"Sócrates ou Antígona ?"

  • Conflitos na Cidade

  • ©  Lúcia Costa Melo Simas

 

   

 

 

Manhã clara

[ © Porto,azulejo pintado.Prédio antigo da zona da "baixa"..2004. ]

[ © Foto digital . Levi Malho]

 


 

Sócrates ou Antígona?

 

   É admirável a tragédia de Sófocles “Antígona” (442 a.C.), e o seu texto traz o selo da eternidade. Aí o dramaturgo reconhece a maravilha da criação que é o ser humano, a obra mais assombrosa de todas as que estão à face da terra!
   Antígona é o símbolo de um conflito que atravessou séculos e tornou-se quase insolúvel, enquanto as especulações criadas em seu redor, parecem fascinar os espíritos e um sem número de pensadores, permanecendo sempre enigmática e nunca de corpo inteiro.

   A sua morte, com toda a obscuridade da longa tragédia, e a de Sócrates, este todo luz e claridade, são dois paradigmas da liberdade e da necessidade de obediência a uma Lei que se lhes apresenta irrecusável mas que em cada um é aceite de modo diferente.

   Antígona defende o jus natural e Sócrates morre pela aceitação do jus positivo. Nada porém é definitivo, nenhuma solução é justa, nenhuma síntese reúne as questões harmoniosamente.

   Os «crimes» de que ambos são acusados, face às pessoas comuns e frente aos nossos dias, não são condenáveis, mas as teias da trama em que se movem são muito complexas perante o Poder e é isso o que lhes confere aparência de culpados.

   Através dos séculos o veredicto não satisfaz e de geração em geração repete-se o julgamento num tribunal fora do espaço e do tempo em que teriam sucedido tais acontecimentos. Tudo é discutido. Até o «pathos» determinante da tragédia é enigmático.

   Desobedecendo à lei, ela enterra o seu irmão, cobrindo o corpo com terra só para não ser dilacerado pelos animais selvagens fora da cidade, e prestando-lhe o culto tradicional dos mortos. Segue uma tradição praticada desde sempre mesmo pelos povos mais primitivos em toda a Orbe e das mais variadas formas. É um acto separador do homem em relação aos outros animais e confere-lhe um dado cultural único e inicial da civilização.

   Note-se porém que o aspecto de não ser enterrado não é visto por Sófocles como um mal para a alma de Polinices. Isto não estava em causa. Em toda a peça, nem uma palavra se refere a tal e apenas pelo corpo ficar à mercê dos animais e não respeitar a tradição é a dor que faz mover Antígona no seu acto desesperado.

    Sócrates, por seu lado, segundo a tradição, fora um valente soldado, e tornara-se num mestre que arrebata a juventude ateniense. Os pedagogos são sempre uma necessidade de todas as sociedades, só que ele, guiado pelos conselhos do seu daimon, transforma a sua vocação no sentido da sua vida.

   A sua maiêutica e a sua ironia eram como as flores que atraem as abelhas. Foi chamado, mais tarde «o moscardo» porque, tal como este insectozinho, irrita quem está sossegado, ou a dormitar, Sócrates queria acordar as consciências, obrigava a pensar, despertava uma saudável curiosidade que era o caminho para amar a sabedoria. A sua ironia está para a sua ignorância no modo como mesmo não sabendo consegue pelas perguntas que faz que os outros descubram também que são ignorantes e estavam errados julgando saber. Mas a sua humildade deve ter excitado os orgulhosos, os «Bem Pensantes» que, talvez de boa fé, desejavam afastá-lo de Atenas e do convívio com os jovens.

   Surgem três atenienses a acusá-lo de crime contra a religião do Estado.

   Eram eles:

   Meleto, representante dos poetas e dos adivinhos, devia sentir forte despeito pela fama que o mestre alcançara, Anito, um democrata cujo filho era discípulo de Sócrates, mas que troçava dos deuses e não parecia ter escrúpulos, e Licon, um retórico, sem grande nome, mas cujo filho tinha sido corrompido por um discípulo de Sócrates. São estes os que levam a acusação às últimas instâncias, denunciam-no como culpado e pedem o castigo: - a morte!

   . A peça “As Nuvens” em que Eurípedes fizera uma caricatura de Sócrates, não pode ter contribuído para a queixa e já sobre ela tinham rolado 23 anos da vida da Polis.

   Há um fundamento diferente para a lei que Antígona defende e outro para a acusação de Sócrates.

    A Justiça (Dikê) tem contornos vagos, depende da divindade, da tradição e também dos juízos dos homens que vivem na Polis e não estão no Hades nem no Olimpo. Assim parece que se contrapõem uma Lei dos homens e do coração de Antígona. A cidade condena o traidor a não ser sepultado e o direito natural, neste caso do culto aos mortos e, tanto para um caso como para o outro, o que parece ser justo para um, é erróneo para o outro. Creonte e Antígona têm ambos erroneamente um dever antagónico a cumprir. São inimigos irreconciliáveis, inflexíveis pois apostam em visões do mundo diferentes.

   Pode dizer-se que a Polis se manifestou contra Sócrates, mas o fim mais provável do seu julgamento seria o exílio, ou talvez uma multa. Só a alta dignidade de Sócrates no Tribunal, face à denúncia, é que demonstra a grandeza da sua alma e o leva à morte. Platão, ao exaltar Sócrates neste passo, exalta a tarefa da filosofia que não é só pensar a vida mas saber viver e uma preparação para saber morrer.

