" Memórias de Alice. III"

  • Fotografia e Pintura. Três instantâneos estéticos no Feminino

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas ( 2013 )

 

    

  Espera das Marés

 [ Lago em jardim Romântico. Quinta da "Macieirinha" . Museu Romântico. Porto. 2001. ]

© Levi Malho

 


 

 

     A fotografia libertou-nos de um tempo e espaço a que nos habituáramos e ganhou um alcance e funções novas bem diferentes do passado. Banalizou-se e, paradoxalmente, ganhou dimensões estéticas inegáveis e uma provocação ao olhar.

    Veio mediatizar um momento, capturá-lo em pleno voo e aprisioná-lo numa imagem. O retrato aproximava, a foto instantânea afasta. Sabemos bem que se trata de um tempo que não estava preparado para o cativeiro. Diz tudo, não esconde, nem representa. Apenas é. Na sua espontaneidade, pelo descuido do conjunto, pela situação em que se ri, se faz carantonhas, ou esgares, morre e desaparece. Torna-se numa repentina invasão de um tempo que ficou parado e saiu do seu inevitável devir.

    Soltou-se do real, a fingir estar presente e nem é passado de um tempo que se imagina ter detido. Pelo contrário, somos nós que ficamos cativos nas fotos. Presos na angústia de já não existir.

 

 

Fig.1 - Fragmentos de vidas em espelho fosco que só os fios do tempo podem religar

 

 

Mesmo que todos os fragmentos se juntem, o cerne das vidas, as dores e alegrias, não passam de um papel sem cheiro, nem perfume, sem vento nem chuva, sem realidade senão uma pequena superfície plana que saiu fora do tempo e, por tudo isso, pode dizer-se que Baudrillard foi o primeiro filósofo atento à multiplicidade de sentidos e relação com o tempo que a imagem encerra.

    O tempo e o espaço ganham dimensões que fogem da linearidade a que estamos excessivamente presos. Há uma amálgama de espaços e uma multiplicidade de tempos e, ao contemplar uma foto, separamo-nos do que se considera a realidade. Não se parou o tempo, espreitou-se uma outra dimensão em que as coordenadas habituais se desvaneceram. O mais estranho é que nós passámos de uma magia de sombras na parede, de espelhos, máscaras, retratos e agora diante de uma foto temos uma reação como se não aprendêssemos a ver.

    É bem tarde que se descobre que ninguém ensina a ver e trata-se de uma arte bem difícil e árdua de toda uma vida que não se ensina e mal se aprende. A magia ancestral tornou-se numa pele que se colou e não nos libertamos dela.

    Há pouco ainda, não seria aconselhável tirar uma fotografia a uma qualquer jovem que passasse na rua, os aparecesse a uma janela de uma casa afastada dos centros citadinos. Seria considerado um roubo, um perigo, no mínimo seria considerado uma falta de respeito. Há países onde não são autorizadas fotos a pessoas nos transportes e nas ruas. Indo mais longe, em África, Roger Mucchielli descreveu uma situação bizarra. Um grupo de viajantes, perdidos no deserto, cheios de sede e fome, foram dar a um local muito agradável onde foram recebidos com lhaneza. Tudo respirava modernidade, com rádio, frigorifico e os demais sinais comuns. Depois de refrescados e reabastecidos, os viajantes quiseram tirar uma foto à jovem que os servira. De repente, o choque de culturas foi dramático. Claramente se verificou que eram duas culturas opostas. Toda a família se exaltou e acabaram por expulsar, em fúria e indignados, os aterrados viajantes.

   Se captarmos atentamente a palavra tirar tem algo a ver com subtrair ou capturar. Há um reflexo, ou um duplo que surge e pode ferir o original. Assim creem os feiticeiros que ferem com alfinetes o duplo com aquela certeza de dominar as forças da natureza. Também o reflexo do espelho tinha uma dimensão diabólica em alguns locais. As crianças eram avisadas a não se verem nos espelhos pois podia aparecer o Diabo. Ou se tratava de um aviso contra o narcisismo infantil ou era um passado que se visitava, sem saber que vinha de tão longe.

   As palavras estão vivas e remetem tempos de antanho que atravessaram séculos a mudar de sentido.

   Repare-se no termo toucador que curiosamente, ainda em alguns locais  se denominava estranhamente “Psichê ” um termo que remete para uma dimensão bem antiga que vem dos gregos. Psique queria dizer alma, não espírito, e repare-se que se a alma aparece no espelho o medo surge. Havia razões para temer que fosse capturada a alma, pois o corpo pode ficar mas esse espelho reflete, capta, é um duplo que, no caso do toucador, não é metáfora mas real.

   Toda a foto pode ter, no fundo, sedução e mentira. O narcisismo do espelho quer ser eterno e fica ali prisioneiro sem nenhuma verdade nem realidade.

     A fotografia, especialmente, após a proliferação dos instantâneos que são o oposto dos quadros, não tem arte para esconder a vontade de agradar. Tudo é rapidez, desordem, pressa, como o nosso tempo em tudo é para ser fotografado. Outras vezes, a escolha da postura, o meio sorriso esboçado que se trai por ser estudado revelam na sua sucessão comparativa bem mais facilmente a personalidade. Há quem escolha sempre a mesma expressão, quem decididamente deteste o seu sorriso, ou os seus dentes, tenha cuidados extremos com as fotografias. A sedução e o agrado estão presentes nos espelhos, mas revelam-se mais ainda naquela curiosidade que tem uma jovem em ver a sua imagem, a foto que lhe tiram, a sedução que exerce.

