" Memórias de Alice. I"

  • O que resta dos Espelhos. Fotos e olhares femininos

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas ( 2013 )

 

  

 

Abandono dos mistérios

 [ " Convento recuperado ao Rio Mondego" . Recuperação do Mosteiro de "Santa Clara - a - Velha". Coimbra. 2012. ]

© Levi Malho

 


 

 

 

Introdução

 

 

 Fotos, Olhares e Espelhos

 

                                  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

              

    


 

 

  Há uma obscura perplexidade quando se começa a contemplar atentamente as fotografias das mulheres dos séculos passados. Quer as damas mais idosas, quer as mais jovens, são bem diferentes das que surgem no século XXI. A solenidade é um dos mais comuns dos aspetos, pois raro seria usufruir de se poder contemplar numa imagem que vai muito além de um espelho.

 

              

 

Fig. 1 - Jovem desconhecida da Figueira da Foz

      [ Foto de estúdio com moldura de arte nova ]

 

  Repare-se em todo o artifício do arranjo dos trajes e dos locais escolhidos, com critério mais ou menos adequado, o tempo que devem ter levado a compor o traje, as pregas do vestuário, o cuidado com os penteados. Tudo retocado pelo esvoaçante fotógrafo, a rodar em volta, a espreitar na máquina, num volta para trás e para a frente, a pedir um sorriso, uma face mais de frente ou de lado, ou um olhar menos melancólico. O fotógrafo, por ser artista, ou pretender ser, cuidava em atingir o ângulo que imaginava ser mais favorável ou o gesto mais em moda. Das mulheres fotografadas só resta o silêncio.

 

 

 

                            

     Fig.  2 - Fotos de cerca de 1910

                  [ A imobilidade exigida obtinha-se com ferros ocultos no cenário ]

                               

       Depois, na pose bem preparada, quer de pé, quer sentadas, as imagens dessas mulheres que ficaram petrificadas, revestem-se de um tal simbolismo litúrgico, que nos afasta. Experimentamos uma estranha incapacidade de entender o que sentiriam, ou pensavam, aqueles seres tão submetidos e condicionados pela sociedade. A fotografia assim, com todo o seu artifício, é bem traiçoeira, diante daqueles vultos, agora mudos, sabemos que o seu silêncio é bem mais autêntico do que por serem apenas  fotos. Reporta-se a um mutismo e dependência que o social impunha a todas as senhoras.

 

 

         Fig. 3 - Um quase sorriso e a elegância

    [ adolescente desconhecida ]

 

 

Apenas as mulheres mais audaciosas e aventureiras se atreviam a mostrar rebeldia e oposição. Tudo 0 que ousa uma mulher tem um peso bem diferente do que se atribui ao homem. Quando a extravagância é uma arma feminina, o objetivo teria de ser a sedução ou a vontade de domínio que a sua inibição  só encontrava aí o meio de a satisfazer.

 

 

Fig. 4 - Foto do século XIX Em Abrantes Valhascos

 

 

 A visão de um futuro que já morreu no medo e desafio do olhar adolescente, quase criança, quase mulher.

 

 

 

                              Fig. 5 - Foto de estúdio Século XIX

                          Olhem-me, isso que me importa?

 

 

   Fig. 6  - Uma açoriana em La Lys, 1918.

Tempo no tempo de guerra e com um sorriso de paz.

 

                           

 Nesse seu duplo que sabia ir aparecer, tentava firmar para a eternidade a ingenuidade de satisfazer a sua vaidade, o seu encanto, o que de mais verdadeiro poderia seduzir o olhar de um Outro. O mecanismo de defesa contra a frustração pode transformar um sentimento de inferioridade em sentimento de superioridade moldando a forma de viver e muito especialmente de aparecer.

 

 

 

 

                        Fig. 7 - Quadro de Rubens Vénus, ainda parece que se interroga.  ( Serei bela? )

 

As mulheres que não atingiam um objetivo firme na sociedade pagavam bem alto o preço da transgressão, de sonhar com  uma independência que acabava quase sempre na miséria e na desgraça.

