" Estilhaços de Espelho"
The Great Fitzgerald / Gatsby
© Lúcia Costa Melo Simas ( 2013 )
Tempo dos perfumes
[ Portão com motivos "Arte Nova" ( Pormenor ) .Zona da Foz. Porto. Porto. 2001. ]
© Levi Malho
PARTE I - " O GRANDE GATSBY"
Quando se inicia a leitura de “O Grande Gatsby ”, Scott Fitzgerald (1896-1940) lembra que a geração anterior desapareceu. O pai do jovem Nick, o personagem narratário, fio condutor na obra, avisa-o:
De cada vez que te apetecer criticar alguém, lembra-te sempre de que nem toda a gente neste mundo gozou algum dia das vantagens que tu tens tido”.
Capa do livro
O escritor viveu a atmosfera da sua obra que se considera o mais lúcido retrato dos loucos anos vinte. Tem os ingredientes de uma tragédia, mas sem a sua estrutura.
A "Híbris” (desmesura) do herói desafia a sociedade. O sofrimento e a dor “Pathos” surgem e a peripécia que precipita a catástrofe é bem marcada no ócio da quente tarde em que os personagens sentem que a tragédia do “fatum”, muito anterior ao fado, ou da “moira”, vista como destino, mostra como os deuses brincam com os sentimentos humanos, e pesa sobre as suas cabeças uma constante ameaça.
Acabada a guerra, a nova juventude surge com uma imensa sede de viver. Na longa, mas necessária introdução, tal como o leitor, Nick, vem de fora, admira de longe, na bela ponte de Nova Iorque, a multidão sem sentido, tal qual um diligente formigueiro que ali se agita e, em seguida, leva-nos para o centro de um palco, onde cada personagem é uma pintura de tons leves mas que escondem sombrios e inesperados bastidores.
Ponte em Nova Iorque
Tudo gravita à volta de Daisy, de Gatsby e Tom. Representam os fascinantes “anos dourados”. São a perfeita trama das contradições de uma alegria frenética de “tempos loucos”, onde tudo parecia permitido. Isso para quem ousasse o cinismo suficiente ou a audácia de tudo arriscar. Na periferia, o jovem Nick, como personagem secundário, a inescrupulosa jogadora Jordan, a sonhadora Myrtle e o marido Wilson, trabalhador e infeliz. Daisy é uma abastada herdeira, ainda jovem, e naturalmente casada com um milionário, como são comummente todas as herdeiras ricas. Tom é irritantemente desagradável e presumido.
A alegoria concentra-se neles. Scott Fitzgerald fundamentou-se em factos reais e, tanto ele como a esposa, Zelda Sayre (1900-1948) tomaram parte nessa frenética sociedade de parasitas.
Zelda foi escritora e teve êxito, tal como Scott a viu, assemelhava-se a Daisy, mas com um destino trágico pois foi internada num sanatório aos 30 anos, depois de ser uma lenda e um ícone dos anos vinte. Rica, formosa e de enorme talento para o que quer que quisesse. O marido dizia que ela era a “primeira preciosa” da sua sociedade. Foram um par bem emblemático da época, com um casamento muito perturbado, Scott tornou-se alcoólico, ambos escreviam e ele chegava a tirar páginas do diário de Zelda para os seus trabalhos.
Scott Fitzegerald e Zelda
O escritor conhecia muito bem esse palco onde colocou os seus personagens, em parte reais. Baseou-se na alta sociedade americana, especialmente em Washington. Os famosíssimos duques de Windsor continuaram depois a revelar-se pateticamente na mesma vida dissoluta e ociosa e conseguiram arrastar atrás de si um cortejo de gente que enchia jornais e revistas de viagens e festas de enorme futilidade e luxo. Na deambulação de décadas de exílio dourado, apareciam em capas de jornais e revistas, cada vez mais amargos, afastados à força e com diplomacia da cena política e irritantemente limitados ao mundo da diversão e ao “faz de conta”.
Duques de Windsor
Duques de Windsor
“O Grande Gatsby” revela a faceta de uma sociedade vazia de quaisquer valores e assaz perigosa, por entre jogadas políticas, negócios sujos, num deserto de sentimentos e avidez desmedida. A alegria de viver fixa-se no frenesim das festas, mas esconde uma ambição de eternidade, de quem escapou à guerra e à morte.
É a época da lei seca, das riquezas repentinas, dos “anos loucos” que duravam, para alguns, apenas um momento. São heróis, sem rosto, sem talento para viver, nem sequer de mostrar que o sangue lhes gira nas veias. Noctívagos, ébrios, lascivos, sem afeto a nada, nem a ninguém eram o retrato do hedonismo.
