" As Ilusões da História"

  • "A Walking Shadow"

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas ( 2013 )

 

  

 

O que fica do que passa

 [ Restos da "Muralha Fernandina" . Proximidade da Ponte de D. Luís I.. Porto. 2007. ]

© Levi Malho

 


 

 

      Há quem acredite que a História dá lições. Se as dá, não tem alunos. É a curiosidade de saber como viveram os nossos antepassados o que deve levar, muitos seres humanos a acreditar, com uma pasmosa ingenuidade, em livros de intérpretes de outros intérpretes, de mais outros ainda, numa espiral infinita de traduções de realidades, em factos, acontecimentos progressos ou retrocessos.
       A história nunca se repete. Apesar disso, insiste-se muito nessa repetição invocando factos há muito transformados em mitos. Aquele estado quase neolítico da China nos inícios do século XX, deu um salto enorme como Mao Tsé Tung, e o gigante acorda devagar. As páginas de horror desse salto não se escrevem, só se guardará na História o avanço do povo. Há várias maneiras de olhar um grande quadro. Ou se vê cada pormenor e desaparecemos, como quando Alice bebia o licor para ficar pequena, ou perdemo-nos no conjunto se, tal como Alice, bebermos o licor para crescer. De qualquer modo só Lewis Carrol ri.
        Não há meio-termo, embora a nossa época seja de relativismos e pretensamente dialogante com todos. Mas, um diálogo com o passado, não passa da nossa projeção de ideias para interpretar pessoas ou factos que não podemos ter a pretensão de entendermos. Não nos livramos do nosso contexto e da nossa ideologia, para pensar num outro contexto, ou noutra ideologia. Um grego não era democrata, apenas por breve tempo e só para alguns atenienses.

    Na sua caminhada cega, a História parece-se com aquelas bonecas russas, as Matrioskas, um brinquedo tradicional mas que, ao chegar à última e mais pequena das bonecas, esta não é oca, e assim é o enigma da história do homem. Um bloco que não se pode desvendar pois por trás dos factos estão outros
sucessivamente, até que se encontra um nó górdio. Que relação há entre a Grécia do tempo de Péricles, e só em Atenas que não incluía nem escravos, nem mulheres, nem idiotas ---- “os que não queriam saber de política” e as ruinas que vemos de um povo de fronteiras e ameaças dos Turcos?
         Onde estão os sumérios, os egípcios, os romanos, os austro-húngaros e todos os impérios que rolaram e nada ensinaram? Quem vê as grandes pirâmides e olha o estado em que está o Egito turistificado onde encontrará a sua grandeza, se o povo caiu num marasmo de fadiga?  Vivemos numa crise, ou será um declínio sem remissão? Agora, todos pensam que já se chegou ao fundo, se bateu no fundo. Mas não há é fundo!

    Tudo não passa de metáfora, ou panaceia, para atenuar a queda e todos lerem, com maior paz de alma, o jornal de cada dia, onde, como escrevia Hegel com a sua ironia velada “A leitura dos jornais é uma espécie de oração realista da manhã.” A grande notícia de hoje é a superfície de um caudaloso rio. Ninguém julgue que está nas margens porque todos vamos nesse rio, cada vez mais caudaloso e, por isso, impossível de interpretar pois o devir é contínuo, oculto e implacável. A história do rio, ninguém a consegue contar.
        Os mortos governam os vivos de muito mau modo. Somos o seu futuro sem que soubessem a maneira com entenderíamos a sua herança e o que íamos ser. Temos as suas leis, as suas tradições e crenças vivas em nós. Mas os mortos já não aprendem nem ressuscitaram. Todo o seu poder é pó que rolou por terra. Eles não sabiam, tal como nós como seria o futuro.
          Que fazem os historiadores? Usam técnicas diferentes para estudar o mesmo que recordam em cada era de forma diferente. Nada muda na realidade, apenas o modo de estudar um passado que se altera nas mãos do presente. Acreditam numa ciência que, verdadeiramente, não tem método, mas resíduos, no fundo de um tinteiro, sempre a encher-se de novo como o poço das 50 Danaides. Cada escriba escreveu, do seu ponto de vista, rodeado de árvores, no meio de uma floresta e nem sabia que havia uma floresta. Cada época tem a sua floresta e nunca se pode estar, ao mesmo tempo, no vale e no cimo de um monte. Erudição ou cultura, conhecer a vida quotidiana de cada povo, nega-se a revelar o cerne dos pensamentos, a forma de pensar e viver, até de rir e chorar. Os testemunhos e interpretações são os documentos que se julga saber interpretar melhor do que todos os antepassados que também pensavam que interpretavam melhor do que todos os outros.

