" AGORA E SEMPRE "
Reflexões sobre a "Grande Guerra"
© Lúcia Costa Melo Simas ( 2012 )
Véspera dos ventos
[ Árvore em fim de Outono. (Pormenor). Matosinhos. 2008 ]
© Levi Malho - Imagem digital
Nota prévia
Este trabalho tem objetivos totalmente pedagógicos e culturais, sem nenhum fim comercial ou outro qualquer que seja. Trata-se de uma reflexão e estudo de acontecimentos, para além da descrição dos factos. Por isso, qualquer imagem ou fotografia tem a indicação da origem ou é pertença nossa. O cuidado com as datas de nascimento e morte e acontecimentos ocorridos, tem por objetivo situar com rigor os dados que não seguem na sua análise uma explanação linear, por razões de fio condutor da reflexão.
A bibliografia também pretende mencionar as obras que serviram de base e consulta.
A Autora gostaria de agradecer a cooperação por parte dum antigo Professor e Amigo que exerceu funções no Departamento. de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto ( Levi António Malho ), que sugeriu a "divisão" deste Ensaio em diferentes capítulos, bem como os respectivos "títulos", assim como a ajuda na composição que permitiu tecnicamente transferir o texto original para uma formatação compatível com a publicação neste "local da Web".
I - VOZES NO VENTO
Na praça Bento de Góis, as pombas espreitam…
Numa tarde que já se escorregava do Verão e se adivinhava um Outono tardio, passeando pela pacatez da terra, cheguei a local denominado tradicionalmente por Praça das Freiras, se bem há muito não haja lá essas boas almas, o nome seja outro e possa mudar mais ainda.
Deparei-me com um rapazinho descalço e vestido com um fato de mergulho. Prancha de surf debaixo do braço, cabelo louro revolto e molhado, como afinal todo ele, em boa conversa com gente ociosa no grupo exterior das tabernas e cafés. Por ali, há sempre gente a qualquer hora do dia. Reformados ou desempregados, simples desocupados, alcoólicos, talvez algum pescador cansado, por mil e uma razões para conversas, lá se colam. As portas das tabernas e demais lojinhas foram promovidas com nomes pomposos, sem passarem de ser tascas escusas, mais conhecidas pelos apelidos dos donos. Quando a loja chega a ter nome, é o dono que passa a ter o apelido da loja, por mais que se queira livrar do destino.
Misturavam-se todos, numa calmaria de longa tarde amena em que as cores eram todas acinzentadas, como as roupas e o fumo de algum cigarro. Cena de um qualquer quotidiano dos nossos dias na ilha. Nada tinha de curioso, nem despertava a atenção. Só os de fora, ou estranhos como eu, podem ver de modo diferente. Nada de anormal, apenas o insólito rapaz, descalço e molhado, bem à vontade na esquina do tempo parado. Ninguém se admirava da situação. Somente eu achava um tanto insólito. Ele fazia parte do seu grupo, sabia os sinais e os códigos de quem tem hábitos partilhados e conhece os estereótipos de cada pessoa, ou de cada conversa.
Hoje, andar descalço na rua, é tão invulgar como andar calçado há quarenta anos atrás. Há ainda fotos de solenes procissões em que crianças e alguns adultos vão descalços e com vestes em que se nota bem a sua rústica pobreza, apesar do ar altivo que demonstram.
Se pensarmos no pai do adolescente do fato de mergulho, por certo, será um camponês ou lavrador que vai de carro para o trabalho, mestre-de-obras ou ajudante, e a mãe deve trabalhar em qualquer negócio, ser empregada doméstica, ou estar desocupada e teremos um grupo dentro da banalidade de hoje. Quantos dos seus avós, não tiveram de partir para o Ultramar, com a dor da saudade já a quebrar-lhe o coração, a sua coragem de seguir em frente, mesmo que essa não fosse a "sua" guerra, mesmo que mergulhassem os familiares em profunda consternação durante anos de separação?
As cartas, censuradas, carregadas de nostalgia, raras e tão esperadas, eram um amargo conforto, enquanto, quando o Natal chegava, podia ser, quem sabe? na rádio --- a voz distante repetiria monotonamente palavras que poucas eram e tanto traziam por dentro, dos segundos mal contados. Saudosos pais, queridos irmãos… pois eu estou bem !A tropa! A chamada! O drama e a tragédia que tanta vez se repetiu e parece que se apagou, ou se esqueceu. De vez em quando, ainda se vê passar nas ruas, na figura trágica daqueles que, marcados para sempre por vivências de terror e morte, mostram sinais do indizível terror e trauma que, por vergonha, ou simples rotina, já nem referem ou ousam contar.
