"  Aliança traída"

  •  As "desventuras" do Poder.

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas ( 2013 )

 

 

 

     

 Já passou e ainda vem

 [ Linha de "Caminho de Ferro da CP". ( Pormenor ) .Estação de "Campanhã". Porto. 2012. ]

© Levi Malho

 


 

    A hierarquia do poder é estruturada por seres humanos. Por isso tem as falhas e as vitórias que o espírito lhe concede. Seja que hierarquia for, mesmo que com estratificação quase cristalizada, temos fenómenos de porosidade e de transgressão que marcam muito mais as mudanças do que aquelas que o poder determina. O poder dominante é sempre reacionário pela sua especificidade e o contrapoder é uma forma de quebrar a ordem. A luta mais séria é a que se move na sombra, quase silenciosa mas ativa.
    Nunca há perfeição nas alianças pois um poder bicéfalo é sempre contraditório e conflituoso. Quando se diz “ouvir Salazar era ouvir o discurso de Cerejeira” isso é ver a superfície do rio, mas não medir a sua força ou profundidade. Ler as obras de Cerejeira é descobrir um homem de cultura e de verdade. A ideologia cria a reação mas não é fácil distinguir as forças em causa e as oportunidades ganhas ou perdidas. É verdade que o poder cria à sua volta um vazio. É um vazio, não só por causa do brilho enlouquecedor do poder, mas pelo conformismo sempre presente nas massas que apoiam cegamente, quer o poder político, quer o religioso. A falta de senso é tal que o religioso surge num clube futebolístico ou num partido, sem sacralidade mas todo o fanatismo.
    Repare-se no facto da mentalidade comum captar sempre a imagem e nunca a ideia. Assim a imagem de Deus não atinge a sua realidade ontológica e precisa de suportes materiais para existir no povo, tal como o poder político não tem transparência porque se confunde “a nuvem com Juno”, sem reflexão acerca da teoria que se oculta na falsidade da imagem. O mais preocupante no social é a transformação, do que antes de diria ser “povo”, burguesia ou outra categoria ideológica, numa amálgama quase com anomia axiológica.
    O risco do saber e do poder, é afastar-se da realidade e viver do simbólico, do parasitário se não for pior e se transformar num loucura que só escuta vozes aduladoras e aprovadoras. Ora é na sombra, no escuro que se move o Bem. Não se elogia, nem fala de si, age. O contrapoder atua na antítese da força, move as fragilidades e incute a resistência silenciosa que ninguém consegue afogar ou matar. A Igreja nunca foi apenas um conjunto de caciques que seguia como cordeirinhos a voz do pastor. Aí a aliança nunca foi sólida e a traição mútua.
    Por sua vez, o pastor mesmo nas vésperas do 25 de Abril abria os olhos para realidades terríveis que combatia corajosamente, na sombra. Capelães desesperados, face ao horror que os seus amigos enfrentavam, quiserem ir para as colónias. Por certo, não era para combater, mas era sim um grito mudo de protesto de quem abandonava uma carreira, que nunca chamaria profissional, mas de missão. Levar a consolação aos pobres, ou iluminar os espíritos sempre se praticou na sombra, traindo a norma e qualquer hierarquia.

    O poder bicéfalo tinha o apoio do povo, por um lado, e o apoio das hierarquias do outro. Mas a aliança da Igreja e do Poder político teve sempre atritos. Alguém se interrogará seriamente porque o Papa Paulo VI não era bem aceite em 1967 pelo poder salazarista na sua viagem a Fátima? O tempo de Lurdes está a acabar e Fátima agora não é um contrapoder. A História tem ciclos e sem contradição uma aliança estagnava. Nada resiste à força da mudança, nem o sistema mais cristalizado e, muito menos, num tempo em que o global é local e vice-versa. Os símbolos religiosos e políticos ganham em espetacularidade para as massas mas esvaziam-se de sentido. A massa não absorve a mensagem, o que a atrai é a imagem no seu vazio de “hicet hoc” a mais frágil forma de existência que encerra a falta de qualquer sentido para além do imediato.
        Um comício está hoje tão exangue de capacidade mobilizadora como as famosas festas do Espírito Santo. Estas não são transmitidas não apenas por colonos do Alentejo mas muito mais antigas. Tratou-se de um contrapoder, do rei D. Dinis com movimentos franciscanos que lutavam contra o papado. O símbolo da coroação de um popular, mesmo que fosse por um só dia, encerra uma mensagem do império do espírito na sua evolução para etapas superiores de que cada tempo nem sequer se dá conta.
    A coroa na cabeça de um qualquer anónimo cidadão não lhe oferece carisma. Isso é algo que alguns julgam ter e só têm força e dinheiro. Esta manifestação do espírito é a demissão inconsciente de qualquer poder. A demissão real anuncia-se na traição de todas as alianças. Se levarmos a sério, o que diz ser um teorema: “Se as pessoas definem certas situações como reais, elas são reais nas suas consequências", os efeitos resultam em causas. Da anomia tanto pode surgir um império novo, cujos contornos não se adivinham, ou um caos onde já quase todos se sentem mergulhados e apenas têm por âncoras os seus pontos de interrogação.  Quando alguém pensa que é agora que tem mais carisma deve estar a confundir-se com Ronaldo ou Toni Carreira.
        Todas as alianças são efémeras ou traídas. Nada mais óbvio para todos. O terrível problema e o enigma está em não descobrir que já não há aliança e continuar a tomar o imaginário e simbólico pela realidade que ninguém quer ver. Tudo continua como se o Big Brother já existisse e, em muito local do mundo há quem pense sem dizer, como no "1984" de Orwell, mais um mês de tortura e eu acabo por "gostar"...