"  Metáforas Mansas"

  •   Para uma "reconstrucão" da Etologia...

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas ( 2013 )

 

 

     

  Tempo dos caçadores

 [ Cartaz no Museu de "Foz Côa". ( Pormenor ) .Vila Nova de Foz Côa. 2012. ]

© Levi Malho

 


 

 

As reflexões de Fernando Pessoa, que se imagina estar à janela, enquanto escrevia, prendem a atenção:

 

 

    Gato que brincas na rua

    Como se fosse na cama

    Invejo a sorte que é tua

    Porque nem sorte se chama (…)

  

    És feliz porque és assim

    Todo o nada que és é teu

     Eu vejo-me e estou sem mim

     Conheço-me e não sou eu.

 

      No entanto, entre o ser e o não ser temos de optar. Jean-François Lyotard (in.  O inumano, 1989, p. 11)  decretou que “ Se os humanos nascessem humanos, tal qual os gatos nascem gatos (…)  não seria possível – e nem sequer digo desejável, o que torna a questão diferente – educá-los”.
     Inocentemente, o filósofo colocava em foco um terrível problema. Que há de humano no homem?  O texto incendiou professores de filosofia que, sem sentido de humor, atiraram-se a Lyotard como gato a bofe e a questão tornou-se polémica jornalística, pedagógica e, claro, política.
 É preciso sempre escolher. Ou se gosta de gatos ou se gosta de políticos. Dos dois é que não. Porque o gato parece-se com político quando é manhoso e lambareiro e o político parece-se com o gato quando nos olha astuto e periclitante, sem adivinhar o que estaremos a pensar dele. O gato intui, o político sonda.
          O gato sabe o que pensar de nós. Que nos domesticou e não conseguimos domesticá-lo. Ao longo de milhões e milhões de anos de convivência, nem sempre pacífica, o gato é independente, instalou-se nas casas e os humanos imaginam que “têm” um gato, quando, politicamente correto, são a classe dominada. Taine escrevia com humor que estudara “muitos filósofos e muitos gatos. A sabedoria dos gatos é infinitamente superior.”. Marx despacharia os gatos para um ramo da seleção e só comparando gatos e políticos, se descobre a essência do homem. Pessoa queria ser gato para ter certezas e acabar com as suas dúvidas. Esquecia-se do político. O que melhor explica o gato do humano é o político. Parece-se com gente e desenvolveu uma terceira natureza que o torna o ser mais difícil de analisar.
    Entre a selvajaria, os valores e a civilização, na charneira do que se pode chamar inumano no homem, eis o político.  O político nunca tem a certeza que o gato tem. O gato distingue à légua ameaças ou carapau. O político também aparece onde fareje dinheiro ou votantes. Com um faro, que faz falta a muitos, um gatinho é um posto de receção e emissão de informações para seu bem-estar e segurança. Silencioso, move-se mostrando os seus dotes de felino.