      Antígona exalta o amor fraternal, mas permanece com uma dureza fria que transforma tudo o que toca em tragédia.

      Em oposição a Creonte, representante do poder da cidade e da lei dos homens, parece que a corajosa jovem que o enfrenta apresenta o belo paradigma da liberdade, do amor e da bondade natural.

    Temos porém de observar Creonte mais de perto e ver como ele é a sua antítese e quanto mais se fixa os olhos na sua adversária, mais trágica é a figura do homem que detém o Poder.

   André Bonnard, ao escrever sobre a cultura da Grécia antiga, intitulou um dos seus livros “A Promessa de Antígona” num hino a uma liberdade que se cruza na dialéctica do direito positivo da Polis com a do direito natural. Mas não é apenas a liberdade o que está em jogo é também a esperança de um dia a responsabilidade ser partilhada por todos numa renovação de novo homem e de nova Terra.

   Antígona, filha de Édipo, é o modelo da abnegação familiar, tanto por seu pai cego que ela carinhosamente guia no fim dos seus dias, como por seu irmão Polinices, morto num duelo que o opõe ao próprio irmão Etéocles, contra Creonte, rei de Tebas, sendo por isso traidor à cidade e assim, segundo a lei, condenado a ficar sem sepultura.

   Antígona não aceita a sentença. Ela vai prestar culto ao seu irmão morto pois que lhe é devido pela tradição, custe o que custar, mesmo sabendo do fim que a espera, sabendo que é jovem e vai morrer, mesmo que lamente nunca mais ter a alegria de tornar a ver o céu, as estrelas, tudo isso que a rodeia e a faz feliz. A sua lamentação, antes de se suicidar, não é apenas um pranto mas um desmoronar das suas forças. Porém ela pensa que a lei que lhe vem dos laços familiares, da tradição, é mais forte e fundamenta-se na força da Lei da divindade que ela invoca para o direito que reclama como seu.

   Antígona defende o jus natural e Sócrates morre pela aceitação do jus positivo. Há um fundamento para a lei que Antígona defende e outro para a acusação de Sócrates.

   A filha de Édipo mostra uma firmeza que é muito dura para todos os que a rodeiam e a amam. Ela rejeita o amor fraterno da irmã, do noivo, não quer consolação alguma. Determinada a seguir a sua consciência, a desobedecer ao rei, a seguir o que diz ser a vontade da divindade, justifica o seu acto pela piedade, pelo amor, pelo respeito pela tradição, pela dignidade da pessoa que mesmo morta, ainda é pessoa.

   A sua presença é breve, a condenação certa.

   Resta Creonte. Se Sócrates está rodeado de amigos e os seus inimigos são um pretexto para um desfecho fatal, Antígona tem amigos fiéis e o seu «pathos» só tem sentido iluminando o rei de Atenas, Creonte, o seu único inimigo, e passando para ele grande parte da tragédia.

   Por trás da tradição, e mais forte do que ela, estava a Lei dos deuses, a Divindade – Dikê – que integraria o homem na ordem do Cosmos, como todos os seres vivos, tendo os animais para manter a ordem o seu instinto e os homens a razão. Creonte está contra as Divindades, usa a razão do Estado e a sua tragédia pessoal adensa-se até ao final da peça.

      Ao Cosmos inteiro estariam imanentes as leis eternas, não separando o homem da natureza, mas colocando-o lá e não na Polis. Assim se justificaria o fundamento teológico da ética e que se prolongaria no Direito. Mas Creonte anuncia, erroneamente é certo como qualquer tirano, um novo direito, apesar de toda a fragilidade e risco, agora é tempo para a Lei da razão e da cidade. A lei de um tirano pode ser desrespeitada. Mas quem é o primeiro a acusar a tirania, já que só depois disso é que cessa o dever de lhe obedecer?

   Face a tal situação da consciência moral que se podia universalizar, o filósofo Kant aceitaria como imperativo categórico esta acção livre de obediência à própria lei do sujeito, no tribunal da razão. Antígona pode legislar, ela é legisladora, mas também súbdita que se submete  à sua própria lei. É uma acção por dever e não conforme o dever, pois seria resultante de um princípio racional do ser humano. É a liberdade que segue a Lei.

    Mas poder-se-á universalizar a Lei da consciência moral a partir de Antígona? Podemos ferir as tradições dos povos impondo uma consciência moral que não tem eco em realidades culturais ?

   A lei de Creonte é a vigente na sua cidade, aquela a que todos devem respeitar, aquela que ele representa como chefe supremo. Obedecer-lhe seria praticar a lei em conformidade com o dever, não por puro dever para quem segue a tradição como lei anterior e as divindades como legisladoras temidas.

     É a legalidade da Polis, mas esta não está de acordo com a moralidade de Antígona. Hegel com todo o seu saber e perspicácia, encontrou em Antígona, não a antítese de Creonte, mas um enigma insolúvel.

    As personagens de Sófocles são belas, vivas e as suas palavras discursos maravilhosos. Mas no pano de fundo em que estas figuras se movem estão as forças do Direito natural e do Direito positivo. Estão também as incertezas sobre as afinidades entre a natureza e a cultura e a própria qualidade do ser humano.

     A tragédia está igualmente centrada no poder e na liberdade, na figura masculina e feminina e no seu conflito sem fim. Antígona tem de ser condenada à morte. É esse o castigo reservado a quem infringir a lei que vigora na cidade. As excepções são causa da destruição da ordem estabelecida e não podem aceitar-se.

