" Tempus Fugit "
Armadilhas da Fotografia
© Lúcia Costa Melo Simas ( 2012 )
Séculos de séculos
[ Gravura pré-histórica do Côa. (Pormenor duma cópia). Museu do Vale do Côa. Vila Nova Foz Côa. 2012 ]
© Levi Malho - Imagem digital
Face a uma paisagem invulgarmente bela, parámos num mirante, dos muitos que há na ilha. Chegou uma família inteira que ficou por igual deslumbrada. As exclamações não paravam e o homem, sem mais hesitar, ao ver que tínhamos uma máquina fotográfica, pediu-nos encarecidamente que o fotografássemos ali, com a família toda e o cenário lindíssimo ao fundo. A alegria de todos era enorme. Partiram logo tal como tinham chegado. Ficámos a pensar que aquele era um tempo que o homem queria guardar, um fragmento do seu dia que afinal nem nos pediu que lhe déssemos. O estranho disto é o arrebatamento do tempo tão denso que a família inteira o segurou no absurdo da foto que nem quis guardar. Levaram o sonho.
A ilusão da fotografia é sustentada pelo imaginário que a dimensiona e recoloca fora do tempo. Recusa o presente mas não é o passado. Por isso, em vez que sermos nós quem fixa a câmara e petrifica o momento, é o momento que nos apagou e petrificou. Assim o fez aquele desconhecido e sua família. O tempo estava condensado para eles no seu imaginário.
Somos fragmentos reais de um terrível engano. Pela fotografia criamos a ilusão da captura do tempo num espaço diferente e eliminamos a corrida do tempo. Conseguimos aquele milagre da eternidade que Platão designava “O tempo é a forma móvel da eternidade imóvel”!
Aquela família transpôs, pelo sentimento estético e seu deslumbramento, o devir e passou ao tempo imóvel. Um absurdo que só o juízo estético desinteressado e refletinte kantiano pode proporcionar. Por paradoxal que seja, a sua ilusão foi tão real, a transmutação tão importante que não precisavam mais dela. Eles ficaram na paisagem, pela magia da foto, para a eternidade. Por isso estavam tão alegres e por isso se foram sem perguntar nada. Era uma mentira e tão doce que por nada a quiseram abalar.Estamos certos que este é um dos casos absurdos de uma lógica da fragmentação do real que aconteceu e uma saída do tempo para a ilusão do eterno devido ao juízo estético. Porém cada alegria é sempre diferente de outra e uma foto não é uma cópia.
Precisamos, nos nossos dias tão breves, de imaginar que o real pode ficar preso. A simulação da eternidade pode ver-se na arte e muito prosaicamente nas fotos.
Aquela representação do grandioso real num pedacinho fragmentado é tão diferente da realidade movente mas torna-se prisioneiro do instante que vai para o passado se dissolve que nem existe já. É aqui que a filosofia encontra a fotografia.
Se formos pela via proudhoniana a propriedade é um roubo. Se pousamos os olhos nos montes eles passam a ser nossos, se olharmos uma montra também e mais ainda uma foto.
Os povos primitivos, diante dos fotógrafos, reagiam com medo e revolta. Podiam roubar o “espírito” com aquela imagem retida na máquina. Tudo o que os olhos podem ver é um poder sobre o real. Sartre, com a sua complexa relação com o Outro, considera que se estiver num jardim e mais alguém aparecer lá, deixa de ser dono dele.
Mas o fotógrafo fica também ligado a algo a que atribui um passado, uma prova do desdobramento da realidade e um sentido desesperantemente absurdo para a permanência de um tempo que se perdeu irremediavelmente. Todos sabem isso. Mas o fragmento tem o poder de exorcizar em que insistia Baudrillard. Pelo emprego da magia da foto nega-se o passado pela eternidade que se coloca no presente.
Rasga-se de repente o véu de Maia. Foi a ilusão que nos capturou. A fotografia é inanimada, só o olhar a ressuscita. Sabe-se porém que todo o ressuscitado já não é deste mundo. Não há tempo, nem fragmento, nem instante, e a foto é a mentira viva da verdade morta. A forma como olhamos para uma fotografia leva-nos para outra realidade. Vamos para o mundo das emoções, do riso, dos movimentos, dos perfumes e dos sons. Não vemos planas as altas montanhas das fotos. As cores que recordamos são diferentes das figuras, transformamos tudo pelo imaginário, onde o tempo parou e se despedaçou. Tomamos a parte pelo todo com a maior ingenuidade. Por exemplo, o ícone de Che Guevara não passa um fragmento retirado de outro quadro e tornado mito. O contexto passou para o plano secundário da Gestalt. O estudo da perceção e da fotografia é um filão riquíssimo.