Quem escapava das "sortes" e não ia para a tropa ou depois para a guerra, "servir o rei" como ainda se por cá até há pouco se dizia, já trabalhavam duramente e deviam estar prestes a casar.
O sonho de atingir um quinto ano, ou até acabar apenas a quarta classe, era um passo que não podia ser comportado por todas as famílias. Depois os salários eram bem escassos e incertos. Os "homens do canto", aqueles que aguardavam de madrugada serem chamados para um qualquer trabalho por algum agricultor, normalmente a cavar a terra alheia, não eram os do Evangelho nem tinham o primeiro lugar por serem os últimos. Tempos bem duros por trabalhar quase de graça, sem regalias nem segurança. As casas térreas eram comuns e o porco, mais a arribana de milho, eram o mealheiro para os invernos. Seriam pessoas pobres, a viver de forma muito parca, mas sem atingir a miséria total.
Arredores das "Sete Cidades" - ( S. Miguel - Açores )
A rotina e a segurança davam certezas que não se questionavam.
Do Rei à República, ao Estado Novo, às festas e procissões, jornais que surgiam e tinham vida curta, as certezas eram das raízes na terra, dos vizinhos e conhecidos, uma família mais ou menos unida, com parentes mais ricos e pobres. Um dia de amanhã que se esperava ser igual a ontem, como o ano passado foi a este ano. Mais ou menos fartura ou fome, não impediam as certezas, os valores seguros, a solidez de uma sociedade onde as instituições estáveis asseguravam uma serenidade para a vida e para a morte.
A vida era pautada por ritos e festas religiosas, sem grandes sobressaltos, a não ser o medo oculto dos sismos, os "castigos" e tudo decorria dentro de fortes valores morais e pressão social das pequenas terras onde todos se conhecem, mesmo que só vagamente por nomes ou apelidos passados de pais para filhos, por gerações fora. Alguma privação de bens, hoje ditos indispensáveis, nem era muito sentida, pois assim estavam habituados por longas gerações, os recursos para doenças de faltas de alimento eram tratados por meios caseiros e ajuda de amigos.
Um pouco mais recuado no tempo, avós e todos os antepassados também tiveram dificuldades e ainda maior pobreza, com cabanas térreas e cobertas de colmo. Bem perto da cidade, as casas eram pobres e as atividades dividiam-se entre a pesca de um mar caprichoso, ou trabalho de campo em terras de renda.
Rei D. Carlos e D. Amélia
A Ilha, tal como as demais, era pertença a meia dúzia de ricos burgueses e pequena nobreza com arcaicos modos feudais. Os títulos, em geral, eram obtidos por favores e enobreciam os mais hábeis em negócios, ou razões mais políticas que elevavam a burguesia ao nível das raras famílias de títulos mais antigos.
Antigas "cavernas" habitadas ( Porto de Ponta Delgada. S. Miguel - Açores )
Carlos Bettencourt, "Casas tradicionais de São Miguel"
http://www.flickr.com/groups/smiguel_ilha_verde/discuss/72157600933081040/
( Outrora foi a casa de um pobre lavrador, agora são outros os habitantes... )
Foto de festa do Espírito Santo. Benção dos animais
As mulheres da ilha gozaram sempre de privilégios que não eram comuns às suas congéneres das províncias continentais. Usavam a velha galocha de madeira e os trabalhos que tinham limitavam-se às lidas caseiras e pouco mais. Apenas tinham algum trabalho mais árduo pelas colheitas, apanha da uva ou do milho esgalhado para as arribanas do ano inteiro. Os bordados e rendas, em alguns casos, serviram para arredondar contas do rol dos fiados nas mercearias.
Era assim que à vila chegava o barro vindo de Santa Maria para as muitas olarias que outrora polvilhavam a vila de pequenos fornos. Por isso se tornaram tão próximas, Vila do Porto, da ilha vizinha e a Vila Franca. O porto de Santa Maria era bem desprotegido e só a coragem dos barqueiros vilafranquenses venciam as marés altas das tempestuosas invernias que, muitas vezes, isolavam por longas semanas a ilha de Frei Gonçalo Velho.