   Creonte, não pode condescender com a sobrinha, não pode ceder, e nem as súplicas pedidas e ameaças de seu filho Hémon, noivo de Antígona, o conseguem demover de seguir a lei. Ele afirma:

         

   «Os homens que a cidade escolheu para chefe devem ser obedecidos em tudo, quer seus actos pareçam justos, quer não».

 

       Dura lex, sed lex, dir-se-á de outro modo. É uma necessidade democrática porque assim se mantém a ordem, e a logicidade da lei está de acordo com a racionalidade dos habitantes da cidade.

    Estamos perante a consciência moral e o direito natural e a legalidade e o direito positivo.

     Antígona situa-se na linha entre a Natureza e a civilização.

    Terá porém razão na sua transgressão?

     Não será necessário que a lei da cidade se concilie com a lei moral e lhe dê forma?

     Não é a consciência moral o fundamento do Direito e da Lei?

     Na perspectiva de Antígona, é por amor que morre, porque não cede ao ódio, como ela própria declara:

         

     «Eu não nasci para partilhar o ódio, mas somente o amor!».

 

     Antígona não atende sua irmã Isménia que de algum modo representa já o direito instituído face à tradição moral, fá-la sofrer tentando envergonhá-la porque ela se recusa ajudá-la a prestar culto ao cadáver do irmão. O diálogo entre ambas é pleno de força, mas também de dureza indómita dos propósitos de Antígona.

      Isménia porém está muito mais perto de Sócrates do que de Antígona, apesar de fraca, usa a razão e é como aquele ramo de árvore, de que fala Hémon, que se dobra mas não quebra. A sua consciência moral não se abala por faltar ao culto dos mortos. Sabe a justa medida e por isso também não tem o carisma do trágico.

   As duas princesas tebanas estão em campos opostos, o amor à morte e o seu culto tradicional e o amor à vida e a necessidade de um conformismo lúcido, de bom senso que não atinge grandeza trágica senão pela interioridade da dor que em Antígona se exterioriza.

   Lamenta-se Isménia, tímida e temerosa, mas não cede ao pedido da irmã de sepultar Polinices, pelo contrário reage com realismo:

 

. «Agora que restamos eu e tu, sozinhas, pensa na morte ainda pior que nos aguarda se contra a lei desacatarmos a vontade do rei e a sua força. E não nos esqueçamos de que somos mulheres e, por conseguinte, não poderemos enfrentar, só nós, os homens. Enfim, somos mandadas por mais poderosos e só nos resta obedecer a essas ordens e até a outras ainda mais desoladoras. Peço indulgência aos nossos mortos enterrados mas obedeço, constrangida, aos governantes; ter pretensões ao impossível é loucura.».

 

    Isménia pode parecer frágil mas escolhe a Lei da cidade e por isso mesmo escolhe a Vida.

. Antígona escolhe a lei da tradição sustentada pelos deuses e pela divindade, por isso escolhe a morte. Há uma atracção pela morte que é mesmo um desejo de morte, radica no passado, o seu futuro é já véspera. Entre a morte do irmão que já aconteceu e a sua própria morte que ela anuncia, é aí, nesse intervalo, que Antígona existe. Símbolo da liberdade é também estranhamente anúncio de morte.

      A sua determinação não vacila e, face aos pedidos do noivo, que muito bem pode representar os apelos do amor e da vida que se lhe oferece, tudo rejeita. Antígona, consumida pela dor, nesse pathos trágico, tomou uma resolução e não desiste. Sabe que vai morrer condenada, dolorosamente privada de luz, mergulhada na escuridão do túmulo.

   Defende-se um passado, na sua tradição, na força do hábito, mas não se protege a vida, é em nome da honra dos mortos que a vida de Antígona é sacrificada. Querendo o futuro da tradição, Antígona escolhe o passado e morre em seu nome!

   Esta morte é fruto de uma valorização e domínio da tradição e da Justiça dos deuses. Antígona, apesar de ser tão forte e destemida, manifesta temor pelas divindades e desobedecer-lhes causa-lhe profundo receio.

    Creonte tem de ser forte face ao filho, mesmo que este o ameace de morte, e rejeita a tradição, recusa as leis dadas pelos deuses aos homens, para se firmar na autoridade do Poder, poder que pode criar leis.
     O conflito não tem solução. É a lei da transcendência face à lei da imanência que está presente. As motivações agudizam-se e dilaceram-se e, entre o Poder e a Liberdade, nenhum valor fica incólume. Para Antígona são as ruínas do seu tempo que desaparecem. 

     Desobedecer seria o desmoronar da força da tradição, de um tempo «esgotado» como afirma Paul Ricoeur: «A tradição, na medida em ela própria desce o declive do símbolo para a mitologia dogmática, vem a situar-se no percurso desse tempo esgotado».

    De algum modo o Direito positivo radica num direito anterior, dito natural em muitos casos, mas pode-se perguntar se não são ambos arbitrários, pois o que num povo é considerado tradição num outro pode ser considerado crime.

    Qual a razão da morte de Antígona?

    Os defensores do direito natural invocam-na sempre para não a condenar. Mas a lei natural também se exerce nalguma sociedade, só que radica num passado, num costume que pode já não existir e, tal como se aplica a Creonte, «nenhuma lei existe num deserto». As referências do contexto da acção de Antígona não são as de Creonte. Mas o mais importante aqui será a sua fundamentação divina. Essa dá-lhe razão. Creonte está contra a vontade dos deuses.

