas mãos femininas mas também não ficou nas mãos estritamente masculinas. O desporto, os bailes, as festas e a liberdade de tantas mulheres confundiam os sonhadores do parnasianismo ou do fatal “eterno feminino” que não tinha lugar em parte alguma pois apareciam por todo o lado até à caricatura dos conservadores adoradores da fada do lar.

A ideia da chegada de uma pessoa a uma cidade desconhecida, e que tivesse tanto dinheiro que tudo podia escolher e comprar ao ver as montras ficaria encantada. Mas Ortega y Gasset não vê senão a parte masculina da humanidade. Qualquer homem iria comprar apenas o que lhe fizesse falta ou lhe causasse cobiça. A visão tem muito de unilateral. Efetivamente é uma reação bem masculina que acabaria por levar  para casa talvez alguns objetos necessários ou novidades

 

 

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Figura 15 -  Sabonetes, perfumes cremes, tudo era agora desejado por todos pela varinha mágica da publicidade

 

 

 

Isto não tem nada a ver com a imaginação do mundo feminino, com certeza. Faltam aqui elementos que é a moda, o imaginário feminino e tudo o que a mente forma e cria sem parar, à volta de objetos que se podem escolher e comprar. A mulher aprendeu a lidar na condição feminina pelo jogo de agradar. Logo, elegância.

 

 

 

Figura 16 - Face à garridice de um rosto, a publicidade da cerveja e a solenidade de um ícone do teatro francês

 

 

As mulheres vestem-se para serem invejadas, distintas umas das outras, para seduzir sem palavras, só por um gesto a que a elegância do vestuário dá maior realce. Os mil pequenos nadas de um vestuário dessa época, eram um nunca mais acabar de preparações para sair ou simplesmente, aparecer. A palavra dinheiro nem sequer se pronuncia, nem precisa de se falar, mas a sua permanência é, ao mesmo tempo a força oculta da sua circularidade.

Nada melhor para entender a resistência de uma sociedade do que ver a feminilidade e a masculinidade na sua essência mais profunda enquanto se dá a circulação do dinheiro, a sua permanência a demonstrarem a sua força . Um dos factos que mostra quanto o poder mudou de mãos está no modo como se usa o dinheiro.

 

Figura 17 - Usar chapéu foi um imperativo da burguesia

 

 

Afinal, se bem que tal não seja ortodoxo, é sempre por entre as mãos de mulheres que a representação do dinheiro circula e é através delas que permanece. Se o ouro, as pérolas, os diamantes e outros artigos são algo que os homens gostam, isso só significa que gostam mais ainda do domínio sobre  mulheres.

Desde que a atividade feminina passou a ser visível, necessária, com acesso ao ensino, à instrução, com alguma emancipação e direitos mais definidos, as mulheres mudaram os homens. Em tudo isso, algo mais profundo e mais forte alterou a sociedade. Um poder novo, que nunca tinha dado à mulher sobre o seu corpo, a decisão de querer ou não ter filhos e a determinação da sua realização pessoal. Com esta nova ideologia o mundo mudou. Foi uma alteração que só tardiamente se refere e afinal está no centro da grande mudança. O feminino é que impera nas massas, nos espetáculos, na ópera, na alta-costura, n arte em geral. Não são apenas os homens que falam das mulheres, estas começam a falar por si. É certo que a sua voz não é feminina pois segue as pisadas masculinas, mas é a consciência que desperta

 

 

 

 

 Figura 18 - A repetição e a monotonia de um labor sem sentido

 

 

 