Surgem do nada e voltam para lá. Gatsby, com as suas feéricas receções, dava-lhes oportunidade de festejar. Celebra-se sempre. A vida é uma festa desmedidamente vazia como aqueles seres que seguem ao som da música. O cenário representa a ordem e os personagens o caos. Estão de passagem, sem segurança alguma. Se não fossem eles, outros seriam e nada mudava. Ao contrário da realidade, os personagens não importam, mas o cenário. É visível a ironia mordaz com que trocam frases de meias verdades, quando as palavras servem para esconder e nada dizem.
Os personagens têm sórdidas amarras nos bastidores, que se vão descobrindo no confronto do presente com o passado, com o sonho e a realidade. Enquanto a tragédia se prepara nos bastidores, em cena, uma enorme quantidade de desocupados. goza loucamente de festa em festa. Na sombra, as classes trabalhadoras lutam laboriosamente, de dia ou de noite, e mantêm a estrutura social, que se adivinha frágil e corrupta.
Só aparentemente, Daisy é uma boneca de luxo. Descobre-se a sua complexidade, profundamente amarga, cínica, capaz de manipular e destruir tudo por egoísmo narcísico que, uma vida de luxo e um vazio de valores, lhe proporcionou. O seu alto estatuto social retirou-lhe a essência feminil, serve para exibir o poder e riqueza da família e agora do marido. Alimenta-se vorazmente da sedução que exerce, com a perceção de ser traída pelo marido e não consegue, ou não quer impedir. Não é o afeto que os une. A admiração que suscitam nos outros, a sua natureza débil, torna-os cúmplices de uma farsa. É provável que este par fosse um pouco a sombra de Zelda e de Francis que este esboçou.
Francis e Zelda
Daisy, pela fraqueza de caráter e cinismo com que vive, aceita a vida de luxo como se mais nada valesse a pena. A jovem milionária vai ser, através das observações do primo, Nick, centro de contradições. A sua interioridade feminina liga-a à vida, à maternidade, que vive sem afeto, apenas como um jogador que aprendeu a ganhar e não sabe perder. Está tão segura do seu poder de sedução, nem a maternidade a conseguiu tornar mais humana.
O par é o modelo do vazio e da ilusão, na contradição interna e externa porque vivem intensamente uma eternidade em que se aborrecem e divertem. Todos são, ou querem ser jovens, eternos, com a alegria dionisíaca de viver, noturna, a um passo do abismo. Tanto Daisy como Tom dão a impressão de que se sentem acima do bem e do mal.
Tom é a antítese da esposa e todavia completam-se. Natureza rude, sem sensibilidade, é arrogante, cobarde e vagamente desportista. Daisy é o seu mais belo trofeu, arrasta-a consigo, para sua ostentação e sabe quanto o luxo e a vaidade valem para ela. Daisy está consciente do fascínio que exerce com a sua elegância e beleza. Para isso basta usar o espelho dos olhos que a observam.
Com aquele misto de ironia e narcisismo que avalia o que a rodeia sente-se o centro das atenções. Sem ela, diz, a sua cidade deve sofrer e estar triste. Mesmo quando sente alguma dor ou ciúme, pela traição do marido, manifesta o mais perfeito desencanto pela vida.
Tom é amoral, ostenta o seu poder, no mais cínico jogo, patente no modo de tratar o mecânico pobre, marido de Myrtle, com quem tem uma relação determinada pelo fascínio que exerce nela. Trata-se de um jogo de espelhos em que cada um vê o que mais deseja ver no outro. Myrtle é a antítese de Daisy. Carregada de sonhos e frustrações, vive, o que poderia ser, a típica dona de casa americana, de pouca instrução ou recursos.
Sombras de fascínio
É uma alternância de Daisy, com uma ansiosa alegria de viver o que ainda lhe resta de juventude. Vê em Tom um mundo que quer atingir, a ilusão de uma liberdade que jamais o milionário levaria a sério.
Myrtle não sente remorsos pela traição ao marido que a ama. Sentimental e romântica, alimenta-se de sonhos que a florescente indústria cultural lhe dá. As leituras iniciam-na num mundo de ilusões e de riqueza que nunca terá, mas Tom é a alternância à vida que o marido lhe oferece. É mais frágil do que se imagina e apenas faz parte da contradição de Tom. A sua alegria ingénua, a sua vitalidade divertem-no mas será por pouco tempo. O futuro que ela sonha, já é o passado para Tom. Nesse ponto, apenas ele está plenamente consciente da brevidade daquela fortuita relação.