  A Justiça, Dikê, é vista como uma divindade, é uma verdade revelada, será ela que anuncia a «lei férrea» de Parménides, o Ser imutável, ingénito e perfeito que fundamenta o próprio pensar, revela a rotunda e inabalável verdade e ensina a linguagem.

   O pensamento só existe porque existem leis que nenhum ser humano pode transgredir. Se as leis são para o pensar assim também devem ser para o agir rectamente.

   O Ser ao revelar-se torna-se num dever ser imprescindível ao pensamento (leis) e à linguagem. Só a multidão sem discernimento ignora isto, pois se trata dos «homens de duas faces» que confundem o ser e o não ser, andam longe da «rotunda verdade» e escutam a ilusão da opinião (doxa).

   O terrível e venerável Parménides, como lhe chamou Platão, era legislador de Eleia e a sua filosofia está imbuída do direito natural na ordem do Cosmos em que o homem sabiamente se integra. A comunicação com os deuses existia ainda e os eleatas recebiam do mestre a sabedoria divina e as leis do Ser que são as da forte Necessidade.

   A fundamentação metafísica do Ser é tão forte como a revelação a Moisés no monte do Sinai:

         «Eu Sou Aquele que É»

 

   O direito natural seria a única legitimidade da Lei pois radicaria no imutável, na perfeição, na ordem cósmica de que o homem faz parte. A racionalidade dá o poder e também o dever de a usar pela necessidade das suas leis pois o homem é o único animal iluminado pela transcendência e pela razão, a excepcional herança que Parménides trouxe da mansão celeste da Justiça.

   Antígona, ao responder a Creonte pelos seus actos, fundamenta-se nesse Direito de Parménides e apela para as leis eternas e inquebrantáveis dos deuses, acima dos homens.

   Mas, para nós, há muito que a vontade da divindade deixou de ser o fundamento do Direito. Creonte está muito mais próximo de nós do que Antígona, e por vezes parece que o pomos na sombra e só ela é toda iluminada, mas a sombra também se projecta sobre Creonte e a sua figura é talvez mais trágica do que a dela. Estranhamente é a jovem que remete para o passado e é ele, o velho tio, que aponta para o futuro, para a racionalidade da lei da Polis, com toda a sua imperfeição e insegurança, mas é a da cidade, da legalidade, da exterioridade e não da moralidade, da razão e não do coração.

    Quando se invocam princípios religiosos para as leis, está implícita a aceitação da existência de valores éticos nos homens, que agiriam naturalmente ao serem bons, justos, honestos, em suma, virtuosos.

    A religião tem tendência a aceitar o direito natural porque seria o correlativo à teoria do comando divino que ainda hoje é defendida na ética cristã. Corre-se sempre o risco de acabar por defender uma teocracia e o direito dos governantes ficar sob a alçada do divino. Para mais, há o óbice de que se universalizam leis que, muito embora advoguem os Direitos Humanos, são de raiz europeia ou melhor ainda ocidental. Será que não devemos respeitar outras culturas que usam a mesma razão para tomar posições determinantes de leis que não nos parecem justas?

   Face  ao poder da razão todos podem estar de acordo mas muito se diverge no seu uso e o bom senso nunca bastou para criar a Lei universal. O direito comum na comunidade não evita erros como a condenação de Sócrates e todavia, como defende Espinosa, todo o homem teria uma natureza e seria essa natureza que a guia para tudo o que faz, quer se trata de agir pela razão ou pelas tendências ou cupidez. Nesta perspectiva o homem não é livre senão quando o direito natural se coaduna com a necessidade da natureza. Mas hoje isto levanta mais problemas do que os resolve.

    Espinosa consideraria o rei e sua sobrinha sem liberdade. Creonte porque as normas que defende são obra do direito da Polis e criam a injustiça. E Antígona por não encontrar no direito natural a necessidade que fundamente a sua acção e a torne livre. São ambos trágicos, atingidos pela «hybris» tal como Ajax, Clitemnestra ou Orestes. A «hybris» tem também a sua lei e esta liga-se ao crescente da ira que se acumula para um ajustes de contas final trágico.

   Quem não age pela «hybris» mas pela razão e também pelo seu Daimon é Sócrates. A sua serenidade é admirável e a sua condenação esmaga os acusadores e eleva o acusado. Também ele defende a Polis e esse é o seu lugar natural. Mesmo afrontando o risco de morrer, a sua obediência é à razão e ao estado social. O resultado será o menor dos males. A obediência de Sócrates parece-nos que seria defendida por Espinosa pois é a única forma de fé, o filósofo escutara o seu Daimon e este dera-lhe por missão o filosofar. Mais do que dirá Grócio ou Descartes, Sócrates vive o reconhecimento da obediência e por isso aceita a necessidade do desfecho de toda a trama urdida contra si.

    Torna a sua morte um crime contra a moral subjectiva mas uma necessidade face ao direito comum acatado por todos os que querem viver na cidade. E Sócrates é e quer ser sempre um cidadão ateniense.   

   O risco do idealismo teórico da Justiça, que parece guiar a princesa tebana, não fará esquecer a relatividade das leis de que ela mesma é um exemplo?