Toda a organização social se transforma. Os papéis fragmentados, desde a criança inocente, à adolescente frágil, à desconcertante e enigmática feminilidade passando pela maternidade, os homens em vez de distribuírem por cada uma das mulheres esses papéis, confundem agora os papéis todos, embaralham-nos e não sabem mais como entender a mulher. Educada, orientada, tanto subjetiva como objetivamente, a mulher nascia já com o destino traçado para ser mãe e não para ser feminina. Essa feminilidade era aceite apenas durante um tempo muito limitado da sua juventude e terminaria com o matrimónio. Com a entrada no campo do trabalho, nas tarefas ditas masculinas, na decisão de casarem ou não, de quererem ou não ter filhos, de tomarem consciência de que afinal nem querem ser iguais ao homem, nem serem comparadas com eles, e menos ainda defendida ou protegidas por eles, causou uma revolução do local para o global, do quotidiano para as instituições. A porta da rua abriu-se para fora e não se conseguiu nunca mais fechá-la. Agora chegou-se ao ponto de perguntar se o social está a chegar ao fim?

Aparecer e agradar é uma nova arte. Já existia mas a novidade é a rapidez de alteração dos cenários. Um jogo que torna a vida numa competição com mil variáveis. Este tema é aliciante pois reflete contrastes profundos, com mudanças e novas atividades para as mulheres.

A elegância feminina torna-se requintada e surge a uma nova mobilidade crescente da moda que circula tal como o dinheiro na globalização e no localismo. A pressão da moda afasta rapidamente cada individua que adquire fama. Diz-se que cada um tem direito aos seus 15 minutos de fama. Mas entra no jogo os mais sujos ardis. A fama é um estádio de instante que rouba uma vida inteira. O homem também tem de se adaptar e alterar os seus hábitos. É um jogo novo da vida e de toda a sociedade.
    Enquanto entre a alta burguesia, a mulher ganhava algum grau de intelectualidade, no caso de algumas mulheres mais afortunadas, outras entravam no mercado do trabalho de modo miserável e com tarefas terrivelmente pesadas para o que se dizia ser o “ sexo fraco”.

 

 

 

 

 

Figura 19 - A face da realidade do trabalho feminino

 [ Pintura de Pissarro ]

 

 

Entretanto, no Século XIX, as mulheres entraram atrevidamente num campo que fora sempre servado aos romancistas masculinos.  
    Nos inícios do século XX, a mulher já é alguém que não tem tanto a ver com a feminilidade subjetiva e cercada dos muros da casa. Antes, acerca das burguesas ricas e damas da sociedade, sabe-se apenas o nome que têm devido ao pai e depois o nome que terão depois de casadas. Na instituição social era de bom-tom um anonimato discreto que lhes desse recato e dignidade.  Mas a literatura veio alterar não apenas a mulher, mas também mudar o homem da Belle Époque.

 

 

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Figura 20 . A leitura escrita para as mulheres lerem, dita o que devem ser as mulheres

 

Logo que o sucesso dos romances femininos aumenta, o número de leitoras cresce sem parar.Como reagem os homens nos anos do início do século XX?
    A resposta de Jules Bertaut esclarece um pouco a forte deceção sofrida pelo orgulho masculino:

---- “O sucesso da atual literatura feminina foi fulgurante, surpreendeu a todos, mortificou a todos, e  humilhou um pouco a todos”.

 

Inconformado com os êxitos dos romances femininos, Jules Bertaut acusa os textos femininos de frivolidade, de um oculto apoio intelectual dos familiares que as protegem e de má literatura. André Gide escreveu até que descrê dos bons sentimentos mas não da má literatura que estes causam. Mais violento é o ataque de Doumic, (1906, p. 449) que, com a ironia dos seus elogios, esconde o descrédito do valor de tais obras. Não há estatuto profissional para a mulher escritora e remata a sua sentença de modo arrasador.

“Um dos atrativos, em muitos de seus livros, é (…) mal chegar a ser livros; (…) não passaram de um entretenimento elegante, algo como uma conversa à hora do chá ou uma partida de “bridge”. Nisso reside seu atrativo e originalidade.”

