" VERDADES DE “TODO O MUNDO E NINGUÉM "

  • Sobre um "desejo" milenar.

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas ( 2013 )

 

 

Inevitável Abril

 [ Floração de Primavera ( pormenor ). Muro em Vila do Conde. Vila do Conde. 2007. ]

© Levi Malho

 


 

 

       Séculos sem fim de escravidão, subtil ou não, moldaram o segundo sexo, como disse Simone de Beauvoir, para obrigar a considerar natural o que são aberrações masculinas.
    Se uma mulher for muito religiosa é beata, se ficar solteira, e preferir viver assim, é uma solteirona, com toda a carga de ridículo que lhe atribuem. Se for dona de casa, não faz nada, se trabalha fora não é boa doméstica. Se quiser emitir uma opinião, num grupo masculino, é porque tem a mania de saber o que não lhe diz respeito, se não falar é porque é estúpida e pouco compreende de políticas e assuntos complexos. Assim, em qualquer lugar, é suspeita. Suspeita de quê? Ora essa!   De ser mulher...

    De ser tentadora! De se vestir bem para seduzir os homens, de trajar mal porque não tem bom gosto, de ter amigas que devem ser viciosas, de ser velha e logo antiquada, ou já estar com Alzheimer. De ser fútil, ou até de ser loura e logo sem cérebro. E mais se dirá, de acordo com as circunstâncias.  Não faltavam as críticas, em velhos almanaques, às solteironas, às tias, às sogras, estas, que o insubstituível ator Vasco Santana designava por ironia “aquela santa”, às desportistas, às automobilistas, às vaidosas loucas por roupas, sapatos e chapéus, e todos os defeitos que existiam nos homens mas nada se diz.

      Houve duas famosas francesas de nome Simone. Uma foi a de Beauvoir e outra Simone Weill, uma mulher intelectual e idealista que se colocou ao lado dos operários a trabalhar em fábricas. Seja ou não verdade que foi a autora terá sempre razão quando responde à burguesinha rica, Simone de Beauvoir, que queria protestar ao lado do povo:

     ---- Cala-te e vai-te embora, porque nunca passaste fome!

   Isto aplica-se bem a muitos homens. Deviam calar-se porque de nada percebem das mulheres. Vejam-se a engomar as suas camisas, a cozinhar, a lavar filhos e a casa depois de um rude dia de trabalho. É que, em casa, a mulher cuida e o homem mora. Os homens não sabem nem compreendem minimamente o que é ser mulher. Não têm ideia do sofrimento das mulheres, sempre a fingir que estão bem, mesmo quando a sua fisiologia as consome de dores, assunto tabu, a sorrir delicadamente e a calarem-se toda a vida.
         Os homens não nasceram na submissão da menina que tinha de brincar com bonecas ou chamavam-na maria rapaz, de ficar em casa, enquanto os irmãos podiam ir para os sítios que não podia frequentar. Os homens não tiveram aulas de lavores e prendas de mãos, sofrer com saltos altos, os espartilhos ou multiplicar pouca comida por muitas bocas. Há um dia dedicado às secretárias porque servem muito bem para servir, passe o pleonasmo, pois escolher uma profissão de secretária é próprio de mulheres porque os lugares de chefia são mais adequados aos homens, de serem professoras numa continuidade de tomar conta de meninos, enfermeiras porque têm mais paciência e cuidam melhor dos doentes do que os homens. E tudo isto, naturalmente porque a mulher nasceu para ser mãe e assim se fez sucessivamente por séculos.
    A mãe! O maior embuste masculino. Da mãe não havia que temer, pois é assexuada e, se já era velha, pode ser adorada em versos e recordações doces da infância que ela lhes deu. Essa mãe, às voltas com as crianças e na cozinha, a definhar, por cada novo filho, que chegavam a ser mais de vinte, sem exageros. Essa mãe enquanto
nova, já não atraia e assim não podia trair.
            Uma das razões de não haver antes tantos divórcios pode estar oculta. A média de vida das mulheres era baixíssima. Um homem nem chegava a aborrecer-se da mulher. Ela morria cedo. Os múltiplos casamentos dos viúvos eram casos correntes.