Quando Myrtle se dá conta de quão longe está da esfera social de Tom e do seu feroz egoísmo, no seu desespero, grita o nome: “ Daisy, Daisy, Daisy...”
Quebrou-se a ilusão, o sonho infantil de uma mulher que agora é trágica. Como se pudesse exorcizar toda a sua deceção e infelicidade, é só esse grito que solta com desespero. É então que, face a face aos dois mundos, que mantivera sempre separados, a fúria de Tom irrompe, com tal violência, que bate impiedosamente em Myrtle, até o sangue jorrar.
Tom revela a crueldade da sua sociedade, diante dos fracos. Estão por terra as frágeis armas de sedução de Myrtle. Agora resta-lhe uma dor infinita, numa negatividade que vive subjetivamente no seu interior.
Superfície dos "seres"
PARTE II - A GERAÇÃO PERDIDA
Quando os rumores acerca do milionário Gatsby, com a sua figura enigmática, as suas sumptuosas festas, rompem com toda a regularidade social, Daisy enche-se de curiosidade.
De Festa em Festa
Nick guia-nos para Gatsby, dizendo, de antemão, que é um romântico, sonhador logo perfeitamente desenquadrado de tudo o que acontece. Paradoxalmente, será o eixo de toda a tragédia De repente, o jogo toma sentido. Ao descobrir o passado de Gatsby, Daisy de fascinada passa a deslumbrada pela sua própria sedução. De exibição e trofeu de Tom, a descoberta, de ser perdidamente amada, causa ao seu narcisismo uma felicidade indiscritível. Por seu lado, Gatsby não vive a realidade, mas o seu velho sonho.
Agora, é a sedução que empresta vida a Daisy. Agradar e jogar é uma arte maravilhosamente descrita por Fitzgerald. A descoberta daquele afeto remonta ao seu, passado. Foi ela quem prendeu esse lendário Gatsby quando este era o pobre Jay, um militar sem futuro, que partira para a guerra. Fora uma das suas presas, motivara-lhe desgosto, quase real, mas, a fraqueza levou-a a casar com Tom, ótimo partido.
Mas Jay nunca a esquecera. Jamais a apagou da memória e seguiu, passo a passo, a sua vida social, guardando todas as suas recordações. A vanglória e a vertigem narcísica de Daisy chega ao extremo. Mais do que isso ela é o perfeito imediato, nada mais do que o momento.
Scott Fitzgerald é habilíssimo na descrição dos cambiantes de sentimentos dos três personagens, com enorme conhecimento da alma humana. Daisy atinge o estádio estético perfeito. Goza o infinito no finito na hora, possui Tom e Gatsby presos na sua teia. O prazer perfeito do esteta num equilíbrio tanto mais frágil quanto mais difícil. O instante eterno não pode acabar.
A sedução dela tem aquele equilíbrio tão fascinante de ter e não ter, de dar e não dar, de conciliar o marido e Gatsby e embriaga-se pelo seu poder. O “talvez”, para cada um deles, é o mais excitante de tudo. Daisy encandeia-se numa luz demasiado forte e deixa-se conduzir pelo êxtase que o seu poder lhe dá.
Arrebatado, face à sua amada, Gatsby nem a vê. O ideal está vivo, a realidade desaparece para sempre para ele. Preso do seu sonho, não escuta nada, o passado está vivo. Mais ainda, é possível voltar atrás e repetir tudo outra vez.
Mas chega a hora da escolha, e todos são confrontados com os seus egoísmos, demónios e grilhões. Tom e Gatsby, cada um a seu modo, confrontam-se, como se a ilusão e a realidade pudessem unir-se. Agora é Daisy que vai revelar-se. A última jogada é dela. É a hora da escolha entre seguir Gatsby ou Tom.Nesses momentos “só o sonho morto a debater-se em vão transporta sombras”.
Devagar, reflete e fala a custo. Seguro de si, Tom joga os trunfos do passado que viveram juntos, das falhas e erros de ambos, da enorme fragilidade moral que ela oculta. Daisy nunca arrisca, num jogo incerto.
Gatsby espanta-se. Afinal o afeto dela não é tal como ele o sonha? Como pode hesitar? Na sua mente, o tempo não passou, é só regressar ao passado e apagar os tempos que não estiveram juntos. Ela não escuta nenhum deles. Daisy seduziu mas não pode escolher. O imperativo que lhe grita para gozar não permite. Petrifica-se como no final do estádio estético. Nem passado nem futuro existem agora pois se espelham um no outro. Não tem esperança por isso foge. Chegou a hora do seu desespero. Tom deixa que Gatsby a leve a casa. Entretanto, o leitor já sabe os negócios sujos de Jay e da sua corrupção no mundo dos negócios ilícitos, em que vencera.