 

O conhecido escritor Marcel Prévost expressa perfeitamente esse mal-estar numa reflexão sobre o feminismo, publicada em (1910, p.59.):

--- Sejamos sinceros: é infinitamente provável que essas mulheres de amanhã não nos agradem. Mas as nossas deliciosas mulheres atuais teriam provavelmente horripilado os maridos franceses do século XVII. O importante, para as mulheres de amanhã, é agradar aos homens de amanhã: e podem ter certeza que elas irão agradar. Pois, ao mesmo tempo que elas, no mesmo sentido, os homens se terão modificado.”

 

 

 

 

Figura 21 -  Escrever? Mas sobre o que devo, quero ou sei escrever?

 

A feminilidade, estudada de modo ontológico na sua unicidade em contato com a força vital do cosmos, não está presente na Belle Époque pois surge apenas na sua aparência e superfície. Por isso, foi repetidas vezes, afirmado que no futuro a mulher terá o mundo na mão. Assim se diz:

A mulher será… O futuro é das mulheres…elas atingirão o poder…Estas vagas reflexões mostram o modo inseguro com que o papel social feminino estava a se tentar mudar. Assim também se dizia que chegava a era da criança e que este século XX seria o dela. Foi deste modo que a mulher passou a ser vista como o futuro, mas agora para o século XXI.

Entretanto é pela sofisticação da aparência e da sua elegância que mais se afirmam as mulheres da época. Qualquer pensador que freie a sua tendência de projetar no futuro as suas utopias, sabe que está a ter bom senso. Nada mais arriscado do que falar em nome do futuro, qual Pitonisa de Delfos ou profeta que se arrisca ao ridículo ou ao descrédito neste jogo de perfeito azar.

Estudando o domínio masculino exercido sempre sobre as mulheres, Goffman pretendia mostrar que as mulheres pertencem a uma categoria particularmente desvantajosa. Face à diferença, as mulheres são objeto de uma consideração particular pois têm isenção de trabalhos penosos, da guerra, ou algumas mercês em forma de cortesia. Goffman, tal como outros já tinham referido, alude ao jogo da sedução em que o homem é o primeiro a avançar mas a mulher também é quem “ autoriza o acesso a si mesma[iii]”.

O jogo de sedução entre homens e mulheres é ambivalente. Mas o alto valor atribuído à feminilidade é um presente envenenado que a apaga da cena social.

 

 

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Figura 22 -  Ao exaltar a beleza do exotismo a mulher recebe um presente envenenado.

 

O espaço de relação entre os dois sexos é determinado pelas instituições que reúnem e separam a convivência dos sexos, em nome de um respeito e delicadeza pela feminilidade. Os homens reúnem-se entre si para tratar de assuntos considerados que só eles devem tratar. Hábitos ancestrais das decisões das tribos guerreiras manifestam-se ainda nestes resquícios de jogos já vazios de sentido.

Entretanto, algumas mentes mais avisadas espreitam nuvens bem densas no horizonte. As certezas abalavam-se com as novas descobertas e as ciências mostravam o seu lado negro de possível destruição e morte. Será em 1912, quando os jornais comunicam a todo o mundo ocidental que se afundara o imbatível Titanic que o crepúsculo se abate lentamente no que se sonhara ser uma aurora de Luz com a ordem e o progresso de Comte a acenar maravilhas de um futuro atraiçoado.

A guerra, aquela que se iria revelar a primeira para o mundo inteiro, surgia com os seus cavaleiros do Apocalipse.

 

 

 

Figura 23 - A guerra que iria acabar com todas as guerras foi a porta aberta para o Inferno do século XX

 


 


Notas:

 

[i] Souza Melo, Gilda, O Espírito das roupas: a moda do século XIX. São Paulo, Cia das Letras, 1987.

[ii] Mendes, Carlos Fradique, Versos – Textos Breves, Edições 70,Lisboa, 1973.

[iii] Goffman, Erving, 1977, L´arranjemant des sexes, Edi.La Dispute. 2002.