" Sem dó nem piedade"

  • Sobre as "novas Famílias". Crianças, Vozes e Murmúrios.

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas ( 2013 )

 

 

  

  "Maat" ou a manutenção do Cosmos

 [ " Muro na região do Alto Douro" . Murça do Douro. 2012. ]

© Levi Malho

 


 

Sempre se disse que a montanha paria um rato, mas agora também se pode dizer que um rato é capaz de parir uma montanha?

 Basta só uma pergunta:

---- Gostas do teu papá?
    A criancinha olha para nós, cá para cima, erguendo a cabeça para o que pensa ser uma pessoa crescida e sábia e responderá bem confusa:
            ---- Mas, qual deles? O dos fins de semana, o que vem cá a casa, ou o que nunca tem tempo para me ver?

 

Aliás, indo por aí, falará de outros pais que tem ou poderá ter, de acordo com os novos costumes e ações sociais. Desata-se um fio que desenrola uma rede de vidas e será muito longo desenredar todos os laços de mil modos, cores e sentidos. A instituição familiar é anterior à cidade. Sempre existiu e continua. Muda de forma como tudo. A cidade moldou-se ao nível da família. Com todos os seus bens e males, parentescos, deuses e tradições.

A cidade, para Fustel de Coulanges, veio traduzir os valores da família de um modo objetivo. Também muito se tem alterado. Agora com as megametrópoles teria de haver megas famílias ou um individualismo cerrado e egoísta. O certo é que apareceram os dois.

O cerne da família está no cuidar. A cidade também assim devia ser. A tónica da família está em cuidar das crianças que são um laço, ou uma teia para falar de família, quer nuclear, monoparental ou outra. É óbvio que há famílias sem crianças mas, a regra geral, é que todas as crianças saem de uma família que a ajuda a aprender o que a sociedade lhe impõe.

Um facto curioso, na diminuição da natalidade, é a repetição de casais portugueses que têm quase invariavelmente dois filhos. Quando são do mesmo sexo, há algumas exceções, pois tentam ainda ter mais um filho de sexo diferente, mas os interesses pela comodidade e realização profissional de cada progenitor afasta muito a ideia de famílias alargadas. A dita classe média manifesta um certo egoísmo na partilha de afeto, que se revela na ausência de filhos. Todavia repare-se que são as famílias mais pobres e numerosas as que menos se divorciam.

O cuidar das crianças cria uma solidez de laços invisíveis e as famílias, ditas pobres, têm menos desejo de consumo. Há uma riqueza intrínseca que consegue ultrapassar o desejo infatigável de “mais” que nunca chega ao tudo.

A frase, que se aplica a um aldeão, também se pode aplicar a uma criança. O homem sai da aldeia mas a aldeia não sai do homem. Quando uma criança muda de família, ela sai dessa família mas a família não sai dela. Nos nossos tempos, uma criança vai estar em diversas famílias e logo a sua visão do mundo será diferente do passado.

Um divórcio não acaba com a separação. Realmente apenas começa. Novas relações, trabalhos, hábitos e rotinas se impõem. É conhecida a frase de que um divorciado é “um viúvo de um vivo”. A ferida dói, não tem paliativo de cumprir a lei da vida, não tem cicatrização fácil porque o vivo é um outro que era um “nós”. Talvez seja um pouco como a perda de alguém que se sente amputado. Na alma, a separação não é de papel passado, nem tem a rapidez do nosso social. A situação, mesmo que vivida com alguma adaptação e bom senso, destabiliza a personalidade e os afetos anteriores têm de ser readaptados. No meio disto, que fazer com as crianças?

Os avós, de repente, vêm-se sem netos que estavam quase sempre presentes. Noutros casos, surgem-lhes, em casa, crianças que os olham interrogativamente, sem saber qual o tratamento adequado para aquelas pessoas que entram de súbito no seu mundo.

As crianças adaptam-se com curiosidade, mais do que afeto e a confiança traída não tem curativo fácil. Como vem de longe a nossa memória!

 

Assim, as famílias refletem um alargamento de relações e de afetos, nem sempre pacíficos e bem frágeis pois o que se diz ser “ amor líquido” de que fala Bauman é o deslizar de relação em relação, sem compromisso e ter sempre a porta aberta para uma nova realização ou experiência. Mas repare-se que Bauman também fala de “medo líquido” algo que insidiosamente nos retira qualquer certeza e aquela segurança dos vínculos.

Paradoxalmente, há mais divórcios porque se valoriza muito mais o casamento. O imaginário criou um matrimónio com o imperativo de ser perfeito. Face a toda a desumanização da cidade, do trabalho, das instituições sem rosto, o afeto no casamento e o bem-estar que deviam dar, são o último reduto onde se coloca a esperança de felicidade.

 Depois, não se perdoa uma desilusão, uma falha. Por isso, se vai buscar mais longe. A perfeição deve existir algures e não é no emprego, no estilo de vida, da sociedade que se procura o afeto que o casamento devia trazer. Claro que traz, mas tem limites e problemas.

Temos de ver que a porosidade das uniões é cada vez maior, mas quem mais o sente, apesar de tudo, são as crianças. Com isso não se trata de apontar aspetos negativos ou positivos É uma mera constatação.

As famílias recompostas, termo que teve dificuldade em ser aceite, tem, no seu sentido mais rigoroso, uma ou duas crianças de casamentos anteriores. Logo, teremos, da parte dos adultos, um diálogo a quatro vozes entre si, mas sem contar com a possibilidade de anteriores e novos parceiros que possam aparecer.