    Mas há um outro papel que tanto as mulheres como os homens desempenham com um prazer tão forte que os leva a arriscar a vida por uma foto, o que dizem ser um testemunho, uma presença. Nas guerras, nas catástrofes, nas epidemias, desastres terríveis, ou fomes, onde quer que reine o horror, há sempre uma presença a mais e a fingir “que está lá”.

    É o jornalista, repórter de guerra, anisando por contar e mostrar o indizível. O estranho de estar presente para levar para o longe, para o tranquilo e sereno sofá do serão, é a perversidade mais suave e enganosa que temos entre nós. Somos insensíveis à banalidade de um mal que se assiste como espetáculo ou diversão.

 

 

 

 

 

Fig. 2 - Uma visão da presença agressiva de todos os hipotéticos fotógrafos e a sua agressividade

 

     A violência da fotografia está já no dizer-se que se dispara, ao tirar uma foto qualquer. É um disparo cada vez mais repetido, mas será inofensivo? A distinção entre o público e o privado sofre distorções de acordo com a cultura dos povos e de cada um.

 

 

Fig.  3 -   O artifício para iludir o olhar.

( Antes, a fotografia inventava uma nova beleza pretensamente natural que acaba por revelar todo )

 

    Agora que se perdeu essa noção de privacidade, o mundo da imagem tornou-se vazio e, paradoxalmente carregado de milhões de fotos a dar a volta ao mundo na ânsia de uma celebridade que foge de um dia para o outro.

 

 

 

 

Fig. 4 - A importância da corrida da multidão, não interessa para onde ou porquê, o que vale é correr!

 

       As fotos, os instantâneos, até por o serem, descobrem sem dizer nada, mas só dão a chave do segredo a quem já descobriu qual a porta onde deve entrar. No âmago de cada imagem pode encontrar-se, consciente ou inconscientemente, um certo narcisismo e o desejo de agradar, uma ferida na alma, uma dor no canto da boca ou no erguer das sobrancelhas desdenhoso, simplesmente interrogativo ou ingénuo.

      No mais profundo do olhar de um rosto numa foto está o desejo da presença de um espetador. Por isso, as fotos são uma espera. Uma contínua ausência de alguém que as torne presentes, um tempo parado, que nem existe, fora do devir, e que se fragmenta em estilhaços por cada olhar que serve de espelho.

     A nossa agressividade aumenta com a velocidade dos acontecimentos e queremos guardar todos os acontecimentos. A presença já é a mentira por estar a ver através da máquina fotográfica e nem se atenta à realidade. Nega-se a presença em nome de uma recordação que será sempre falsa. Em vez de prestar atenção ao local, ao acontecimento, em suma, a viver, a mentira fica na ausência a pensar já na recordação e não a ser aí, como toda a perceção do real em vez da ânsia de ver depois.

     Em vez de um bom colecionador, que lentamente aprecia cada peça, cada pormenor, cada busca e encontro, temos fotos empilhadas, gastas, caóticas, como se a vida se pudesse reunir ali. É terrivelmente angustiante e comovente ver qualquer acontecimento despertar um tal anseio de eternidade que se esquece a vida, se arrisca a morte, se dispara mais uma foto como se fosse possível levar a vida dentro da máquina que nada mais faz do que criar uma louca ilusão “de ter acontecido” de ter estado lá”, numa afirmação que falseia a presença em nome de uma eternidade.

 

 

Fig. 5 - A linguagem esquecida

( Desenho de Erico )

 

 

 

 

 

O fenómeno da fotografia, cada vez mais divulgado e repetido, é uma tentativa desesperada de eternidade, de um medo aterrador de perda de mil momentos que nunca podem ser reunidos. Ama-se e odeia-se a foto. Queremos vencer o contínuo passar do devir, como quem quer parar as águas de um rio. Assim, as fotos não são nada semelhantes a uma presença como as pinturas rupestres que são um desejo infinito de imortalidade. Na ingenuidade de alguém que tem uma casa nova, ainda nos nossos dias, esse proprietário não quis nem o nome nem o azulejo. Colocou a sua mão. Veio de tão longe o gesto que nos comoveu. Que interessa a foto, o azulejo protetor, as palavras ou quadras escolhidas? A mão é a única perfeita unidade de ser e ficar num sonho da vida.

     As fotos são uma ausência do tempo em busca da eternidade. Um novo jogo sem que se sabia quem é quem. Cada olhar traz a esperança da imortalidade que se afirma em si mesma nas pinturas rupestres e na foto é uma esperança de diálogo que nunca vem.   

    A presença da mulher nas instituições artísticas foi algo que nem sequer era imaginável. A música, especialmente a aprendizagem de tocar razoavelmente o piano, ou a cantar as canções e baladas que fariam as delícias do lar, tornaram-se comuns em casas de burgueses ou nobres. A entrada de um professor foi causa de alguns aborrecimentos familiares e de romances ou amores contrariados. Recorde-se os músicos que, deste modo, puderam frequentar famílias que, de outro modo nunca os aceitariam em suas casas. Assim sucedeu com Beethoven e tantos outros. A pintura tinha código mais modesto. As perceptoras e professoras particulares que viviam nas casas dos seus patrões, num estatuto que se situava entre a criadagem e os familiares mais jovens tinham o encargo de dar rudimentos de desenho ou pintura às meninas que lhes eram confiadas para dar alguma educação.