      Depois a Igreja venerou a mãe. Retirou o anátema de Eva, a grande culpada, a demoníaca tentadora do homem. Curiosamente, todos os mitos das origens do cosmos colocam a culpa dos males nas mulheres. Mas, tornando-se mãe, transformava-se em geradora de novos opressores e assim ficou com esse papel, o único que o homem lhe dá com gosto, até santidade e pedestal. O culto mariano não tem por fim dignificar a feminilidade, mas a mãe. A Mãe, mediadora entre o céu e a terra, não tem sexo. É a mulher do silêncio, da bondade resignada, das virtudes todas que são Paulo lhe concedeu e que a castraram. Santa Mónica é um exemplo de santa por ser mãe, não por ser mulher, sofrer um mau marido e ter uma vida de virtudes. Só vale por ser mãe. Logo é o “instinto”, a natureza, a intuição feminina, mitos de todos os tempos.
    É um ser ideal, uma quimera de místicos e de poetas que a igreja exalta. Virgem pura se diz, mas nunca o homem puro, virgem, com todos os requisitos atribuídos à mãe. Se forem dados ao pai e seria logo ridicularizado. Veja-se o caso de um solteirão e de uma solteirona e a questão entende-se logo.
           Uma traição masculina não passava de um capricho que a esposa, “ela já sabia que ele era mulherengo” com toda a bondade tolerava, se bebia e chegava a casa num estado lastimável, a mulher fazia tudo para que ninguém o soubesse, se a maltratava a mulher calava-se e, há casos em que até o defendia. O termo mulherengo é outro engodo. Há sempre vítimas.
            Por outro lado, a homossexualidade de tantos maridos, nunca se revela, a mulher finge que nada sabe e tem, ao menos, a garantia de que dali não terá filhos, para lhe retirarem os bens.  As duas morais convivem bem, lado a lado, porque nunca se espera revolta dos oprimidos, sem atingir extremos e consciência da situação.
         Veio Napoleão e mudou o Código Civil. Possivelmente porque desconfiava já da esposa Josefina, ou pelos inúmeros casos amorosos que teve. Hipocritamente, visitava colégios onde exigia severidade e preparação religiosa às meninas, mas sem esquecer que deviam agradar aos homens.  A mudança do código civil napoleónico agradou e espalhou-se pela Europa. Esse código retirava qualquer poder à mulher, que ficava submetida ao pai, depois ao marido e a administração dos seus bens era sempre feita por homens. Raras foram as exceções. A viúva, se fosse rica, corria o risco de casar outra vez ou de ficar à mercê de administradores que a defraudavam.

      Exceção extraordinária foi a viúva D. Antónia que administrou os bens que recebeu com todas as hipotecas e em ruinas e se transformou numa proprietária, tão rica que devia ser, a maior do reino. A Ferreirinha, que toda a gente conhece, tem o seu rosto, idoso, sereno e firme, em milhares de garrafas do vinho do Porto. Casou pela segunda vez depois dos cinquenta e tornou o marido par do reino, um homem que tinha tudo por causa do nome da mulher, denominada a “Rainha do Douro” tamanha foi a riqueza.  
    Simone de Beauvoir é mais conhecida porque se tornou companheira do filósofo Sartre, não há mulheres filósofas e a sua obra menos importante. Já a espantosa Simone Weil é um exemplo de fragilidade transformado em ideal. Por um tempo, acreditou nas ideias marxistas e, apesar de intelectual, fez-se operária. Não tardou a perceber que a submissão dobra qualquer sinal de revolta. As pessoas tornam-se obedientes e apáticas, aceitam as ideias dos dominadores.
        
     As mulheres no poder são raras e, por trás delas, mandam homens. Apesar de tudo, a hipocrisia tende a diminuir. Não adivinho, nem gosto de futurologia. Dá sempre para o torto. Torto sempre foi o mundo. Talvez um dia a mulher acorde. Única, feminina, sempre, com todos os seus atributos.