Estes parceiros anteriores, em idade de recomeçar a sua vida podem, por sua vez, ter mais filhos.

 

Então, como ficam as crianças? A sua teia das relações de afetos e a social não é a dos pais biológicos. Tornam-se bem complexas quando ultrapassam um certo número de filhos de diferentes uniões. Uma família recomposta, após os respetivos divórcios, poderá ter um ou dois filhos. O conceito de famílias recompostas implica a existência de crianças.

Mas, por sua vez, os outros adultos refazem a sua vida e casam de novo. Se também tiverem filhos, as famílias alargam-se, mesmo contra a vontade dos adultos. A teia passa a ser das crianças que obrigam a um convívio e que forçosamente se conhecem e lidam entre si.

Já diálogos entre crianças que nunca os adultos conheceram. Serão meios-irmãos, ou não, mas ocupando lugares bem desiguais. Uns, no coração de pais biológicos, alguns só de afeto, ou simples e polida convivência ou até má vontade e ciúme. A estabilidade adequada a estas novas situações consegue transtornar um pouco as personalidades sujeitas a adaptar-se em casas diferentes, com pessoas estranhas e hábitos novos. As rotinas dos filhos não são as dos adultos, que têm de aceitar regras a que ninguém escapa.

O divórcio veio para ficar. O cair da máscara da hipocrisia teve tal consequência. Os casais, unidos por pressão social, especialmente quando a mulher era a vítima já não é tão tolerado.

Mas falar de divórcio é olhar para metade de um problema pois haverá possivelmente mais relações e uniões com crianças que, naturalmente, aprendem a conviver umas com as outras de um modo totalmente novo. A verticalidade do diálogo torna-se multiforme, conflituosa e bem desigual. Os protestos infantis serão inúteis e eles captam isso bem depressa. Mas têm de encontrar mecanismos de defesa e gerir emoções e mudanças.

No social, há alguma vantagem. A sua adaptação será tanto mais fácil quanto mais famílias recompostas existirem pois, assim as crianças não serão nem discriminadas ou excluídas e a situação banaliza-se. Há quem diga já que existem, quanto aos filhos, “os teus os meus e os nossos”. Mas talvez mais certo será dizer: Os teus, os meus e os que não são nossos.

A sociedade assim terá uma noção de casa muito alargada e sem aquele centro de equilíbrio para a personalidade.

A casa, como espaço, deixa de fazer sentido, como tinha antes, para dar equilíbrio e ir criando círculos em seu redor. Agora, será num dos progenitores que a criança procurará maior amparo e segurança. Mudando várias vezes de casa, morando com pessoas de idades distintas e sem ter o centro vital, muito se exige agora a uma criança. É certo que têm a chamada resiliência que lhes dá psicologicamente mais força para suportar traumas, conflitos e separações. A esperança nestas famílias alargada deve ser colocada nos educadores que se confrontam uns com os outros, para que a grande teia social e de afetos, que as crianças partilham, não as transforme em pessoas problemáticas ou manipuladoras.

 

Ainda bebé, a criança observa atentamente os adultos, capta habilmente o modo de os manipular e depois é difícil não lhe ceder. Com as múltiplas saídas e chegadas de pais, as separações de semanas ou meses, torna-se indiferente ou interesseira pois consegue que, a cada chegada ou partida, receba uma recompensa.

A individualização atomística, que há na nova teia infantil das grandes famílias, unidas por fios que ligam os filhos, mas não tanto pelos progenitores, tem de aproximar mais as crianças entre si do que cada uma se interessar mais por um dos seus pais.

Basta ter atenção a um fenómeno comum. As crianças, logo que conhecem alguém que fica mais próximo, começam a tratar essa pessoa por tia e tio, numa falsa relação de afetos que mostra bem como tudo se alterou.

A grande família do futuro é uma constelação aberta de afetos, mas também de interesses sociais e obrigações, onde cada um pode mudar de lugar, sem que com isso sofra uma grande aflição ou desgosto. É óbvio que tudo isto é teórico mas, se olharmos bem à nossa volta, é o que em breve vai ser o novo modelo. Um modelo que não tem como base os pais, mas sim terá como base as crianças que, nos seus encontros, devem criar laços de amizade e companheirismo, ou de rivalidade e ciúme.

Os diálogos a múltiplas vozes têm um som novo. Dissonante talvez, mas os hábitos e as tradições começam por ser inovações. Nunca se mostrou, tão francamente, como a família não é uma casa mas os laços de afeto que, duram até a educação se possa dar, sem tanto apoio e os novos adolescentes tenham uma autonomia equilibrada.

Como reagirá a religião cristã neste novo contexto, em que o matrimónio se torna um sacramento que se quebra, não apenas uma vez, mas várias vezes? Foi bem tardiamente que a igreja passou a preocupar-se com o casamento transformando-o num sacramento. É o único em que os celebrantes não é o sacerdote mas os próprios noivos. Ironicamente, se uma pessoa pode ser ungida e receber os últimos sacramentos e escapar da morte, é óbvio que os poderá receber mais vezes. Será assim que, tal como os outros sacramentos, este se pode multiplicar pelo nascer e morrer de um amor? Porém, afeto que morre tinha algo de eterno que ninguém dá muito valor, mas marca qualquer infância. Se nascer outro afeto, sabemos todos que, no mundo inteiro, são os mortos que governam o vivo.

                        O futuro estará sempre nas mãos dos educadores mas o fruto é a criança.