   Só as restrições masculinas e a sua visão da feminilidade levavam a que a maternidade fosse o único papel que qualquer mulher devia ter. A pintura era um assunto masculino e a falta de habilidade das mulheres nessas artes era uma ideia comum que nem sequer se contestava. 

   O preconceito de sair do lar, que tanto levava a expor e ser exposta, aparentava ser uma certa fuga da “casa” e do recatado anonimato feminino. Uma dama burguesa, segundo a ordem “natural dessas épocas” não devia ter renome pessoal e ser somente reconhecida por filha ou esposa de alguém cujo nome, esse sim, nada impedia, muito pelo contrário, de ser socialmente mencionado.

   O lar, as tarefas domésticas e algumas raras prendas de que as mulheres eram dotadas serviam prestígio masculino alheio e desdenhoso de tarefas domésticas, consideradas impróprias de homens que se prezassem e onde presidia a cultura subjetiva, dita feminina, mas que nada mais era do que ecos da exterioridade da vida social.

 

     A Academia de Rodolphe Julian era a única que, quando já se estava no ano de 1868, admitia mulheres como alunas para o estudo da arte. Só pensar que as mulheres pintariam corpos de Retrato de Rosa Bonheur por André A Disdéri (1819-1889). seres humanos, com modelos nus, não  era fácil de admitir na mentalidade da Europa desses tempos.

 

 

Fig. 6 - Uma fotografia convencional de uma personalidade rebelde a qualquer regra que não lhe agradasse.

 

 

       Já outra sorte teve Rosa Bonheur (1822 - 1899) com coragem para se libertar dos preconceitos e das críticas que lhe eram apontadas. Esta pintora francesa, quase autodidata, teve a sorte de nascer numa família em que o pai desenhava e a mãe era professora de música. Depois, quando os pais abriram um colégio na própria casa dos Bonheur em Paris, pode frequentar, com os irmãos e outros rapazes um ambiente que, de outro modo, não seria adequado a uma menina.  As revoltas de 1830 e as que se seguiram mudaram as possibilidades financeiras da família. O futuro da jovem Rosa, rebelde a qualquer aprendizagem de costura, aritmética ou permanência num colégio, acabaram por levar o pai a entender que só na pintura se realizavam os seus sonhos. Apenas com 19 anos já conseguia ter quadros expostos e daí em diante, se não parou de trabalhar não terminaram também os seus êxitos.  Por fim, tornou-se famosa, com os seus quadros realistas de animais, especialmente os cavalos e as suas esculturas que não são de esquecer.

 

 

Pintura de Rose Bonheur

 

 

 

Pintura de Rose Bonheur

 

 

 

 

 

Pintura de Rose Bonheur

 

 

 

 

Pintura de Rose Bonheur

 

 

 

 

 Foi a primeira mulher a receber a Ordem da Legião de Honra, em 1865, dada pela própria imperatriz Eugénia. A sua fama ultrapassou as fronteiras do seu país, e, entre as diversas regiões que visitou, está a Inglaterra, onde foi recebida pela rainha Vitória.

 

 

Fig. 7  - Nos Estados Unidos, contatou com a mítica figura de Bufalo Bill e foi recebida com enorme sucesso.

 

  Há que atender ao facto de ser uma mulher, e, nessa exceção,  ter mais sucesso do que um outro pintor masculino. Rosa admirava muito a liberdade e a forma de vida de George Sand e tentou, também a seu modo viver livre de entraves sociais. Usava trajes masculinos, fumava em público e, por vezes, tinha mesmo comportamentos de provocação social.

 

 

Rose Bonheur

 

 

Sabe-se que não se coibia de se misturar com os vendedores de cavalos nas feiras, para melhor observar os animais. Foi com sempre com base no desenho que aperfeiçoava e evoluía nas técnicas que usava e nos quadros que pintava. Curiosamente, entre as obras do século XIX que investigamos acerca da sua vida, pouco ou nada mesmo aparece destes excessos e transgressões que até a divertiam. Os comentários risonhos ou mordazes que depois proferia, mostram que a faceta masculina foi bem assumida por Rosa que conseguia manter um comportamento bem masculino, mesmo em situações em que uma mulher do seu tempo não sairia airosamente.

    “A professora, ensaísta e crítica de arte, Therese Dolan, da Universidade de Temple, ao referir-se à espantosa vida de Rosa Bonheur, diz que ela foi “uma das mais homenageadas pintoras e, certamente, a mulher que como artista foi a mais conhecida do século dezanove na França, porém ainda estão muito atrasados os conhecimentos para termos uma análise mais aprofundada" escreveu a ensaísta e crítica de arte, e ao referir-se à sua obra, um pouco auto biográfica, indica ainda que, foi através de Ana Klumpke, a jovem artista americana, que foi o amor da vida de Rosa Bonheur, quem conseguiu que esta deixasse o depoimento do que pensou e viveu na sua longa vida e carreira de pintora e escultora.

