"Dia seguinte"
"Depois da Banda passar" [1]
© Lúcia Costa Melo Simas ( 2012 )
Máscaras de Cronos
[ Relógio parado em edifício medieval. Siena. Itália. 2008 ]
© Levi Malho - Imagem digital
Que pena! Regressou a rotina. Primeiro o velho relógio já tem ponteiros. Depois acabou a dúvida de quem ganharia as eleições. E a seguir, para mostrar que a estrutura social, depois da mudança, é sempre a mesma chegou o circo. Nem mais. Um anúncio atravessou sonoramente a vila com o Circo “Cardinal” a acordar os distraídos e os que ainda têm aquele prazer infantil de ver falsos palhaços com aquela segurança que outros não dão e mais ainda se ignoram.
Pão e circo! "Panem et circum".
A máquina do sistema é implacável e roda sem estremecimentos nem arrelias. É o dia a dia que não tem nada de novo senão mais uma morte ou acidente “naturais” que nos desgostam ou um raro bebé que chega numa terra cada vez mais velha. As ruínas da casa assombrada dão o mesmo toque de vetustez e romantismo com as pombas que a habitam tranquilamente.
Na praça das freiras que nunca se atina no vulgo por Bento de Góis, os mesmos reformados bancos passam sestas a ver passar uns vagos turistas e as folhas que caem dançando no vento. O mesmo amável senhor de sempre serve anonimamente de sinaleiro numa ação prestimosa que ninguém quase nota. Os CTT, vai-se lá saber porquê, têm roupa nova, bem vermelha de recordar alegres infernos e agora com bilhetes de rifa sem os quais não seremos atendidos, ao mesmo tempo uma inundação de livros, CD's, telemóveis sujem apetitosos nas prateleiras a fingir que aquilo é um novo híper mercado em construção e ao mesmo tempo a mostrar o medo de que, em breve, serão uma velharia de museu. Já não há telegramas nem tinteiros para encher as canetas dos utentes, acabou-se o lacre para assegurar as encomendas. Tudo se comunica, compra e vende sem apanhar sol nem chuva, nem sair de casa. Insistentes teimosos, continuam vivos e a reclamar um cada vez mais magro subsídio ou reforma. Enchem de minguado ruido em tinir de cêntimos uma miserável vez por mês.
Mais uma escola, emoldurada a amarelo de gemada de ovo, surge remodelada a pedir crianças como pão para a boca. Que pena! O relógio estava muito melhor sem ponteiros! Acabaram-se as eleições! O circo foi-se embora! As crianças de todas as idades voltam para a escola!
Um relógio sem ponteiros é bem original, é excelente, dá todas as horas de graça. Dar, nem que sejam horas, é muito bom e nunca é demais. Dar bons dias, sorrisos, cumprimentos, dar passagem, dar qualquer coisa que torne a gente mais gente. Dar uma palavra para dizer o tudo o que de melhor temos e que nada compra. Ao menos, havia um relógio e não tinha horários colados aos ponteiros. Assim, estavam em saldo, à revelia de quem quisesse escolher.
Nem se adiantava nem se atrasava, apenas anunciava que Cronos existe mas ali afigurava-se tão graciosamente eterno. Sem ponteiros é a liberdade! Escolhe-se a hora e o minuto que se deseja sem horários a cumprir, nem certezas de todas as rotinas. O quotidiano é tão perfeito que ninguém está a mais ou faz falta. O relógio com ponteiros destoa para quem quer liberdade.
As eleições eram algo que trazia, à tona dos dias e das noites, alegria, cor e alguns confortos e desconfortos de alma ou de estômago. Um velhote, mais animoso ou atrevido, ainda pedia uma esferográfica a gentil menina que sacudia inutilmente uma bandeirinha para cumprir a sua missão de pedir votos. A resposta chegou desconsoladamente. Um partido pobre não tem canetas. Também para que é que o homem queria uma caneta? Para fazer a sua cruz no papel do voto, já tem lá uma. E se tem muita falta de esferográficas, levasse um canivete e cortasse a que lá estava no local do secretíssimo voto!
Olhar para uma terra como esta, de paz e sossego, com apenas meia dúzia de possíveis malfeitores ou infelizes drogados, é olhar para a vida como Hegel gostava ao pegar no jornal, que talvez nem lesse, e resmungasse: A leitura dos jornais é uma espécie de oração realista da manhã”. A realidade está nos livros que escreveu e Marx pôs às avessas, com a Economia onde estava a Ideia. A realidade? Sei lá o que é! Galileu apontou para a lua e não para a terra e deu no que deu. Hegel, interrogado sobre a realidade, tinha a resposta certa: Vá ler os meus livros!
Quando os grandes matemáticos, depois de tanto descobrir e desvendar no seu grande mundo de equações e teoremas, olham depois à sua roda afirmam a medo que não sabem se há realidade e menos ainda o que podia ser. Galileu apontou para o sítio errado. O ser humano continua desconhecido. Bem-aventurados os ignorantes.
NOTA:
[1] - Recorda-se e recorre-se ao verso incluído no "Poema-Letra" duma conhecida canção de 1966, da autoria do Brasileiro Chico Buarque de Hollanda, meditando-se sobre o "rescaldo" duma Campanha Eleitoral que passou por Vila Franca do Campo ( S. Miguel - Açores ) em Outubro de 2012.
© Lúcia Costa Melo Simas (Texto) - Regressar a " Os "Trabalhos e Dias" "
© Colaboração na concepção da página - Levi Malho.
Actualizado em 30. Outubro. 2012
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