    A grande ilusão é a teia de Penélope, que, monótona e continuamente, se desfaz de noite para fingir que avança de dia. A história nunca ensinou a um político, ditador, governantes que, quando se colam a modelos, apenas caem mais depressa. Entretanto os historiadores, na sua faina insana, perdem-se em labirintos documentais, mais meandrosos que o dédalo de Creta. O minotauro é sempre Cronos que engole os filhos, impérios, dinastias inteiras que jazem no pó das areias. Só as dinastias egípcias há mais de vinte, transformadas em nada. Só nomes, nomes e nomes. Ou causas e efeitos, sempre diferentes. Nos laboratórios das interpretações históricas de cada época fabricam-se visões, restaurações de um passado que quem mais agita o mundo nunca conhecerá. Lulla da Silva, Lech Wałęsa, Adolfo Hitler, o pequeno Corso, ao lado de Pedro, o grande da Rússia, Nero ou os Ramsés, apenas nomes que o tempo diminui, como apaga os impérios dos heróis de um dia   Quem aprendeu com isso?

     Entretanto, nos confins da Amazónia, meia dúzia de tribos de índios, vive sem saber que a terra é redonda, há livros que narram crises e declínios e colocam causas e efeitos em tudo.  A ordem não é mais do que uma forma de tentar ler o livro do mundo, sempre com base naquela inconsciente certeza de que um professor de história sabia do que falava quando dedilhava a sua lição decorada.
         Hitler imitou Napoleão, à sua maneira. Por sua vez, Napoleão acreditava na História e tentou imitar Alexandre Magno que acreditava ser filho de deuses. Os deuses em quem acreditam?  Milhões e milhões de mortos e meia dúzia de fortunas manchadas de sangue eis o que resta para contar em folhas que, em breve digitalizadas, deixarão de fazer espirrar os novos escribas.
        Os grandes pensadores apoiam-se na História já que se desiludiram da justiça e das leis que são fruto da História. Ao olhar para o velho código napoleónico dá que pensar a uma mulher, como perde com o “progresso” das leis.
         Até os maiores filósofos, em História, nada nos ensinam, se estivermos atentos, e lermos bem as letras dos rodapés escritos em letras miúdas. Moral da história? Não há. Um governante, ou personagem histórico, só o consegue ser pela loucura do poder, pela astúcia ou manipulação das massas que tanto o erguem como o derrubam. ao sabor do vento, de um pequeno “se” oculto nos codicilos de todas as sínteses. A lição maior da História, escondida nos arcanos do tempo, é que não há História. Há passado. Uma ordem atribuída aos acontecimentos que só depende de cada presente. A ordem e o caos são as faces da mesma medalha, essa realidade que ninguém capta.
     É uma invenção da mente humana que gosta de ter as suas ideias arrumadas em ordem e método, com algum sentido e rumo. Só que o sentido e o rumo mudam todos os dias. Cada época inventa uma nova história e revê-se, narcisicamente, nela sem captar o âmago da realidade que se desfaz entre os dedos.  Cícero deixou uma frase que ainda hoje tem sentido. Falava da história como um grande bloco que nunca se pode ver no todo. Quando se olha para um lado, o outro fica oculto.
\   As grandes narrativas, se forem observadas de perto, têm muitos fios soltos e outros cortados. As narrativas das histórias locais, se forem comparadas, mostram estruturas, tais quais esqueletos, onde os indivíduos se movem no rio do tempo, convencidíssimos de que sabem o que querem. Mas o que querem é o que outros querem que eles queiram. Infelizmente, as massas não pensam e cada vez há mais massas. O povo que vota, comporta-se como um fanático do futebol e um voto esclarecido é igual ao de um idiota, no sentido que lhe deram os gregos.
        A revolução francesa não ensinou a liberdade a ninguém Em nome da Justiça e da verdade, rolou a cabeça de Madame Rolland, tal qual antes, rolara a cabeça de Maria Antonieta e ambas caíram no mesmo cesto do esquecimento.

    As ideologias conduziram os povos em busca de uma utopia. Quando Marx imaginava criar uma Inglaterra comunista, em vez disso, transformou a Rússia num mar sangue de que ainda nem se fala. Se temos coragem de falar do holocausto judeu, não nos referimos muito à hecatombe da Rússia pois eram irmãos contra irmãos.
         Kant, Hegel e Marx mais meia dúzia dos grandes pensadores que governam o mundo não sabem que o governam e desesperariam se vissem o rumo que as suas ideias levaram. Enquanto forem filósofos, os pensadores podem ser atemporais e, de algum modo, entendidos. Quando se transformam em historiadores, os erros começam. O fim da História de Hegel era a sua esplendorosa Reforma. O oriente fora um início e o espírito já não pairava lá. A China era um peso morto, uma massa apenas.  O progresso é um termo inventado pelos iluministas e que se lê mal à luz ténue da História. Uma crise ou declínio histórico encerra sempre a mesma crueldade humana. Temos a carnificina de um tempo de “extremos” que foi o século de onde os adultos de hoje saíram.
   O que se diz crise pode ser “o declínio da Europa” que temia Spengler e envolve o oriente donde emerge um novo progresso, uma nova era, um novo conto para crianças grandes lerem e interpretarem num futuro que não se deve jamais desenhar. Só podia errar.

 A História?  Shakespeare coloca na boca do tenebroso Macbeth, o famoso solilóquio, no meio dos seus remorsos e dos medos do futuro:

     Life's but a walking shadow, a poor player That struts and frets his hour upon the stage  And then is heard no more.

      It is a tale Told by an idiot, full of sound and fury. Signifying nothing