   A racionalidade de Deus passou para o poder da razão humana e nesta haveria uma moralidade inata. Até mesmo os defeitos dos homens, nomeadamente o egoísmo, provam que o homem conhece o erro e por isso deve guiar-se pela razão e ser altruísta o que só redundará em benefício próprio.

      Hobbes, na antítese de Rousseau, considera o homem «o lobo do homem» dominado pelo egoísmo e Campanella, este com a sua utopia “A Cidade do Sol”, sem negarem o interesse do indivíduo, colocam ambos a lei como defensora do bem de todos, mesmo que individualmente por si mesmo, cada qual busque a sobrevivência, e só assim se defende do outro. Não estão na linha do jusnaturalismo de Espinosa que não está apenas sob o domínio da razão mas sob o da necessidade do direito e remete para Deus o direito da natureza, afinal a ordem de todas as coisas fundamentar-se-ia na natureza de Deus.

   Mas temos de avançar para a análise da natureza do homem.

   Descobre-se que é muitíssimo difícil afirmar qual é essa natureza e se, afinal, o homem tem mesmo natureza, ou se há, como sugeriu Edgar Morin, na obra “O Paradigma Perdido”, um elo que se quebrou na cadeia da evolução e nunca mais se encontrou, ou se a tal natureza é uma disposição que só surge dentro de uma cultura e por isso haverá tantas naturezas ou paradigmas humanos como culturas. Todas elas válidas, todas elas respeitando as suas leis, a partir dos seus costumes e tradições, se admitirmos uma visão relativizante. Assim a Lei regressa à cultura, à cidade e o homem é, como disse Aristóteles, um animal político. Não pode existir uma natureza ética inata e similar para todos. Então o direito só tem sentido na cidade e dentro das suas muralhas, a sua força é a sua necessidade de existir para todos na mesma comunidade.

    A morte de Antígona parece um enigma para qualquer tempo e pensador mas, lá no fundo, não será uma derrota? Toma como que o sentido de aniquilação do indivíduo, do solitário, do rebelde contra a Polis, de uma liberdade que precisa de uma oposição, para se manter perene.

    Há mortes que se celebram como vitórias. A de Sócrates é o triunfo da razão sobre todo o poder, a última lição do paradigma do cidadão da sonhada República dos homens livres que morre serenamente sem se trair, deixando como herança uma liberdade nova para os seus discípulos.

    Afirma-se a separação do humano da animalidade de que faz parte e não se pode esquecer mas se pode dominar pela racionalidade que só o homem teria.

    Nas sociedades animais existem as leis do mais forte, do sacrifício dos fracos, débeis ou deficientes, da luta pela sobrevivência, tudo isso faz parte da Lei da Natureza. As primeiras sociedades humanas defendiam direitos naturais que hoje nos repugnariam. A selecção natural, a desaparição das espécies inadaptadas fez-se ao longo dos tempos e em todas as espécies. Foi inexorável. O risco do direito natural estaria em poder fundamentar ideologias com leis em que o direitos do mais forte, do mais apto, se podem tomar em consideração, criando a ideia da superioridade de povos considerados mais aptos, mais fortes face a povos mais fracos e menos aptos a sobreviver numa selecção «natural» que a sociobiologia não exclui e a noção do «gene egoísta» extrapolada da natureza para a cultura levaria o neo darwinismo a extremos que não se podem sequer imaginar o terrível alcance. E isso não está muito longe de se realizar, é mesmo um risco que está sempre bem presente.  

 

    A inteligência inscrita, no gene na hipótese da sociobiologia, levaria os indivíduos a realizarem o que é o bem para os genes e estes seriam transportados por nós na espiral da evolução progressiva. Seríamos os construtores mas não os senhores da grande obra da Inteligência.

   Espantosamente, essas ideologias multiplicam-se e no fundo são formas novas de exploração ao nível globalizante, não de pessoas ou grupos, mas de povos inteiros, de extermínio de religiões, de luta dos países mais fortes contra os mais fracos a um nível tão elevado que o cidadão comum pode nem se aperceber e na maior parte dos casos ignora.
   Se não é em Deus que os homens querem colocar o fundamento do Direito, com a aceitação da teoria do comando divino, há que verificar como o ser humano, com toda a sua racionalidade e inteligência, é também animal e muitas vezes se esquece disso.

    Durante séculos a frase de Aristóteles foi repetida: «Os animais são irracionais», e afinal não corresponde à verdade pois há animais inteligentes e muitas vezes, levados por emoções agimos irracionalmente. As paixões amorosas dos ocidentais são vistas com espanto pelos orientais e classificadas como neuroses ou irracionais.

    Kant censurava abertamente as acções guiadas pela animalidade, pois seriam as que causam os vícios bestiais; enquanto as disposições para a humanidade que estão ligadas ao amor patológico, à inveja, aos vícios diabólicos da alegria pelo mal do outro, à rivalidade, podem levar à guerra que só pelo medo se poderia evitar. Apenas a acção praticada por puro dever é que seria livre e ordenada pela razão.

    Surgiu assim o optimismo do Iluminismo e a conclusão cartesiana já anunciada de passar a ter fé na razão, em vez de ter fé em Deus.

     Será pela razão e não pela fé que o homem pode chegar a pensar Deus embora não O possa conhecer. O orgulho do iluminista é uma aposta arriscada na racionalidade.

    Já quando se trata de examinar as crenças, as tradições e padrões de cultura, os antropólogos e etólogos encontram semelhanças no homem nas suas sociedades com outras sociedades animais onde a rivalidade, o ciúme, o ódio e a lei do mais forte estão presentes e em muitos casos ocultam-se por trás do saber, informam-no, dirigem-no e concretizam-se.

