" Formosa e não segura "
Calças e "sapatos altos"
© Lúcia Costa Melo Simas ( 2012 )
Reino das Coisas
[ Gravura litografada em Revista da "Belle Époque". Enoch Bolles , artista gráfico. (EUA) 1928 ]
© Levi Malho - Composição e arranjo gráfico
É uma contradição mas uma realidade que se vê a cada passo. Claro que é uma metáfora mas é bem evidente. Disseram que a mulher tinha direitos e puseram-na na fábrica, nas secretarias, nos locais onde pode afirmar melhor a masculinidade. A feminilidade e a masculinidade das calças e saltos altos estão em contradição existencial que não é apenas exterior.
O lugar da mulher à janela, ou por trás da cortina de uma casa desapareceu, com a mulher e a janela. A televisão fez fechar as janelas e postigos e mudar a arquitetura. As casas já não precisam de janelas para ver para fora mas para entrar luz para dentro. A mudança aconteceu na arquitetura, mas foi muito mais e bem mais profunda. Disseram à mulher que saísse de casa e ela saiu. Se homem e mulher trabalharem, o que em princípio até dá liberdade à mulher, fez desaparecer a família tradicional e com ela milhares de empregos para os homens. Um só salário era suficiente para a família e agora nem dois o conseguem ser. É um paradoxo que, quanto mais as mulheres trabalham, mais desemprego há e são mais os homens que atingem os cargos com estatutos superiores. Quando lá chega uma mulher, é o espanto e a alegria ingénua de acreditar que a igualdade se vai realizar. Há muito tempo que a mulher encheu os cafés, as praças, as ruas, tudo por onde antes só os homens andavam. Agora as casas não têm gente lá dentro por causa dos saltos altos e das calças.
É mais fácil assaltar uma casa de dia do que à noite, pois um ladrão esperto sabe que todos foram trabalhar, as criancinhas foram para as creches e os idosos colocados nos lares. Os ladrões não estão para se aborrecer por assaltar lares e menos ainda creches donde pouco se pode levar.
Mas a incursão de que falo e insisto é a de usar calças e saltos altos. Afirma-se a sereia e não a mulher. A casa não é o lugar de ninguém apenas um mito e uma hipoteca da vida com carro à porta. Só há casa de verdade quando há lá dentro uma “dona-de-casa” que não sai para trabalhar, mas esta hoje também se sente discriminada e olhada de lado. Se volta a casa cansada, tem à sua espera uma multiplicidade de tarefas e papéis que vão desde a esposa, à mãe, à operária, à secretária, a cozinheira, engomadeira ou outras atividades pouco aliciantes para os homens. Há uma grande ironia ao escrever dona de casa, pois se oculta uma forma de escravidão bem subtil. Não é o trabalho que escraviza mas a função e a velha relação do senhor e do escravo.
A mulher que se afirma porque trabalha, não repara que a empregada doméstica é um posto novo que, para falsa liberdade de uma, leva outra para a alienação. No fundo, é a sociedade que se aliena. Acontece que a liberdade inclui a sexualidade e agora tanto a mulher como o homem podem programar a natalidade. O papel feminino com a liberdade sexual separa sexo e afeto. Dá à mulher o papel de sedutor e de seduzida sem compromisso. A repetição de uma relação sexual só leva a uma busca sem finalidade de uma felicidade mais do que utópica. De caso em caso, a repetição masculiniza a mulher, mesmo a mais feminina, numa negatividade de sedução que impele para uma competição de relações do geral sem eleição do individual.
Por fim, a solidão final dos saltos altos é carregada de múltiplas perdas e ganho de dores na coluna, lordose, escoliose e mais doenças. A solidão das calças é a sua perda no tempo e as feridas narcísicas que nada pode curar.
É óbvio que o papel sexual da mulher deixou de ser monogâmico pois pode procurar os parceiros que quiser sem ter riscos. Quando a sexualidade se separa da profundidade do afeto, nem um nem outro sexo se completam, mas sim concorrem entre si. Ironicamente fala-se da mulher de dia e a mulher de noite. De dia, usa o modo de agradar suave, convenientemente domesticada na sua voz profissional e nos sorrisos que se exigem ao ser feminina, já de noite exibe “pintura de guerra” e parte para a luta com um imperativo de séculos: “Quero gozar.” Sem compromissos, quer viver no presente, mas o passado é um fardo do qual ninguém se liberta.