A escuridão, quebrada pela candeia de azeite ou com óleo de baleia ou de cagarro, rompeu-se cedo pelo pioneirismo de um denodado engenheiro. A eletricidade chegava à vila ainda mais cedo do que à capital lisboeta. As matanças dos pobres cagarros foram terríveis na vizinha ilha de Santa Maria, para ter um fio de luz nas longas noites. Os muitos oleiros tornaram a vila mais perto a ilha de Santa Maria do que a cidade de Ponta Delgada. Os barcos eram muitos, para trocas de barro e mercadorias caseiras ou de pouca monta.
Ceias bem parcas, com muitos caldos e pão de milho porque rareava a carne, a mor das vezes salgada e o peixe comido fresco ou seco ao sol, era o chamado chicharro escalado, assado, cozido e sempre o chicharro.
Marés altas e "invernias"
Antigo fontanário.
( Com imagem de São Miguel Arcanjo e bebedouro de animais. 1863 )
Apenas o toque dos sinos, para as trindades da manhã, do meio-dia e da noite quebrava a monotonia das rotinas, ou ainda as mortes e batizados, as festas religiosas celebradas com mais comoção do que com abundâncias. As ocupações regulavam-se pelas trindades, antes e depois como se fossem ordens ditadas por razões divinas. O medo e o hábito davam longa estabilidade e as mudanças eram tão lentas que tudo se modificava sem que ninguém olhasse muito para as benesses que cada época foi trazendo.
A Revolução de Abril chegou muito atrasada, com manifestações de velhos rancores escondidos e medos renovados. Lentamente, os ventos de revolta pararam num pasmo de abundância, muito bem aceite e aproveitada. Mesmo lá no meio da praça, a representar o poder centralizador da era salazarista, a hirta estátua de Bento de Góis, (1582-1607) de um mau gosto patente e assustador, foi inaugurada em 1962 para assinalar uma época de poder e nacionalismo fortes. Substituía-se assim a anterior estátua que fora inaugurada em 1907 e era de grande beleza, no mármore alvo e bem trabalhado.
Com pompa e circunstância, por entre a solenidade cinzenta e grave, o deputado Armando Cândido da União Nacional, ferrenho salazarista, teceu elogios desmesurados ao monstruoso monumento do pouco feliz Numídico Bessone. Ao tempo que lançava o anátema da decadência e falta de gosto da antiga estátua, bradava alto e forte a favor de uma causa já na decadência. O povo assistia, sem tugir nem mugir, que a época não era para risos ou críticas. Nem o uso de um isqueiro era permitido sem a respetiva licença!
Ali, em novo bloco cinzento, bem direito e hirto, até à arrogância, em nada lembrava o humilde soldado ficou prisioneiro e triste. Bento de Góis. Soldado das Índias, que foi irmão secular da companhia de Santo Inácio de Loyola. A estátua que ainda hoje lá está, é símbolo claro da repressão e do militarismo vigente.
Selo com imagem de Bento de Góis
Carta geográfica. Mares da China.
Pelo que se julga saber, sem certezas senão polémicas, Bento de Góis teve por nome de batismo Luís Gonçalves e entrou para a companhia desses famosos e inteligentes Jesuítas. Tinha então, a Companhia de Jesus uma rede quase global de residências onde o ensino era ministrado. Por outro lado, esses missionários circulavam ligeiros e prestes com novidades de descobertas e novos dados das ciências que espantavam a todos e ainda hoje se admira pela rapidez de propaganda. Tiveram o sonho de procurar o reino cristão que, talvez fosse o de Prestes João ou outro misterioso rei, de que muito se falava nas histórias medievais, insistindo na sua existência na Ásia.
Mais tarde, veio a perceber-se que era, nem mais nem menos, do que o reino do Tibete, com os seus monges e costumes, que assim confundiam os mouros que por lá passavam e viam sinais religiosos que interpretavam como cristãos. Muitas velas acesas, as orações, o centro do altar, o incenso espalhado no ar, mais as muitas flores e formas de estar e de bem agir.
No caso da Praça das Freiras, que nunca se nomeia com o nome correto, a estátua de 1907, tinha sido traçada com certas características de Arte Nova da Belle Époque, com um harmonioso conjunto, de um tanque, bem ornamentado e sobre um belíssimo pedestal com alusões à grandiosa viagem.Toda a ironia está em já haver ali uma bela estátua ao mesmo herói. Aquela era a mais inopinada substituição supérflua tão impressionantemente monolítica, apenas por razões políticas de afirmação de autoridade.