    Ana começou por ser a retratista escolhida pela pintora e é ela quem descreve o modo como a conheceu e se veio a transformar na sua companheira, sempre presente, e que viveu com Rosa nas suas esplendidas moradias onde residia.

   O relato de Bonheur, acerca da história da sua vida, define bem a complexidade da sua personalidade que muito mudou ao longo da vida, tanto quanto evoluiu o seu trabalho artístico.

 

   Através da narrativa de Ana Klumpke, podemos ficar a par de temas da época e como a pintora via a formação do género, as mudanças institucionais que se deram ao longo da sua existência, quer na sociedade, quer no mundo da arte, a intervenção governamental nas artes, a regulação social e legal de códigos de vestuário. A tudo isto, acrescente-se o desinteresse religioso e a sua natureza transgressora em relação à sexualidade, visto ser público o seu convívio sexual feminino, numa época e numa sociedade repressiva, especialmente no que respeita à mulher, escrito “tudo isso com os ecos do traço forte e característico da  personalidade artística de Bonheur.”

 

 

 

 

 

Fig. 8 - Uma autobiografia heterodoxa, mas que revela muito da personalidade da pintora

    A habilidade social consiste exatamente por se marcar melhor a raridade da presença feminina neste campo artístico e assim a fama desta pintora é também o paradoxo de não haver mais mulheres que se destacassem na pintura. Por outro lado, ao tomar atitudes provocatórias e transgressoras, a sua excentricidade vinha demonstrar quanto era singular o destino de uma mulher nas artes.

 

 

 

 

 

Fig. 9 - Uma pintura que hoje passa por uma belíssima fotografia

 

 

    Por excentricidade, ou exotismo, mais do que inspiração e verdade estética, um caso, tal como o de Rosa Bonheur, não tem uma só faceta ou explicação.

  As circunstâncias da particularidade da sua aprendizagem são as de uma jovem, num colégio, no meio de rapazes e de poder ter um comportamento tal qual os seus colegas e os seus irmãos. A sua teimosia, em não querer aprender mais nada senão desenho e pintura, levaram-na para um caso feminino particular em que todas as possibilidades que teve são semelhantes às de um rapaz.

 

 

 

 

Fig. 10 - Os animais foram a forma mais comum das pinturas de Rosa Bonheur O plano da imagem é demasiado obediente a um código da pintora

 

 A família deu a estrutura e a aprendizagem, que não a particularizava com a sua feminilidade própria.

 

 

Fig. 11 - Ler este rosto é um trabalho muito longo e denso. A certeza de saber quanto vale emana da postura e da necessidade de ter um animal a seu lado é um pormenor para melhor leitura.

 

 Depois, esta sólida base artística permitiu, que os seus traços e toda a força que emanava das suas pinturas, que muitos consideraram aprovadoramente viris, transformaram-se em excelentes oportunidades.

 

 

 

 

 

Fig. 12 - Cada época retoma a leitura de uma obra pioneira de um mito na sua singularidade própria.

 

 

   Por um lado, o facto de imitar ou assemelhar-se a um qualquer pintor masculino, com as técnica e o talento que estes anifestavam e por outro, sendo uma exceção, melhor afirmava a raridade  feminina na cultura masculina que, no dizer de Simmel,  a cultura objetiva, das instituições e do social.

 

 

Fig. 13  - O afeto pelos animais manifestava-se nos quadros que tanto gostava de pintar

 

 

 

 

Fig. 14 -  O atelier da pintora com algumas recordações da sua vida e obra

 

 

   Temos assim a presença de três casos paradigmáticos de mulheres, Rosa Bonheur, Séraphine e Paula Rego, que se singularizaram na pintura com facetas perfeitamente distintas e que as separaram ou quase se opõem.

    Rosa Bonheur teve os louros por imitar e ter o estilo de um pintor, tal qual aquele que um artista masculino poderia atingir. Assim. alcança uma certa igualdade que logo passa a ser a tal exceção às regras.

 

Fig. 15 - Cavalos em "Feira de cavalos", um dos sucessos de Bonheur

 

    Num campo oposto, temos o caso de Séraphine Louis uma pobre mulher que teve uma originalidade e capacidade de se evidenciar na antítese da sorte da sua antecessora e conterrânea Rosa.

 

    Na síntese destes dois exemplos, já na pós-modernidade, colocamos a celebérrima pintora portuguesa, Paula Rego (1935-) que pertencia por nascimento a uma burguesia com alguns privilégios e depois, radicada muito jovem ainda em Londres consegue uma adaptação sem perder as raízes portuguesas que lhe dão mais força do que aquela se possa pensar. A sua pintura projeta-a como mulher, mas na provocação interpretativa, nem sempre é convincente para todos.

 

 

 

Fig. 16 -  Há algo de provocante no olhar o espetador. Uma espera que desafia quem passa

 

 

Se temos um êxito total, em termos económicos e de fama, já, no campo da estética, deixa muitas dúvidas a pairar no ar, acerca da perenidade da obra. É óbvio que conseguiu um estilo em que o feio, muitas vezes o horrendo, ou o humorístico, é a representação de um inconsciente castrado do feminino, uma forma de colocar as doutrinas freudianas em contextos sadomasoquistas ou de significado que não é inocentemente incerto. 