    Quando se admite o direito natural, no caso de se tentar salvar Antígona, se não invocarmos a lei de Deus, a transcendência, teremos de encontrar, tal como Kant o encontrou, na racionalidade humana um fundamento que justifique a igualdade desejada para se poder criar leis universais, não apenas conforme a razão, mas também conciliando a consciência moral, tomada como liberdade, com a racionalidade.

    Mas se assim for, Antígona não tem mesmo que morrer?

   Assim o afirma o Poder. Creonte vive a tragédia da solidão enquanto Antígona vive a tragédia da dor humana e do sofrimento a que a transgressão a condena na luta eterna entre a lei moral e a lei da cidade. Nem Rousseau, nem Hobbes, nem Kant, ou Hegel puderam resolver objectivamente o conflito entre natureza e cultura e hoje o pensamento filosófico eurocêntrico corre tanto o risco do colonialismo como o desafio do respeito pela dignidade humana tida como universal. 

   Antígona tem de morrer! Assim o exige a cidade na pessoa de Creonte. Assim o exige a Lei. A cidade de Tebas vive uma grande desordem. A família dos labdácidas, com origem em Laio, é sinal de transgressão da Lei.

   Laio manda matar o filho Édipo contrariando toda a ordem familiar. Este escapa e comete parricídio, muito embora ignore que matou o próprio pai. Depois há o incesto com o casamento com Jocasta, sua mãe e sua esposa. Há ainda a morte fratricida dos dois irmãos de Antígona, e a quebra das leis da cidade trazendo estrangeiros como ajuda causando ainda maior desordem.

      O direito natural insiste em ver o poder de Creonte como traindo as funções da Lei, já que a sua tirania o leva a uma lei injusta e remetendo para São Tomás de Aquino fundamenta-se no facto deste opinar que «uma lei injusta não é lei». Mas as leis são uma tentativa de justiça e nunca atingem a perfeição. De facto, todo o legislador deve pretender o bem comum, mas cada casuístico procura na lei a defesa até dos culpados e põe em causa a Justiça em nome da defesa de uma pessoa.

     Hegel desdobraria o culpado em muitas facetas, tantas quantas as formas fenoménicas que o espírito se pode manifestar num individuo e não poderia conciliar a subjectividade de cada perspectiva com a objectividade da Lei que, a seu ver, corresponde a um determinado fase da evolução da liberdade e do espírito realizados no Estado. 

     Agora a desobediência da filha de Édipo à lei, prestando culto ao irmão traidor à cidade, é a derradeira transgressão.

   Será justa a lei? A lei mesmo injusta, face ao caos, pode ser uma necessidade em algumas circunstâncias. E quem julga a Justiça? Antígona, ao prestar culto ao morto, arrasta consigo para a morte Hémon, seu noivo e filho de Creonte, e ainda Euridice, esposa deste. É moralmente justo este sacrifício em nome da tradição, por respeito para com uma pessoa? Isménia, sua irmã, será culpada por não a seguir na tradição?

  Em nome dos costumes e da Justiça divina existe um mundo que não é já o da cidade. Antígona e seu irmão morto estão já fora da Polis.

   A jovem frágil e inocente é ao mesmo tempo a dureza e a força da consciência moral face à lei do Estado.

   É a razão onde se fundamenta a lei, quer seja moral, quer seja objectiva. Mas se a racionalidade é um dado inegável, um princípio assente, o agir e o decidir, são já em função de conteúdos racionais que apontam para um relativismo perigoso, mas sempre bem real.

   A verdade é que os homens morrem mais em função de valores do que de factos. A força do valor e o valor da força estão condenados a serem arbitrários. Agir em função da natureza humana é colocar a cultura e o animal integrados e conciliados no homem e tem uma falsa solução que ainda nunca se atingiu.

   Os filhos de Édipo são fruto de uma transgressão da Lei. A luta fratricida entre Polinices e seu irmão é uma nova transgressão de todas as leis.

   A transgressão de Antígona é a última que fecha a página da história desta família. Mas a sua arrogância ao defender os seus princípios não é menor do que a do rei de Tebas ao defender uma lei que pode ser cruel e injusta. Ambos defendem denodada e erroneamente princípios diferentes.

    Ora se Antígona, tomada de «furor» (hybris) matasse Creonte não ergueria novo poder, não teria lei que a defendesse, nem natural nem positiva. E todavia Antígona, que pode representar a voz da consciência, não tem piedade de ninguém. São ambos inflexíveis, inimigos pela razão e pelo coração!

    Não há sabedoria trágica salvadora do conflito entre razão e coração, entre convicções e costumes e a Lei.

   Entre as duas princesas irmãs está o conflito de morrer ou ceder à vida os seus direitos.

   Isménia é a única filha de Édipo que tem uma sabedoria prática, embora sofra e se lamente por ser mulher entre a lei da tradição e a da transcendência e o direito positivo com toda a sua carga de injustiça e arbitrariedade. Ela diz Sim à vida, coloca-se para além do conflito e integra-se na Polis. Ela que, tal como seus irmãos, tem o sinal da transgressão, é a única que suporta tudo, é, talvez para além da tragédia, o triunfo da Vida. Creonte ficará arrependido, desesperado ou resignado e em profunda solidão com o Poder que isola e oprime o opressor. Antígona é o outro lado do nó górdio onde radica a consciência moral face a todos os direitos e a todas as leis.