A velha e primitiva estátua do grande explorador, o primeiro a atravessar toda a Ásia, Bento de Góis, inaugura-se pelo seu centenário em 1907 e foi relegada para obscuro canto. Por ironia, o belo pedestal foi desterrado para o escuro do cemitério. Toda a estética do fim do século dezanove celebrava ventos de mudança e progresso, num misto de nostalgia e orgulho pelos tempos dourados das descobertas e dos exploradores em busca de uma globalização que se concretiza agora.
Quem se lembrará disso, ou olhará para o rosto esculpido do explorador tão louco de sonhos e de fé?
As revoluções seguem-se à calma de um dia a dia que tudo apaga. O sangue, mortos e lágrimas, que por aqui passaram, quem os recordará?Este rapazinho pode ser, por todo o passado esquecido, uma pessoa sem que se distinga a classe, com um à vontade a demonstrar que nada o perturba, com liberdade para ser mais um dos muitos desportistas que o mar atrai, como nunca antes nas ilhas, com as diversões ou o gosto pelos desportos náuticos cada vez mais aceso. As lutas, paixões, ideais pereceram há muito num pacifismo amorfo. O pensamento voa baixo por roda de penedos, tubarões e proezas de um dia fugaz, como as tempestades da ilha. Quantos séculos foram precisos para ser possível de se realizar este quotidiano tão banalizado de agora?
As armas e os barões … para onde foram?... E o Adamastor que chora, mais a linda Inês posta em sossego. Batalha de Ourique, Por Santiago! A eles!
Lugar das "Sete Cidades". ( S. Miguel - Açores )
Amanhã, um jogo com milhares de adeptos a espreitar na janela de televisões obedientes e ronronantes. Nem um gato na rua… Um bando de pombas ainda vagueia, sem falta de migalhas. Gordas, quase nem voam as pombas tão novas. Os privilégios deste rapaz vieram bem devagar, por entre mortos e sacrificados esquecidos, lentamente, por muito longas e pacientes gerações de homens e mulheres anónimos que lutaram mais pela sobrevivência do que pela felicidade ou infelicidade.
As palavras! Como envelhecem ou florescem nas árvores feitas livros em bocas que saúdem, tão breves, antes de entender porque se odeiam, se amam ou morrem. Felicidade é a boca cheia de hoje e as barrigas vazias de tantos tempos e lugares.
Diferentes "olhares"
Afinal, no século XVII, Saint - Just espantava-se por surgir essa palavra "felicidade" que também arrastava a infelicidade, novas em França e no Mundo, conforme cita o sociólogo Henri Lefèbvre . Pouco tempo depois, o conceito de progresso vinha juntar-se à felicidade, acompanhado do otimismo que também surgia.
Será que estes conceitos, tão vulgares, guardam o mesmo sentido para a condição humana nos tempos que correm bem ligeiros?
Carpe Diem hoje! O amanhã é tão incerto e a tentação do mar é maior…
Cada vez somos mais complicados e mais simples. Cada vez há mais razões para viver e não se aprende nunca o valor precioso de usufruir da paz. O nosso ambicioso quotidiano quer ultrapassar antinomias entre a "quotidianidade – festividade" com um forte colorido para todos os mais banais acontecimentos serem vividos em festa, sempre a Festa, ou o espetáculo. Isso é algo que jamais apareceu na história. Se a Festa se transformar na Vida, há um mar aberto para todos os sonhos mesmo os mais pequenos.
Sonhar grande é perigoso, atrai grandes quedas. Tudo estará bem se os sonhos forem rasteiros, pequenos, rentes a coisas que se acumulam sem limites senão o desejo.
Lefèbvre via um conflito entre festa e vida, que ultrapassava a antiga ideia do destino, de futuro traçado, mais ou menos seguro. Agora esse novo espírito da festividade pulula por todo o lado, chega a invadir as rotinas com gente que quebra as regras num tempo só de frágeis limites. Numa gare, num centro comercial, ou até nas ruas, alguém desata a cantar ópera, a tocar inopinadas músicas ou a cantar em coros, que querem romper com todas as malhas das rotinas. O resto valerá a pena ?
Livro de Henri Lefèbvre
( Lefèbvre, Henri, A vida quotidiana no Mundo Moderno, 1968, Editora Ulisseia, Lisboa, p. 276 )
Uma inesperada festa com alegria para todos é o último sonho de um rapaz qualquer, este ou outro, tanto faz. Desejo de festa já incutido e semeado nas escolas, pois se quer que se aprenda brincando, quebrando antigos realismos que se revoltam de serem seguidos, para não haver nada para seguir senão a flauta do tocador louco. A festa a repetir-se numa vertigem em que, uma vem prosseguir a outra, torna o trabalho um intervalo e a criação um mito passado.
