"    A Epiderme do Tempo" [i]

  •  Reflexões sobre o "quotidiano"

 

    ©  Lúcia Costa Melo Simas ( 2012 )

 
 
 
 
 

   As horas de Heraclito

 [ Perspectiva fluvial em manhã de Primavera. Ponte de Lima.  2007 ]

© Levi Malho - Imagem digital

 


                

    Camada sobre camada, o tempo parece que se acumula tal qual areia do deserto sobre um velho edifício e esconde a realidade que vem de tão longe e não se sabe jamais para onde vai. De certo modo, não nos lembrarmos é sinal de éramos tão felizes, tão conformados ou habituados a um dia-a-dia que não recordamos das horas, semanas ou anos, apenas uma ou outra lembrança sai do seu lugar e apresenta-se viva no presente. Para que se recorde é preciso que separe ou seja uma mudança. O resto é o fumo vago das coisas que levam todas as crianças crescidas a afirmar convictas que essa infância era um tempo feliz e o “seu tempo” sempre melhor, continuadamente emoldurado de grinaldas de flores, de luto ou alegria, do que já passou e que vagamente se recorda.
        As crianças crescidas não mentem apenas se enganam. Quando alguém morre velho, morre também uma criança que nele habitava, um jovem adolescente, um adulto amadurecido. Nascemos múltiplos e morremos sós mas juntos. As crianças de colo passam dias de choros, de lágrimas, dores diversas, têm  mil desejos frustrados, querem tantas coisas e não alcançam mas não falam, são “infans”, isto é, não falam, na etimologia latina. Ninguém recorda mas o primeiro ano de vida é o de maior trabalho de uma existência e aquele em que a maioria das pessoas mais chorou. Raro é o dia que um bebé passe sem lágrimas e dores.
       O poeta Manuel da Fonseca (1911-1993) descrevia num seu poema essa banalidade do quotidiano tentando captar a vida da Vida e o dentro e o fora vivenciado:

 

 “O coro dos empregados da Câmara

  É tão vazia a nossa vida/ é tão inútil a nossa vida que a gente veste de escuro/ como se andasse de luto/Ao menos se alguém morresse/ e se esse alguém fosse um de nós/ e esse alguém fosse eu (…) chegando carros ao largo /com gente que vem de fora/ (quem será que vem de fora?)/

 e a gente práqui fechados/ na penumbra das paredes/ curvados pras secretárias/ fazendo letra bonita/ fazendo letra bonita/ e o vento andado lá fora/ rumorejando nas árvores/ levantando nuvens pelo céu/ trazendo um grito da rua/ Quem seria que gritou?/e a gente práqui fechados/ curvados pras secretárias, /fazendo letra bonita, /enchendo impressos, impressos/ livros, livros, folhas soltas/ carimbando, pondo selos/ bocejando, bocejando/ bocejando.”

 

   Quando alguém quer recordar o passado, procura muito no que se assemelha a um vazio ou obscuridade. Mas será sempre quase para nada pois as suas memórias são reconstruções, falsificações e referem-se a factos e cenas que, de tanto repetirem ou ouvirem comentar, acabam por acreditar serem autênticas. A memória não recorda acontecimentos, mas a recordação da recordação até se perder nas brumas.   Paradoxalmente a primeira consciência da vida é no quotidiano. Em muitos casos, a recordação primordial foi um brotar da mais forte e repentino da consciência. Um brinquedo cuja cor se fixou, uma planta que se viu com grande atenção, até imaginários seres nas teias de um tapete ou as manchas de uma parede. Essas são memórias que não têm narrativa, por isso são autênticas. São a perceção originária da vida. Uma entrada na consciência interior a afirmar uma existência que se consciencializa.
      Ao pensar seriamente no quotidiano, de repente, este mais se assemelha a uma enorme nuvem que está sob as nossas cabeças e as camadas do tempo foram como os telhados que nos roubam o céu. Ninguém se importa que se lhe roube o céu quando tem um teto e quando se sente bem e confortável. Assim o tempo acumula-se e, até um dado ponto da nossa estrada, parece que vai bem devagar.     O presente é tão perto que nem se nota como estamos já distantes do ponto de partida dos primeiros reconhecimentos que já são sempre interpretações carregadas de outras que cremos serem nossas, mas a força dos outros sobre nós é tanto maior quanto menos damos por isso.
        A dificuldade do passado ser visitado é enorme. Um exemplo comum é pegar num jornal velho, assim mesmo à toa, e ler que uma festa se realizou a 16 desse mês. Mas, que pena! A folha está rota, todos os meses têm dias 16, além disso há tantos jornais parecidos… Esta é a porta que com muita dificuldade se abre para outra realidade o que é banal e nem precisa ser dito. Será o que mais depressa é esquecido e os pesquisadores da História, os eruditos e analistas do passado nunca decifrarão.   “A leitura dos jornais é uma espécie de oração realista da manhã”  escrevia ironicamente Hegel. A realidade é o devir do que mais depressa se esquece. Por outro lado, os grandes matemáticos sentem grande dificuldade em lidar com o que se entende por realidade e a sua existência.
      O quotidiano é tecido com aquela banalidade do dia-a-dia, com tanta força interior que nos induz no erro que nunca mais esqueceremos, pois o presente não tem biblioteca, nem é feito para interpretar mas para viver. O mais banal está pois apagado. Assim se, como dizia o filósofo, Gaston Bachelard, só há ciência do oculto, o quotidiano é a última ciência.
     O método fenomenológico ou um sistema implica uma suspensão que não se coaduna com o cerne vital em que toda a realidade mergulha e paradoxalmente não pode ter rigor de fundamentação e limitar-se somente ao método. Se fossemos poetas a maior parte da vida seria um sonho tão verdadeiro que nunca se acordaria com certezas de ter sonhado ou de ter vivido. Quase tudo no comum das gentes se passa em tempos quebrados ou portas que se abrem e fecham por haver um acontecimento marcante, uma morte, um nascimento, sucesso ou fatalidade.   
     É assim que se recorda um casaco de infância, sem data nem ano, porque gostávamos dele ou o perdemos algures num tempo esquecido. Mas estranhamente quase nunca nos recordamos de sentir frio ou calor, fome ou sede, as frases simples que repetimos tanta vez, o que ouvimos a cada passo, as lições das aulas de todos os dias, almoços e jantares, serões de todas as semanas que já somam anos a fio. Esse é espaço familiar repetitivo da banalidade onde reside a essência da vida mais real e perfeita que pode haver.

     “Não acontecer nada” é mais do que a rotina e menos do que a dor, o entusiasmo, a cólera ou outro sentimento excessivo. É o cerne da vida, o devir de nós mesmos, no que nos transformamos a cada passo e algo tranquilo ou sereno ressalta desse oculto de nós que somos a surgimento consciente. A banalidade esquecida é o tecido vivo da existência
Por isso, chegou muito tarde o estudo da quotidianidade porque o que está demasiado perto de nós não o conseguimos ver e, muito menos, estudar sem o destruir. A epiderme do tempo esconde a vida que dissecamos ao cortar o seu nó górdio vital.

 


 

[i] Título amavelmente cedido pelo Excelentíssimo Senhor Professor Doutor Levi Duarte Malho para o trabalho

Reflexões sobre a Grande Guerra, intitulado “Agora e sempre”, de onde foi extraído para tratar o tema do quotidiano.