 

 

Fig. 17 - Com  " As criadas" entramos no mundo sado masoquista da pintora.

( Os símbolos marcam códigos já ausentes de uma infância perdida )

 

 

 

Os ódios infantis e as cenas sórdidas trazem interpretações dúbias de uma corrente freudiana muito para além de toda a sua ortodoxia. O aproveitamento de códigos culturais e de ideologias pode transformar esta obra numa simulação que, embora venda bem, nada tem a ver com a beleza ou o juízo estético.

 

 

 

Fig. 18 - Evocação de Degas na sua antítese

( A destruição da beleza é uma provocação sem anunciar outro mundo )

 

A questão mais complexa que parece levantar Paula Rego é o juízo de gosto que se cola excessivamente a representações espácio temporais que não libertam o quadro. Sem colocar a questão do belo, mas apenas a do gosto desinteressado este não o é.

    Não há desinteresse nem liberdade pois os quadros se fixam em códigos exteriores à obra. Parece-nos muito pertinente uma observação de Kant que nos diz muito destes jogos que Paula Rego usa e abusa.

 

Fig 19 -   "A mulher cão"

( A fidelidade feminina tem algo de ameaçador e mórbido )

 

 

 

Os juízos de gosto, necessariamente subjetivos, apesar de universalmente aceites, “poderia exigir, no que respeita à unanimidade dos diferentes sujeitos que julgam, uma adesão universal tal como acontece com um princípio objetivo." ( Kant, pp. 79-80).  O juízo de gosto que remeteria para prazer desinteressado, no caso dos quadros de Paula Rego, está comprometido pela necessidade de ligação e aceitação de determinadas teses e códigos para depois atingir um sentimento de estética, que assim deixa de ser desinteressado.   

 

 

Fig. 20 - "A filha do polícia"

 ( Frente a frente, a disciplina e a liberdade do felino )

 

 

 Acrescenta ainda Kant que:

     “ A necessidade do juízo estético consiste em que o sentimento nele expresso deve pressupor-se em todos os outros. Julgo não como sujeito puramente particular mas, a bem dizer, pondo-me no lugar dos outros a título ideal, exigindo de mim que não seja um simples ponto de vista mas a totalidade dos pontos de vista.   

Ora o desconhecimento dos códigos que a pintora usa compromete qualquer juízo de gosto.

 

 

 

 

Fig. 21 - A pretensa denúncia do envenenamento da Branca de Neve-

( O  ódio da madrasta/mãe torna qualquer feminilidade negativa ou agressiva. A morte de Branca de Neve só pode ser a vitória do mal. )

 

 

 

 

Fig. 22 - Se os mortos governam os vivos então quem dita a escrita ameaça o homem e aniquila a mulher

 Admitindo ainda que temos uma representação do feio ou do horrível, atribuindo-lhes sentido estético, o mesmo é duvidoso pelo humor ou crítica subentendidos e que estão no cerne, quer das imagens, quer das cores e tonalidades que imprime.

 

 

Fig. 23 - A visibilidade da mulher esconde a dominação invisível do masculino.

 

    Situar excessivamente no tempo e no espaço pode transformar-se facilmente em obra de consumo e dentro de um sucedâneo da indústria cultural compromete o valor estético pois este vai submeter-se ao valor económico que reflete por sua vez a aceitação da validade das teses. Se é a ideologia ou a sua rejeição o que sustenta o valor económico da obra, a conclusão é de que esta nunca será de puro gosto, nem resiste ao tempo e ao espaço.

 

Fig. 24 - A dominação simbólica do social sobre a mulher resiste ao tempo.

 Estará a par de tantas obras de ficção que têm um êxito de vendas pasmoso, mas são apenas para consumir e duram em termos literários, “ o espaço de uma manhã, de uma rosa”.

 

Fig. 25 - A mulher esconde um animal social masculino.

( Três figuras femininas e uma boneca articulada por fios invisíveis. )

A teia de valores que envolve toda a obra da pintora portuguesa que vence em Inglaterra e usa imagens propositadamente integradas em códigos facilmente reconhecíveis compromete tanto a liberdade como a perenidade de tal obra.

 

 

 

    Das três figuras femininas, a que demonstra uma libertação mais perfeita e uma sintonia com a estética do real e do imaginário é ainda Séraphine Louis ( 1864-1934, ou 1942), nem se sabe ao certo.

 

Fig. 26 - Séraphine Louis, a simplicidade de uma pintora.

( Um ser habitado por milagres, anjos e o estado de graça dos grandes inspirados. )

   A sua pintura é que está mais perto da verdade porque tem uma liberdade que as outras não alcançam e parte de uma sensibilidade que se une a um imaginário sem quaisquer interesses para além do quadro. Os juízos desinteressados não pretendem nem representar, nem apresentar. A unidade é de tal modo perfeita que, Séraphine se perde ou se integra na ação de pintar, é a criação, a obra e o próprio espetador que se encontram num perfeito abandono de outras realidades. Apenas a presença da faculdade de julgar na pintura, na pintora e na sua duplicidade de ser também espetadora numa liberdade que só a unidade desta síntese permite. É nisto que reside a raridade de uma pintura que não pretende “nada” no máximo desinteresse do processo criativo.