Carpe Diem?
Ilusão de Tales de Mileto
( © Levi Malho. Porto )
II - RUMORES DO PASSADO
Quantas perguntas, enquanto a Guerra se esquece nos livros fechados. Antes, o intervalo era a paz. O intervalo era a festa. Passará o trabalho a ser o intervalo? Ao longe, as guerras são dos outros. No aeroporto, na praça, na estrada, em trânsito de viagem, chega o desafio do mar e das distâncias.
O método de investigar a história a partir do presente é algo que contraria o nosso pensamento, que coloca sempre o ontem, hoje e amanhã metódica e ordenadamente, tal como se imagina a vida. Apesar de tudo, só no presente tudo acontece e dele, no paradoxo do que não é já ou ainda não é, se escreve, medita, inventa e mente. A memória é traiçoeira. O retrato foi lisonjeiro ou mordaz, a foto será sempre um fragmento petrificado de uma escolha que logo desaparece. Ao olhar um velho retrato, quantas vezes não se tenta ver mais?
Quantas vezes, uma foto não nos envia para um presente já desbotado que tentamos ver no que não ficou gravado e que gostaríamos de recordar? As velhas fotos de família são lamentavelmente inlegendáveis. O menino é o nosso avô, não vemos lá o nosso pai, a mãe é uma criança. Quem é aquele ali à direita? Petrifica-se ingenuamente fragmentos que mal saem do contexto se tornam mentirosos e inventam memórias. A fotografia é uma ilusão de roubo ao tempo. Há sempre um depois que cruelmente se impõe e faz mentir a reinvenção do passado.
Disto tudo, nasce a falsa ideia de que o historiador é profeta pois, de tanto investigar o passado, investe contra o presente, amaldiçoa-o, culpa-o das crises e, conforme o seu temperamento, cria utopias, na sua maioria, pessimistas. Quando o futuro lhe parece risonho, investe a curto prazo num otimismo falhado. A generalidade dos escritos, em todos os tempos, por séculos de gerações, afirma que se vive numa crise, o que pode corresponder à verdade, das árvores abatidas pelos temporais, mas também das clareiras onde se melhor se constrói e vê a luz.
Um historiador é sempre um romancista falhado que esbate as cores dos quadros ou lhes empresta mais brilho, porque tudo tem a marca de quem escreve e de como afirma ou nega, de modo subtil, inconsciente, o que mais ou menos gosta. Jamais se iria escrever que um historiador é um mentiroso mas, esculpir o passado, é escolher o que se considera mais relevante e o que é inútil. Os factos são interpretados e as palavras escolhidas, quer sejam com mil cuidados, ou não. Também é evidente que supõe ser lido no futuro e entendido como profeta que distingue qual é o espírito do seu tempo.
O passado vive no presente, no que realmente tinha força para resistir à mudança e, só se sabe o que morreu e desapareceu, comparando o que vive com o que está definitivamente morto e não foi necessário para a realização do progresso ou nem teve sentido para a maior parte das pessoas. Não é a ciência que pode reverter esta ordem. É bom ter isso em conta e verificar que não é o passado que explica o presente, mas o presente de cada época que nos faz inventar passados, tradições e causas, confusões entre antecedentes…
Epidermes do Tempo
( © Levi Malho. Porto )
O poderoso pensamento hegeliano ao afirmar a razão com a sua astúcia, fará que só o necessário aconteça e arrasa esses possíveis que só a imaginação cria e a realidade esmaga.
A escolha das causas dos acontecimentos depende excessivamente da ideologia do investigador, da sua cultura e educação. Com um diamante de mil faces entre as mãos, cada historiador é um prisioneiro que vai procurar e encontrar as causas e factos que lhe interessam e o justificam. Nem por isso o passado falsamente ressuscitado é o verdadeiro. Se todas as causas e antecedentes se misturam e lutam entre si, entra em linha de conta o que o investigador pensa, estuda, vive e não pode deixar de pesar como investiga e nunca tal qual foi o que já aconteceu. Há sempre muito para desocultar, em desfavor da ocultação.