A escolha de parceiros possíveis através da sexualidade em vez de ser pelo afeto e pela complementaridade faz os saltos altos e as calças combinarem bem. A igualdade de direitos, atividades e contextos sociais mudaram muito as relações entre os dois sexos, mas continua a não poder haver uma relação de igualdade. O problema é que não pode existir igualdade entre o que não é comparável. A necessidade de falar de relação quando se trata do problema da feminilidade é mais forte do que quando se escrever acerca de assuntos que dizem respeito aos dois sexos. Acontece que, durante séculos, todas as obras foram escritas por homens para serem lidas por homens e entendidas por eles sem levar sequer em conta a existência do outro sexo. A mulher aprendeu para entrar no mundo masculino mas era já condicionalmente masculino, por isso as mulheres viveram da contradição. A rejeição da feminilidade, pelo risco do pecado e do mal só era podia ser aceite pela maternidade que divinizou a mulher, mas o pedestal não se compadece dos saltos altos.
Ao entrar no mundo do trabalho e ao atingir a liberdade sexual nada mais errado do que a competição sem dignidade. A angústia sempre atormenta o sonho e a fantasia que se desfaz. A sociedade cria a atmosfera de sedução e encanto que nunca dura. Cada perda aumenta a negatividade e rouba qualquer êxito na vida. Lidar ou gerir as perdas como agora se diz, não é possível porque foi a sua interioridade que se fragmentou e se perdeu na temporalidade de cada instante.
Entender a condição humana é aceitar que há dois sexos e não nasceram para serem iguais. É muito ingénuo o pedagogo que não repara na falta de neutralidade dos discursos. A mulher não pensa tal qual um homem. Isso não é superioridade nem inferioridade. É aceitar factos científicos que só confirmam o que se constatava com aqueles chavões de “instinto materno” ou “intuição feminina” que não é mais do que uma falsa justificação para as calças e sapatos altos.
A mulher, para ser aceite no social, usa o discurso que lhe ensinaram e lhe dá os lugares que ocupa. Escreve-se a pensar no agrado que os saltos altos podem causar ao masculino. O domínio sobre a feminilidade não acabou e exerce-se de muitos modos. Vai da obrigação em agradar à sujeição a um ridículo e comicidade que marca tanto qualquer revolta feminina. Os lugares que se oferecem mais facilmente à mulher são os que substituem a maternidade ou a prolongam fora de casa. Apesar disso a dominação não acaba e a mulher tem de aceitar o jogo. O problema torna-se em ter muitos lugares e não ser em nenhum. A feminilidade tem uma unidade primordial que a liga mais à vida. É sempre mulher até morrer e o homem torna-se masculino. Há um dualismo no homem que a mulher de calças e saltos altos torna realidade para si mesma. Se passa a ter um pensamento puramente lógico, sem a subjetividade interior que a sua objetividade não pode revelar, a transcendência que por ela o homem pode atingir, desaparece. Não há complementaridade nem síntese entre seres iguais, mas sim nos que se conciliam e por isso mesmo se superam. A necessidade da relatividade não é falha de qualquer dos sexos. Trata-se de ver melhor a dependência mútua vital para a verdadeira condição dos seres humanos.
Sem ser deusa nem demónio, como foi considerada durante tanto tempo, a mulher perde a unidade com tantos papéis contraditórios a desempenhar. Mas o pior ainda é a contradição exterior do social que aceita o unissexo para tudo e fragmenta a autenticidade da vida interior no seu cerne. Depois do segundo sexo de Simone Beauvoir. Temos a terceira mulher com um homem que foi sempre senhor.
Menos para calças e sapatos altos.
© Lúcia Costa Melo Simas (Texto) - Regressar a " Os "Trabalhos e Dias" "
© Colaboração na concepção da página - Levi Malho.
Actualizado em 20. Novembro. 2012
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