 

 

Fig. 27 - O deslumbramento da cor, nem está no Naïf mas talvez entre os "Primitivos" e o transcendente.

    Esta pintora pertencia a uma família bem humilde de Arsy, no Oise, e ficou órfã de mãe com apenas um ano de idade. O pai, camponês assalariado e com mais filhos, voltaria a casar e Séraphine, após a sua morte, vai para junto de uma irmã mais velha.

    A liberdade da sua infância, não se pode considerar feliz para os cânones da maior parte das pessoas citadinas. Ser uma pastora nos campos despovoados, aos 7 anos de idade, não parece ser um grande privilégio. Todavia, há algo quase mágico nessas profissões solitárias, de contemplação da relva, de sussurros do vento e das folhas, dos pequenos animais, o voar de aves ou insetos são a descoberta que a terra, a grande amiga da condição humana, permite uma unidade. Tanto para iniciar um roteiro místico, como aprender a difícil arte da solidão povoada de seres que falam numa gratuitidade só acessível a alguns.

    O estado de graça, neste caso, precede a criação e surge com ela depois, como aconteceu com Séraphine.

 

 

 

                          

Fig. 28 - A pintora tinha o hábito de gravar o seu nome antes de pintar o quadro.

( Aqui a Terra e o Céu encontram-se com os anjos, as aves do céu e os frutos. )

 

 

   Esta aprendizagem do isolamento e da comunhão com a natureza, quando se dá em idade tão sensível como a infância, conseguem resultados fabulosos.

    De um misticismo que se pode pensar ser natural, da espiritualidade da beleza que se descobre na simplicidade das coisas da natureza, nas águas dos riachos, no zumbir dos insetos, o balir das ovelhas, depressa nessa criança se iriam misturar com um misticismo mais ordenado quando Séraphine passou a viver e a trabalhar no Convento da Caridade das Irmãs da Divina Providência, com as religiosas onde os sinos, os cânticos e as vidas laboriosas e simples das freiras lhe mostraram outro modo de vida despida de adornos artificiais e muito ligada ao céu e à terra como húmus e produção de bens que todos prestam culto. Por entre a religiosidade, os milagres e o quotidiano uniam-se numa vivência que se afastava da vida secular, tornando o misticismo intrínseco a uma feminilidade que se assumia por si mesma. O mundo natural e sobrenatural uniam-se criando uma essência da mulher com uma unidade interior que corresponde ao mais radical da condição humana. A imanência do ser feminino com a relação ao metafisico dá-lhe uma transcendência tão natural como a ética e a estética, a verdade e o bem.

 

Fig. 29 - Sem necessitar de título é a entrada no "estado de graça"

Séraphine, parece que não teve instrução, apenas aquela que via as religiosas praticar todos os dias e, depois de ser uma doméstica junto delas, a sua presença notava-se na cidade de Senlis, onde passou a trabalhar em casa de famílias burguesas, que necessitavam de empregadas assalariadas. Considerada quase marginal, foi uma pessoa fora do tempo ou do espaço em que viveu. Não se pode dar a dimensão certa a alguém, uma mulher sem recursos, que pinta por gosto, aprende a beleza pela natureza que vive e sente e assim é que tudo sabe é do vivido. O estranho caso é de uma vontade forte de pintar sem outro qualquer interesse senão um desejo imperioso de dar livre curso à sua imaginação.

 

 

Fig. 30 - Para além da representação, está a terra na cor dos seus frutos.

 

 Pelo menos, inicialmente, nada a prendia ao mundo que a rodeava, a não ser esses espantosos desenhos que iam mostrar o que via a natureza.  Se trabalhava de dia em tarefas rudes nas casas da classe média, só lhe restava a noite para pintar. Era assim, que Séraphine, à fraca e trémula luz das velas, na sua pobre morada, passava as noites, entregue à inspiração, com o uso de materiais que ela própria procurava obter.

   Dois anos antes da grande guerra veio para Senlis, um alemão, Wilhelm Uhde (1874-1947) que colecionava pinturas com a particularidade de não pertencerem a escolas. Este crítico de arte, que tanta importância teve na pintura francesa, era um historiador de arte, romancista e ensaísta que veio para Paris em 1904 onde reuniu à sua roda os mais destacados artistas e intelectuais. Era um pacifista que teve de viver entre guerras e acabou por ser até perseguido pela Gestapo e exilado do seu país. Veio a morrer em França aquele que vivia para arte e sua divulgação.

 

 

 

Fig. 31 -  Uhde, um homem entre dois mundos hostis, a tentar viver para descobrir a beleza

 

 

 

  Por mero acaso, teve a surpresa de descobrir um quadro desta estranha pintora e que representava uma natureza morta. Interessado por uma obra tão original veio mudar o rumo da vida de Séraphine.

 Porém, a grande guerra obrigou Uhde a voltar para o seu país pois passou a ser visto como um potencial inimigo.

 

 

Fig. 32 -  A figura de Uhde reúne e eleva-se acima da violência das guerras

 

 

Quanto voltou a encontrá-la em 1927, já Séraphine pintava telas enormes e ganhara alguma fama. A grande depressão americana afetou também a Europa e as vendas dos quadros acabaram. Uhde não conseguia compradores para os seus quadros, pois as circunstâncias eram cada vez mais difíceis.