Hoje vivemos uma era de velocidades. Nada mais natural que a necessidade da fotografia. Afasta a velocidade, o medo, esse medo do voo do tempo. Na falsa paragem, uma foto ainda nos apanha mais depressa na teia do tempo que nos oferece panóplias de ilusões que tanto queremos possuir e oferecer ao nosso cruel imaginário. A sacralidade do tempo é um imaginário da modernidade e a foto é a mítica taça do Graal. Todavia, ao segurar uma foto, logo se nota que é um fragmento, não é o real, não esgota a sede do passado, nem dá certezas dos instantes.
As perceções do passado tornam-se mentiras teimosamente vivas. Muita infância agora é velhice e nada mente mais do que uma fotografia roubada ao tempo implacável que tudo muda.
Todavia, há cada vez mais fotógrafos que se convencem de que esse é o mundo que permanece. A foto. O instantâneo da “imagem real” está aí. Uma forma de estar aí que pretende ser aí mas não tem fundamento ontológico.
Esse é o mundo que denuncia o mal e a violência, mas a foto é um mal nas mãos de quem, em vez de lutar, de viver, se esconde por trás da foto numa missão narrativa. Mas não conta, nem dá vida. A morte e a violência não servem para contar mas para vender. Torna-nos insensíveis, ou tomados pelo fascínio do terror. De qualquer modo, mantemo-nos numa imobilidade a que foto obriga. Em vez de agir, quanto mais se vê, mais a petrificação acontece. Também serve para tranquilizar ou criar um masoquismo, tão passivo quanto o mal é ativo. A dor de um rosto real é apagada pela distância no espaço e no tempo. O mal espalha-se na multiplicidade das fotos, é como uma peste que contamina todos os que o olham. Aqueles rostos e corpos que sofrem são roubados e não queriam ser fotografados, são seres humanos que em vez de salvos são abandonados pelas cópias e vendidos depois. Uma nova escravatura aparece, subtil e crescente com os seus mercados e compradores.
O fotógrafo tem facetas bem diferentes; a da ingenuidade e a do mal. Não é o mal que faz mas o mal que vende e distribui
Um fotógrafo amador, sem cursos nem pretensões, quer roubar ao tempo a sua beleza, marcar a sua passagem, firmar recordações que teme perder. Porém, deixa apenas um vazio porque nada roubou da realidade que flui como um rio. A foto nunca é o que estava lá porque não existe já o que se fotografou.
Onde está o azul do céu que não se altera, com o vento petrificado e a nuvem sem movimento? Ou a gargalhada e o riso que são mudos? Para onde foi o perfume do mato, da dama sorridente, das iguarias da mesa? E as palmas para a festa que ruido marcam?
A criação da foto até como algo espontâneo é mentira porque não há espontâneo, logo que insensibilizado no papel. Fica cimentado, pode-se olhar mil vezes para uma foto. Para a realidade de cada vez é diferente. Baudrillard fala da modernidade e dos reféns da fotografia e tem alguma razão. A fotografia “é o nosso exorcismo.” Assim contra o tempo que passa veloz, podemos reinventar fragmentos do passado. Exorcizamos os nossos medos, as nossas perdas, a nossa aspiração do todo pela fragmentação de criações nossas contra a crueldade do tempo.
As marcas de um rosto são a prova do tempo. Elisabeth da Áustria exorcizou o tempo para manter a sua beleza. Quadro ou foto sua, depois dos 30 anos, não consentia que aparecesse e os que já havia eram retocados e apareciam em público, com a bela imperatriz sempre jovem como se tivesse o elixir da eterna juventude.
Ver uma foto é o bem e o mal que se captam petrificados noutro tempo que não é nem passado, nem presente. Descobrir as armadilhas da fotografia é estar mais envolto no tempo que somos e não nos escondermos no imaginário que petrifica.
© Lúcia Costa Melo Simas (Texto) - Regressar a " Os "Trabalhos e Dias" "
© Colaboração na concepção da página - Levi Malho.
Actualizado em 07. Agosto. 2012
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