 

         

 

Fig. 8 Uma suspensão que nunca foi real

 

                                

 

 

       

  Fig. 9 - Quadro de Toulouse Lautrec

 

 

Fig. 10 - O sorriso solta-se e irradia onde tudo é cenário Foto de estúdio.

Do  artifício ao natural

 

  A grande questão, para a qual a resposta ainda não aparece, é a que leva à análise e ao estudo da feminilidade: A condição de mulher no social e na vida. Nasce já mulher e prolonga-se por tantas formas das mais variadas, sempre na feminilidade vital e criadora. A filha, a esposa, a mãe, a mestra, bem como os casos mais esquecidos, a mulher solteira, a viúva, a marginal e por fim a menos visível, a avó, a idosa e a mais solitária, a árvore de inverno que já nem tem folhas nem sequer guarda velhos ninhos que o vento levou…
   
  Nessas fotografias, simbolicamente oculto tal como a sua condição dependente, nas suas costas, ou nos espaldares das cadeiras, um instrumento de ferro mantinha-as imóveis durante o tempo de preparação até a foto estar pronta.
      Os habituais avisos ou delicadas observações, que podiam chegar à irritação exasperada dos fotógrafos silenciaram-se. O Salão do fotógrafo, por vezes com ares pomposos, tinha sombrios e bem fornecidos estúdios, com mil ferramentas e enfeites, e dessas fotos dependeria a sua reputação. Por isso, toda a fadiga, para contentar as clientes e também ser artista e ser conhecido. Ainda é possível ver nos lindos desenhos gravados de Arte Nova que serviam até de capa ou de moldura a essas fotos.
    Esses seres humanos experimentaram como nós sentimentos de alegria, mágoa e incertezas, não se pode negar isso. Mas será que sentiram quanto eram dominadas? Viviam conformadas, frias e pragmáticas? Não sabemos nada do modo como fervilhavam as suas ideias, o seu imaginário ou o seu calculismo acerca de coisas e gentes raras ou banais. Não descobrimos o que mais valorizavam, ou mais temiam ou as enfadava. Um mundo de que não se pode descobrir por falta de referenciais e, talvez ainda menos, se entenderia por forte contradição com a ideologia.

 

Fig.11 - Estúdio de Lamego A altivez e a segurança.

Apenas o olhar é infinito

 

A vida seria assim tão triste para que causasse, às mulheres mais idosas, esse semblante severo, sem contentamento, quase um olhar ausente de quem sabe que o tempo vai ficar ali petrificado e a vida triste vai continuar?
    Fora da moldura, fora do cenário, que restaria depois da longa espera das provas das fotos? O quotidiano na sua banalidade confinada a uma casa, com visitas raras a parentes, a festas tradicionais, lutos, nascimentos e mais lutos. Não eram comuns os sorrisos nas fotos, pois isso quebraria a solenidade do raro acontecimento. A foto foi a marca de um tempo que nada mais diz.

 

 

Fig. 12 - Dama desconhecida vila-franquense

" Apenas  conseguem ver-me de longe mas sei que me admiram"

 


    Nota-se uma anulação feminil nas faces sem brilho, uma melancolia evidente e um lugar secundário nessas já desbotadas fotos em que os homens ocupam o centro, na maior parte das vezes, mesmo naquelas de noivado ou casamento. Aquele fragmento único de uma vida inteira pode ser o sinal que mais tarde ainda perduraria. Se tivessem um nome? De nada serviria um nome. Apenas um vocábulo, tão falso e vazio como outros que tem.
    Por que razões mostram uns olhos, com profundidade insondável, ao ponto de sentir-se que queriam transmitir algum pensamento, ou uma frase que lhes ficou selada na sua boca sem riso? Raros são os rostos que sorriam para o eterno.
    A solenidade de uma fotografia é sentida bem fundo, pois todo o cerimonial da ocasião era um acontecimento único na vida dos pobres, raro, mas mais vulgar, entre burgueses e nobres que ainda podemos ver em velhas revistas em poses de salão. Algum, ainda mais extravagante, que tinha algum poder económico para gastar em coisas assim fúteis fotografava cada festa, casamento, nascimento, aos dias da comunhão solene.