   A admiração pela firmeza de Antígona e a sua luta pela liberdade da consciência causaram sempre fascínio e polémica. Mas somos nós que condenamos todas as Antígonas ao longo dos tempos, não estamos ao seu lado na escolha da morte, muito pelo contrário, estamos do lado de Creonte, com toda a sua fragilidade do Poder, é também o direito instituído, apesar dos seus erros e injustiças, é a força da razão que, como dizia Goya «pode gerar monstros» mas também é símbolo da aposta no futuro da humanidade e da vida.

   Antígona terá de morrer enquanto o Reino dos homens livres do idealismo kantiano não for instaurado e a reconciliação da consciência moral com a lei da cidade, como queria Hegel, não acontecer!

   Como é diferente a morte de Sócrates face à lei da Polis que o pretende esmagar como esmaga Antígona!

   Estamos agora em Atenas e não em Tebas. A lei já não está apenas na vontade de um rei, mas no povo ateniense. Pela primeira vez, a democracia está no palco da História.   

   Sócrates é velho e sábio, Antígona é jovem e trágica!

   Para Sócrates a morte é o paradoxo do triunfo da ética, mesmo que a lei seja injusta, mesmo que morra inocente, não é o culminar de uma tragédia devida à injustiça da acusação de corrupção dos jovens atenienses, mas sim a consciência moral que se submete à legalidade da Polis, e com toda a sabedoria aceita a sentença, não se suicida, não foge, não se revolta nem transgride dever algum.

    Tudo isso ele podia ter feito. Podia viver ainda mais alguns anos no exílio, mas, a seu ver, isso seria trair a sua missão, viver como que desonrado, ele, que tentara mostrar o poder da filosofia assumida na vida, iria ceder à natureza e evitar a morte. Com isso profanaria a sua missão, poria para sempre uma mácula na filosofia. Por isso não cede!

   Nem sequer os seus inimigos eram assim tão poderosos e a sentença foi dada por uma pequena maioria. Em sua defesa Sócrates não podia apelar para o bom senso, muito menos para a piedade ou para o seu valor de educador pois é esse o pomo da discórdia.

   Porém é a exaltação da sua pedagogia como a tarefa da sua vida que ele apresenta como argumento. Não se quer defender de outro modo senão com a própria culpa de ser um educador dos atenienses e a lei que o condena resulta do jus positivo, na sua faceta cega, na sua injustiça mas que, nem por isso, deixa de ser Lei. Uma lei que brota do coração dos homens mas depois na sua forma prática tem todas as imperfeições do que é humano. A razão crítica e o direito natural transmudaram-se na Polis e aplicam-se a todos, não pode haver excepções, não pode haver piedade, que Sócrates nem aceitaria, porque ao morrer ele enaltece a obediência à civilização e toda a esperança que ela encerra.

   Ele é o símbolo da muralha humana erguida contra a barbárie. Podemos ver em Sócrates uma aceitação dos preceitos religiosos, a presença constante do seu Daimon que o aconselha sempre em todas as ocasiões em que tem de tomar uma decisão. Há uma transcendência que o anima e o leva a prever a imortalidade da alma depois de ter cumprido a sua missão que o Daimon lhe tinha designado.

    A filosofia toma agora um rosto humano. Em vez da Verdade é a Ideia do Bem que encerra a verdade e o amor à sabedoria é sinónimo de axiologia. O Ser abandona a total transcendência para se tornar no dever ser do humano no mundo!

    Com esta morte, dá-se o triunfo da razão sobre a tragédia com toda a sua força obscura, e desmedida. É a era dos valores que se inicia e que tanto critica Nietzsche, começa a Metafísica e a identificação do Bem com a sabedoria. A ignorância é que levaria à desordem e a todo o erro, mas pela lógica e pela razão o homem podia atingir o mundo oculto do Bem.  

    Acima dos homens de Atenas que o condenaram, acima de todas as leis e do Direito está muito simplesmente a Justiça!

     Essa é a Lei que se insere no mundo, não lhe é transcendente, e, sem ofender os deuses, como temia Antígona, agora a Justiça é imanente à razão e é essa razão o fundamento e a expressão da outra Justiça que nasce, quase que espontânea, com todo o risco que a palavra encerra, mas é a lei da cidade, ou seja, a Lei para a comunidade humana. É uma pálida sombra da luz da Ideia de Justiça pois partilha dessa mesma Ideia.

    Sócrates, mostrando-se insensível à morte, desdenhando defender a vida, apenas se revela mais autêntico e verdadeiro! É uma luz de esperança maior do que a de Antígona, a esperança de haver um homem com a consciência feliz, capaz de dar a vida pelos seus princípios e submeter-se à morte pela ingestão da taça de cicuta. É ainda capaz de se reconciliar com a lei. Assim falou o filósofo face aos seus inimigos:

 

    "Eu predigo-vos portanto, a vós juízes, que me fazeis morrer, que tereis de sofrer, logo após a minha morte, um castigo muito mais penoso, por Zeus, que aquele que me infligis matando-me. Acabais de condenar-me na esperança de ficardes livres de dar contas das vossas vida; ora é exactamente o contrário que vos acontecerá, asseguro-vos (...) Pois se vós pensardes que matando as pessoas, impedireis que vos reprovem por viverem mal, estais em erro».