   A inabilidade financeira de Séraphine, as despesas que não sabia controlar e a incapacidade de gerir o dinheiro levaram a que, de novo, voltou à pobreza e, dada com doente mental, com o que rotularam ser uma psicose crónica termina por ser internada de forma definitiva hospício de Clérmont. Quando morreu, em data que não é muito segura, pois pode ter vivido num pavilhão os seus últimos anos, estava abandonada de  todos, se m ter amigos e tiveram de a enterrar numa vala comum.

 

 

Fig. 33 - Pormenor de uma pintura que são folhas que fazem o milagre da luz

 

 

 

Fig. 34 - A beleza que depois se transcende para conduzir ao infinito desinteressadamente

 

 

Fig. 35 -  Uma das pinturas que mais se aproxima do Naïf

 

 


 

Fig. 36 - Uma obra em busca de entender os sonhos de uma pintora que, ao acordar, enlouquece.



     A singularidade e beleza da pintura de Séraphine tem algo de inexplicável a que a maior parte das pessoas ficava indiferente.

 

 

Fig. 37 - Quadro de Séraphine Louis "Os frutos"

( A cor tem o fascínio de se ver mais além )


   Os seus quadros são predominantemente fantasias, ricas em arranjos florais, frutos e cores intensamente repetidas em grande singularidade de composição. “Séraphine era uma artista consumida por um desejo irreprimível de criar” - afirmou Bertrand Lorquin, diretor do Museu Maillol, (2008)

 

 

               

 

 

   A frase remete para a tarefa que subjugava a pintora ao ponto de não necessitar de exteriorizar, o que se pode dizer ser um “estado de graça” da criação que se realiza apenas no quadro com o sentimento e a emoção  que a sustentava. Trabalhava para pintar e não lhe interessava nada mais.

 

 

 

Fig. 38 - Uma repetição que não se repete pois a luz é que guia o olhar.

 

 

Fig. 39 - Só a luz basta para entrar num mundo infinito

 

Os temas levam-nos para um mundo em que a pintora vivia, perfeitamente alheada da sua existência de miséria e de trabalho rude.

    O mais tocante é a paixão que a levou até à loucura por uma arte absolutamente desinteressada. Um sentido místico e um colorido extremamente espiritual captam-se das suas telas.

 

 

Fig. 40 - A exuberante alegria que brota da noite e da luz das velas transcende o social e está muito além do tempo e do espaço das coisas visíveis.

 

   A estranha beleza dos quadros, por vezes de dimensões enormes, demonstra bem o misterioso mundo do imaginário de uma aptidão feminina, autodidata e perfeitamente intuitiva. A obra surgia, tal como quando entre os gregos, se falava da inspiração de alguém possuído pelo “furor” divino. A transcendência do artista tinha esta explicação de ser tomado pela paixão no seu sentido mais pleno.

   Se bem que tal explicação esteja bem perto dos mitos, este furor seria a exaltação ou o impulso irresistível que obrigava a pintora, sem preparação, nem interesses exteriores ao seu labor, a passar as noites a pintar como se essa fosse a sua missão a cumprir.

 

Fig. 41 - Para lá da imagem a cor transcende e alcança um "estado de graça"

 

 

No seu dizer simples evocava a presença de anjos e de entes celestes que a acompanhavam e que seriam reminiscências do tempo que trabalhou no convento, aprendeu com as Irmãs um misticismo diferente do que antes sentira no seu isolamento da sociedade e em contato com a natureza.

 

 

           Fig. 42 - O celeste, o divino, o milagre do azul  e de conviver com anjos que guiam a mão.

 

    O trabalho diurno como doméstica, nas casas onde trabalhava, servia apenas para poder sobreviver e comprar tudo o que precisava para pintar.  

    Entender a necessidade desta natureza fechada em si mesma de dar uma exterioridade à beleza do cosmos que ela descobria, é tentar entender a forma mais bela que pode tomar a estética e o artista. Se bem que a obra de Séraphine, trate do que se convencionou ser  “arte naïf”, é bem melhor falar-se em pintura primitiva, de telas quase sem temas e sem o traço característico do naïf.

 

 

      Fig 43-  Cartaz de Filme Séraphine, com Yolande Morey, e realização de Prouvot, 2008.

( A ficção pretende que a pintora nos revela uma realidade que ultrapassa o público. A comunhão da Mulher com a Natureza é uma das melhores facetas desta obra. )

  A pintora transcendia a natureza, elevava a imagem a composições originais, numa visão extremamente mística que a erguia do mundo do trabalho rude e da solidão que não sentia. O seu espírito, habitado pela beleza de tudo o que de sublime era capaz de ver, depois tinha a possibilidade rara de dar corpo aos quadros que a enfeitiçavam. Entre o génio e a loucura, Séraphine parece desafiar as palavras e as reflexões de Simmel no que se refere ao facto de negar à mulher o acesso à cultura objetiva. Se bem que para este pensador, não possa haver “um juízo imparcial acerca da mulher”, no campo da estética e do belo, o juízo tem de ser uma unidade, ou não alcançaria a universalidade.

 

Fig . 44 - Uma busca de entender o que  sem palavras de disse.