    Um gato é como o contrapoder. Silencioso, à cautela, move-se na sombra como os nómadas, sem ruído. Passa na sombra pois não se elogia, não promete, não mente. Mia em múltiplos tons, rosna, assanha-se, ronrona. Ataca quando menos se espera.  Como um gato que se move com subtileza extrema, também o político prepara o bote. Mas precisa, gosta, adora o ruído das multidões. Tal como o gato que gosta de peixe fresco e de pires de leite, o político gosta de multidões tontas, o que para ele é a ralé, o povinho, essa escumalha que, depois, de votar, nem rosto tem.  Daí que, ou gato ou político, juntos anulam as suas qualidades.
   O gato é um animalzinho macio e doce, carregando séculos de conhecimentos acerca de nós, os humanos. Quando é pequeno, tem aqueles grandes olhos de pedinchão, quase infalíveis de conseguir tudo. Quem resiste a tamanha ternura e ao doce miado?
       Um gatinho é como um político em estado de graça acabado de aparecer em cena. Depois vai ser um gatão como aquele da quinta de Santa Oláia todo manso e bonacheirão.  Era o Bonifácio, gato fino de D. Afonso da Maia!
         Ninguém me tira da cabeça que o Bonifácio encarnou no Dr. Mário Soares e, quando se deu por isso era tarde demais. Já nem mia. Bufa. Ronrona e julga que todos os colos e sofás são seus. Quando um gato rosna ou mia, assanhado e atrevido, sabendo que está em vantagem, em cima de uma árvore, muito se diverte com o cão ou outro tolo que o queira apanhar.
       Assim o político, no poleiro, não salta senão quando vai à procura de melhor lugar. O gato é finório, diverte-se a enganar e depois até parece que troça de quem o quis apanhar.  Mas lá diz o ditado “Gato escondido com o rabo de fora”. Um belo dia é apanhado. Mas, até lá, quantos ratos não tem na sua lista de bom caçador?
`      Deram-me um livro que explicava a causa dos gatos caírem sempre de pé. Fiquei curiosíssima pois vejo que os políticos são também capazes de cair sempre de pé. Que estranha coincidência é esta. Levantam-se, sacodem o pelo e lá vão frescos como alfaces. Pois não veio de lá de cima e não devia estatelar-se no chão? Mas, não! A transmissão das mensagens nervosas entre olhos, ouvidos, músculos e articulações ocorre tão rapidamente que, só frações de segundo bastam para um equilíbrio perfeito. Um salto de gato é um jogo de cintura de um político treinado. O mais importante é cair de bem alto para ficar de pé e ileso.
         O gato tem sete vidas e, se perder uma na queda, ainda fica com seis e assim parece o político que não há queda que o leve a ir para casa de rabo entre as pernas. Ficar sem trunfos já é o pior que pode acontecer, mas há sempre uma palavra escondida na manga que poucos conhecem.     Ter um gato preto em casa dava azar? E ver um gato de manhã era um dia perdido? Será que acontece o mesmo ao avistar um político, mesmo que não esteja com roupa de gato-pingado?
       Um saco cheio de gatos! Isso tem ar de muito político junto e logo que se separam ficam mansos. Dão palmadinhas nas costas uns dos outros, como os gatos, que se saúdam entre si, com miados a ver quem tem mais garganta. Os gatos domésticos com a idade, mais mansos e preguiçosos. Se são castrados e se lhes cortam as unhas, perdem a elegância, aquela agilidade de bailarina que encanta quando pede bolinho e leva corrida:

     Sape, gato lambareiro!

    Sacrifícios de viver largos anos à custa de um dono domesticado à força de ronrons. Quando lhes dá na gana, desaparecem. Os donos desolados, ao darem pela sua ausência, apressam-se a oferecer recompensa e põem anúncio nos jornais porque o seu “Janota”, o “ Romeu”, ou até  o “Bolacha” desapareceu.   Num belo dia, espantados e radiantes, os donos veem-no voltar. Fez tropelias, está esfomeado, mas volta a casa. Não por causa dos donos mas por causa da casa e do faro. Depois do ouvido, o faro é essencial. Teófilo Braga, futuro político e dos melhores, a um remoque do seu professor que o desconsiderava, respondeu: “ O Senhor Professor não tem faro”.
   
     Desde sempre, atrás, na sombra do primeiro político, não estava a tal mulher que faz um grande homem. Estava era um gato! Juntos, limpam tudo que nunca sobra nada.  Há milhões e milhões de anos, que o político existe. De chefe da tribo passou a presidente que qualquer coisa. O gato acompanhou a história. Os egípcios adoravam-no, tal qual aos seus faraós. Se o faraó era embalsamado com honras de deuses, os gatos também. Vender um gato era crime. Pelo contrário, sempre se compraram políticos! Alguém que matasse um gato era punido com a morte. As pessoas da casa, onde morria um gato, vestiam-se de preto e raspavam as sobrancelhas em sinal de luto. A deusa da fertilidade, com cabeça de gata, chamava-se Bastet. Já os políticos não se reproduzem, multiplicam-se.
   Hoje, chama-se gata ou gato, - passe o brasileirismo, - aos seres humanos mais sedutores. Mas, só enquanto a deusa Hebe não é derrotada por Cronos.  De noite todos os gatos são pardos e os políticos também não se distinguem nos seus discursos. Como o gato escaldado, que da água fria tem medo, o político teme o jornalista, por mais aselha que lhe pareça.  Mas, se pelo faro, atrás do bom peixe vem o gato, o político também
fareja onde suspeita haver milhões.    
  São tão parecidos que até andam sempre com uma pulga atrás da orelha, com mais de 30 músculos em cada uma, movem-nas independentemente uma da outra. Nunca se teve paciência contar os músculos de um político mas deve ter muitos mais.   A evolução do gato é tal qual o político: animais da família dos felídeos, populares como animais de estimação em todas as sociedades.No cimo da cadeia alimentar, são predadores naturais. A sua independência depende de nós, donos ou votantes, deliciados ou desconfiados por tanta felina e manhosa doçura.  O hábito de os ter à roda, sempre finórios, quando veem lucros, leva a suspeitar:
  Aqui há gato!
     Bem escrevia Lyotard pois nada é mais refém do inumano do que o humano. Pessoa tinha razão. A rua é a cama do político.