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    Há uma ameaça contra a injustiça dos seus inimigos e essa ameaça estende-se a todos os maus juízes, a todos os maus guardiães da Lei. a todos os defensores dos prevaricadores que usam a própria lei para não punir os culpados. Sócrates está ciente de tudo isso e afasta-se desses caminhos que são tão erróneos como a decisão de Creonte.

    É sempre a fragilidade da razão no seu uso prático mas que nos seus princípios tem a força da civilização. É a afirmação da humanidade do homem contra a barbárie do indivíduo solitário, ou da Horda, sem pertença a nenhuma comunidade. Sócrates ao querer morrer ateniense não o consegue, na verdade morre como cidadão do mundo!

        Podemos estar certos, Antígona, a bela jovem cheia de amor fraterno, quer morrer pelo seu irmão. Mas não podia beber a taça de cicuta de Sócrates porque está contra ele. Sócrates obedece à lei da cidade, uma lei a que todos se devem submeter. Antígona está ainda em Tebas, não age como cidadã ateniense, não participa de uma democracia, não aceita a Lei como a única forma de sobrevivência da Justiça.

   Se a esperança de Antígona é a da liberdade do indivíduo, ela está só. Já Sócrates rodeado dos seus discípulos apela para a esperança pela a forma como recebe a morte. A filosofia pode ensinar a viver, mas acima de tudo tem o dever de ensinar a morrer. E se Sócrates morre desta forma é assim que a sua filosofia se torna uma esperança eterna.

    O Direito Natural nunca foi escrito, é suposto ter vindo de longe, de uma idade obscura, não foi criado pela Polis, nem é formulado pelo Estado como o adjectivo natural indica, é um direito espontâneo, depois é costume, hábito que se originaria na própria natureza social do homem e que seria revelado pela conjugação da experiência e da razão.

   A tradição, bem analisada, é sempre traída pelo progresso que caminha a seu lado. É constituída por um conjunto de princípios aceites, com o argumento de que sempre  foi assim o costume e não apresenta regras codificadas.

   Parece que há uma aceitação implícita da teoria do comando divino muito embora se remeta para o poder da razão do homem. Na impossibilidade de fundamentar para todos os povos um direito positivo, será plausível que se busque uma justificação num Direito que todos os homens conheceriam por uma natureza inata, quase como pensaria Rousseau e o bom selvagem, que seria naturalmente bom, teria em sua mente a capacidade de aplicar a Justiça com equidistância e nunca aceitaria a lei do mais forte?

   Se existe o Contrato Social não se coloca o bom selvagem nesse contrato. Infelizmente, por vezes até com muito boas intenções, muitos selvagens – não sabemos se bons se maus -  têm assinado contratos e os resultados ficaram marcados a sangue na História.

    Sócrates morre na sua última lição de filosofia exemplar e de acordo com os ditames da sua consciência moral e apresenta a maior grandeza do espírito grego. Morre também pela Polis, porque os maus juízes ficarão esquecidos, mas a elevação da Lei nunca mais pôde ser esquecida. Mesmo que mal aplicada, a obediência à lei é prova de amor à Pátria e ao Bem.

   O Mestre, que afirmava nada ensinar, apresenta a sua última lição, a lição da sua morte! Não ensinara sempre que a filosofia é a arte de aprender a morrer?

    Antígona suicida-se para não se submeter à terrível morte a que estava condenada, a agonia de um fim lento numa tumba, emparedada viva com alguma comida e água para não manchar a cidade com um crime. A agonia que a esperava de morrer à fome e que seria horrível é que a fez tomar o caminho do suicídio e com isto faz com que o noivo desesperado a siga também na morte, já que não a podia seguir na vida.

       Temos de reconhecer que os contextos de Antígona e de Sócrates são historicamente diferentes. A deusa Dikê passara o seu poder para as mãos de Parménides, a obediência à lei, mesmo injusta, mesmo tirânica, já não é um problema de comando divino, pois o conteúdo da lei é um problema da linguagem, dos sofistas, dos jurisconsultos. Por isso surgem excepções à lei, e mesmo leis cujo princípio não satisfaz as regras do pensamento. Mas temos de agir segundo princípios e não segundo os fins. Não podemos ter uma moral teleológica que nos faria ter dúvidas da razão e do bom uso da liberdade.

    É por isso que Sócrates morre.

    Antígona não pode beber a cicuta de Sócrates porque se sacrifica em nome de um princípio muito mais subjectivo que é o amor. Ela segue a tradição e o passado. Segue o seu coração. A liberdade a que aspira quebra a lei. Já Sócrates morre dentro da ordem da Polis, tem a «consciência feliz» de que falou Hegel, não se recusa à objectividade da lei mesmo que saiba da subjectividade e injustiça dos seus juízes Acima deles, muito acima deles, está o direito da cidade, guardião da civilização. A Justiça e a Necessidade estão unidas na lei, pese embora todo o conflito de tal síntese, e o sacrifício de um homem é a eterna luta entre a civilização e a natureza.

   A barbárie espreita toda a brecha na muralha e Sócrates é o símbolo da fidelidade à lei, da dignidade da pessoa e a esperança numa Justiça que realize todas as utopias do Direito natural e do Direito positivo reconciliados na consciência moral.

   Paciente e penosamente, Antígona e Sócrates recomeçam a luta. A liberdade sempre inadequada e inadaptada à prática constrói-se em cada geração com as suas Antígonas e os seus raros Sócrates.