 

 

 

                    Fig. 13 - Foto de estúdio Lamego Século XIX

                          [ Um sorriso que nunca desabrochará ]

 

 

     Nesses casos, depois da festa, era a repetição. As noivas traziam, com todo o cuidado, o vestuário do casamento, tal como as meninas de comunhão e   tal como as meninas de comunhão e não faltavam os cenários apropriados.

Fig. 14 - Foto de estúdio Inícios do século XX

[ A pureza do jardim branco ]

 

 

Fig.15  - Noivos tão tristes. A noiva de pé e de olhos ausentes

[ Cumpre-se o rito.]

 

O duplicado, para recordar a festa que fora e já passara causava algum alvoroço ou comoção de mistura com alguns farrapos das lembranças das cerimónias. Já de saudades se vestiam os tímidos sorrisos.  expressão mostra um íntimo desejo de permanecer, nunca mais envelhecer. Interrogam de tão longe e não entendemos o que mais desejam confessar e que resposta se lhes podia acaso dar.
    Nada sabemos do antes e o depois das vidas que só têm de forma uma fotografia que desbota. Qual terá sido a sua infância, a sua presença no social, os pais e os filhos que perderam, as histórias passadas de boca em boca?

 

 Fig.16 - Aqui estou mas não por gosto meu

                                                                  

Estamos aqui, mas de muito longe, os olhos que nos fitam são um pouco os nossos, pois é através dos seus olhos, dos nossos antepassados que vivem em nós, que vemos o mundo. O nosso próprio olhar tem uma lonjura que nos escapa. Transpôs séculos e perde-se na noite dos tempos, nas sombras dos que nos precederam. Através dos nossos olhos, há uma certa comoção ao pensar que os nossos antepassados espreitam o futuro, através de nós. Somos uma presença sua, no futuro comum, não representamos um indivíduo mas somente um elo que vem de uma tão longa cadeia, que não se sabe onde começa. Somos a sua vida transfigurada neste presente.
    Devemos-lhes tanto! Talvez isso nos dê essa dimensão de espanto que vai muito para além de nós. Parece que a nossa presença os transporta e, essa consciência dá um certo sentido de responsabilidade que radica na sua força que nos deu a dádiva de chegar aqui.
   
Cada um de nós apenas atravessou sem grande consciência de ter somente uma brevíssima etapa na cadeia da evolução. Paradoxalmente, quando se pensa na brevidade da vida, o passado quase parece infinito. Não pude ouvir os seus risos, o ligeiro franzir da testa, o pestanejar de um olhar mais atento, a dor que ensombrou o rosto tantas vezes.
    É mentira que vou conhecer alguém, só por isso uma única expressão. Mal a espreito.

 

 

                                                                                                        

                                                                                                         Fig. 17 - Uma noiva para Jesus

 

 

 

 

 

Fig. 18 -  Olhem-me! Não sou bela?

 

     A grande família tradicional está ali, forte como uma frondosa árvore, que já atravessou muitas tempestades, sabe inclinar-se mas não quebra. Nota-se uma personalidade em vagos pormenores, dedo, olhar ou do sorriso. Quem desconfia, reparará no orgulho subjetivo e selado de uma bisavó com seus netos e um bisneto ao colo.
    A grande família tradicional está ali, forte como uma frondosa árvore, que já atravessou muitas tempestades, sabe inclinar-se, mas não quebra.

 

                  

 

 Fig- 19 - A grande árvore da família

[ Quantos vão e quantos chegam? ]

 

 

                            Fig 20 - As raízes que se escondem e se prendem num tempo sem fim.