Como em todas as tragédias, a morte não se vê. Myrtle, num supremo desespero, vira o carro de Tom e aparece na frente. Daisy atropela-a e foge. Ela já se negou a si mesma, já se perdeu no tempo e matar é-lhe indiferente. Numa narrativa de anónimos espetadores, tal como num coro grego, tentam consolar do desesperado Wilson, que só pensa na perda da esposa.
Myrtle é a vítima que Daisy mata e, cobardemente, aceita que seja Gatsby a assumir a culpa. Mais uma vez, agora seduz apenas para se enganar para sempre e junto de Tom viverem na sua máscara da perversidade e farsa social.
Farsa social e "Anos 20 "
No seu sonho, do qual nunca mais despertará, Jay espera inutilmente que ela volte. Confia que Daisy, senão agora, no dia seguinte, a qualquer momento ela virá para ele. Nick, ou seja, o leitor, sabe que isso não irá acontecer e que a catástrofe da terrível tragédia está a acontecer. A mão cobarde de Tom guia o desesperado Wilson para a sua tarefa de vingador da sua Myrtle e, assim, assassina Gatsby. Wilson é mais uma vítima que julga fazer justiça.
A metáfora da luz verde que, de longe, Gatsby velava, não era Daisy nem a sua mansão, mas o seu sonho romântico no mais íntimo de si mesmo. Todas as tentativas de realizar um sonho tão grande, não são mais do que contradições, que a realidade nunca permitirá.
A estranha "luz verde"
A tragédia acaba. A farsa continua. Não podemos condenar ninguém, como nos avisou o pai de Nick. Apenas resta o sonho de que Gatsby nunca acordará com o seu afeto e sacrifício final.
Quando Nick, em nome do narrador, vê a partida para o estrangeiro de Daisy e de Tom, carregados de malas e um cortejo de serviçais, diz que são “crianças”. Mas a dor amadureceu-o, mostrou-lhe a horrenda fealdade do mal.
Tom e a esposa mostram como o luxo e o dinheiro podem ser sórdidos e a sua vida torna-se uma joia em mãos sujas de sangue. São dois seres gananciosos, de um egoísmo atroz, capazes de esmagar tudo à sua volta e fogem, sem quaisquer escrúpulos, para a sua elite, com a sua indiferença desumana pelos outros, as viagens sem fim, nem sentido. Deixam aos outros o cuidado em reparar o mal que causaram, Correm o pano do espetáculo e fecham a porta da visão terrível de uma época de loucura de especulação, hedonismo feroz e de exploração dos pobres.
Não há inocentes nesta obra, e a beleza foi emprestada por muito breve tempo. Tudo é sórdido e, todavia, nenhum juiz pode julgar estes seres humanos. A beleza, que viveu alimentada pelo sonho de Gatsby, morreu às mãos da realidade.
A sórdida "realidade"
Gatsby desaparece e é o regresso ao mundo real com a grande depressão que assola o mundo. Zelda adoece e Scott Fitzgerald não mais consegue ultrapassar-se na escrita. A sua memória liga-se à loucura de um tempo em que os novos ritmos, a ambição desmedida, a vertigem da alegria de viver têm um preço que a história obriga a pagar cruelmente. A grande depressão põe fim aos sonhos e a América desperta aterrada para uma realidade que estilhaça todos os espelhos narcísicos onde antes de refletia.
Memória de F. Scott Fittzgerald
As contradições de Gatsby tornam o seu belo sonho num pesadelo para milhares de seres humanos, lançados no desespero, tal como acontece com Wilson, a imagem da realidade da pobreza e das ilusões, que revela a antítese de Gatsby assassinado.
Assim, os sonhos de todos são um só e morrem juntos. Tal como o mito dos anos dourados, o Grande Gatsby nunca existiu e sob a chuva que tudo lava, o funeral de Jimmy Gatz, é o pano que cai num cenário louco e sem alma. Resta a dor do pobre pai e a admiração de Nick.
A ilusão breve de estar acima do bem e do mal manifesta a derrota de quem desafia o destino.
A "Geração perdida"
© Lúcia Costa Melo Simas (Texto) - Regressar a " Os "Trabalhos e Dias" "
© Colaboração na concepção da página - Levi Malho.
Actualizado em 01.Junho. 2013
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