 

    Simmel estudou Kant mas tem uma posição polémica no que se refere ao género e a problemas que não interessaram o mestre prussiano. Todavia, no que se refere ao génio e à sua comparação com a mulher, o que em ambos Simmel chama “falta de lógica”, é a subversão da lógica, pois não há uma ordem delineada entre início, meios e fins quando o imaginário dirige qualquer ação. quando se trata de obra de um génio, também a mulher, a quem Simmel nega quase por completo a possibilidade de ser genial, haveria um certo inconsciente comum a ambos.

 

Fig. 45 - A capacidade de ver não é "naïf " mas a lenta ascensão à liberdade do juízo desinteressado.

 

    Em Séraphine, pela sua vida rude e pobre, pela falta de convivência com a realidade da cultura institucional e a sua proximidade apenas com a natureza e com a religião, existe, no íntimo da sua essência, uma unidade feminina tanto física como espiritual. Essa unidade interior liga-se ao universo através da feminilidade e, em Séraphine, existiu um exemplo raro da manifestação dessa unidade. A capacidade de descobrir e capturar a beleza mística do cosmos revela que uma circularidade interior na sua criação que dispensava a aprovação externa, ou esse dualismo dos pintores e das obras que precisam de um público que as admire e consagre.

 

 

               Fig. 46 - O pretexto é pictórico mas o real é o belo.

 

   Ao pintar, por puro desinteresse, mostrava a unidade dessa finalidade sem fim do juízo estético, não visto do lado do espetador, mas do cerne da sensibilidade e da imaginação na criação que o quadro revela.

   A comunhão que a pintora vive, com o mais íntimo da vida, traduz-se na sua natureza fechada que não necessita de nenhum imperativo para agir. O universo com que contatava sem a mediação do social, agia nela, sem necessidade de uma exteriorização aplaudida por um público que aqui Séraphine dispensava. Se, para os pintores ter um público possa ser essencial, a natureza feminina, que Simmel tanto tenta explicar, transcende aqui a própria artista e manifesta a imanência da mulher e o contato direto com o universo.

  O contacto que depois teve com a realidade mostrou claramente como a sua inadaptação à sociedade era frágil, se saísse do seu mundo. Os desastres financeiros e a falta de aptidão para a vida institucionalizada demonstram que a sua orientação se afastou do seu cerne com a aparição de uma dualidade que antes não necessitava. Agora é uma rudeza social que desconhecia que a oprime e desorienta. Os negócios, a vida social e de tudo o que é comum e quotidiano para as outras pessoas, levaram-na a perder-se no seu labirinto interior e a mergulhar na loucura. Enquanto pode viver entranhada no seu próprio ser, numa realidade invisível para os outros, mas que era o âmago de um misticismo revelado na obra a sua unidade não se quebrou. Depois, a arte perde essa liberdade e a pintora não suporta a lógica que está para além do seu universo fechado. A estética conseguia tornar transcendente o que nela era a imanência da beleza que descobria.  

 

    Estes casos são um pouco o exemplo de como foi a complexa e difícil  entrada feminina numa das artes que, paradoxalmente,  podia estar mais ao seu alcance. O atraso da humanidade deve-se muito a que, mais de metade dos seres humanos, jamais teve ou tem ainda qualquer possibilidade de atingir a consciência de si, mas a revolta é sempre quanto a opressão se torna excessiva e parte do lado do escravizado. Ora a mulher não pode ainda mostrar todas as múltiplas aptidões, capacidades e, mais ainda mostrar que as possui independente da cultura dominadora mas em igualdade de condição humana.

   Enquanto Simone de Beauvoir protesta mas protege-se, a sua obra “O Segundo sexo” tem a sombra forte da burguesinha que ela foi. Já quando se quer falar em terceira mulher, é a medo e com uma visão que Gilles Lipovetsky apresenta na sua última obra, “A terceira mulher”, mas cai no erro fatal e comum de se colocar como arauto da mulher. A ponta para o voto, o trabalho e a sua emancipação com tanta objetividade que esquece que o problema será sempre de uma subjetividade dos dois sexos. A mulher, essa que não é dominada, nem tratada, como animal e criança ainda não nasceu.

   Nestes casos observados, a mulher não nasceu. Somente se pode afirmar que “um dia…” a Mulher vai nascer.

    Então, o “Eterno feminino” terá outro conteúdo acrescentado ao mesmo com tudo o que o homem roubou à mulher, com tudo que lhe furtou e para mais a fez viver em gaiolas, mesmo que fossem douradas e comprassem em vez de obter por afeto o que mais humaniza a condição feminina. A pureza da verdade, do bem e da beleza. Para nascer uma nova mulher, é preciso que nasça uma nova criança!

 


 

 

                 Bibliografia:

 

 

 

Boujon, M. Henry, Édition Pierre Lafitte, Direção de, Rosa Bonheur, s/d. Paris, Nº 46.

Kant, Crítica da Faculdade de Julgar, Vrin, Paris,

Mucchielli, Roger, Introdução à Psicologia Estrutural, 1º volume, Editorial Presença, Biblioteca das Ciências humanas, Lisboa.

Simmel, George, Fidelidade e Gratidão e outros textos, 2004, Relógio d´Agua, Antropos, Lisboa.

Slyke, Gretchen van, The intimate biography of French painter Rosa Bonheur,

Klumpke, Anna, Ed. da University de Michigan.2012.