A história elimina todos os "ses", como se esses não fossem formas possíveis de entender o que realmente acontece no âmago da vida. Afirma o sociólogo Maffesoli que melhor seria escolher viver as vidas na Vida, pois a grande narrativa é uma construção. Agora nem existe já. Só o era quando ainda a Europa se sentia a principal personagem da História. A Vida é pura narrativa, mas hoje com a realidade, o hiper-real, a simulação do real, sem fronteiras, nem possível de definir, nunca a Vida teve nas vidas menos força e menor sentido.
Se, no final, a Vida é a única que resta, a rebeldia e criatividade da quotidianidade é o cerne onde se descobre o pulsar vital da mudança. Esse palpitar da realidade é o oculto para sempre. O historiador é semelhante a Apolo em busca de Dafne que sempre lhe foge quando julga alcançá-la.
Álbum "comemorativo" Açoreano (1903)
A Europa precisa das massas e das multidões, de todos os atores sociais para, no seu agir criativo, imprimir o devir histórico às suas narrativas. Esta multiplicidade tem de desaguar noutra global para onde tudo converge e que tudo abarca. Foi na Europa que se inventou a noção de "História Universal" e onde primeiro surgiu a noção de "Humanidade".
Durante muito tempo, era a narrativa europeia que falava do progresso do mundo e nem era uma narrativa fragmentada, pois tinha o passado controlado. Se a narrativa hoje conta mais com o Oriente, temos de o entender já a ocidentalizar-se. A noção de progresso quebra a circularidade do eterno retorno e inicia uma mentalidade que aceita a evolução histórica.
Rumores na Europa
( © Levi Malho. Porto )
Os historiadores,
nascidos das sombras dos grandes homens e dos seus feitos, contentavam-se em conferir ao passado a sua visão do presente e a ver no futuro a libertação dos nomes e feitos desses grandes senhores que venceriam a lei da morte. Ao invés da terrível utopia de Orwell, em que se sugere que, quem controlasse o passado controlava o presente e quem controlasse o presente controlava o futuro, a invenção do passado é fruto do presente. Estão sempre condenados ao fracasso as previsões do futuro.
O herói de hoje é o celerado de amanhã. Os impérios caem porque têm pés de barro e o poder enlouquece. A adulação, o círculo vazio, a impossibilidade de acompanhar o progresso, as novas ideias dão ao poder uma temporalidade fatídica. Na antiga Roma, o herói, que percorria em triunfo as ruas da cidade, levava um escravo atrás de si para lhe sussurrar, por entre os aplausos da multidão, a trágica frase: "Memento mori".O puzzle que temos em cada presente não é possível nunca de controlar por completo, por muito tempo, nem por todas as formas, nem para todos os significados. Há progresso mesmo quando se fala de estagnação, como é o caso da Idade Média, acusada de ser uma época apenas, de ser uma "fase intermédia" e que foi um bojo de invenções. Do relógio à lente, ou à imprensa, em surdina mas sempre vicejante, o progresso urdia a sua teia.
Conspiração de Cronos
( © Levi Malho. Porto )
Enquanto os regimes totalitários se afirmam progressistas paradoxalmente têm um fundo tão reacionário que, depois de libertados, os povos têm de aprender a viver em liberdade e a entender o que é realmente o progresso. Daí que é no presente que se tecem as malhas do futuro, mas nem os tiranos as podem dominar. Um déspota de ontem é um vencido de amanhã, com mais rapidez do que nos tempos antigos. Raros escapam a uma sentença da história que nunca poupa os mortais dos seus erros. Apenas a propaganda e o domínio da educação dá mais segurança a um regime.!
Investir na educação, dentro de uma ideologia dominante, é continuar uma alienação, quase perfeita. A escola reproduz o social mas a maior parte dos sociólogos não se importa em estudar o fenómeno, tal qual se dá na Coreia do Norte ou na imensa China, que ainda não acordou plenamente. Agora que o eixo de mundo se inclina muito para o Oriente, esse processo de libertação, se bem que lento, não parece ser verdadeiramente reversível. O progresso económico e tecnológico pode trazer sementes de liberdade. As massas ainda estão bem presas a uma ideologia muito bem montada pelas classes dominantes. Todos os sinais de revolta são vigiados, com a maior cautela, por menores que sejam. A aposta da educação é, até agora, o meio mais eficaz para manter e reproduzir um regime totalitário.
A ironia da história está em exemplos de povos escravizados, quando os chineses choram emocionadíssimos por ver içar a sua bandeira, em plena madrugada, na irónica praça de Tiananmen. Enquanto isso, o guarda de vigia, alheio a tudo, boceja monotonamente, a bater os pés no chão com o frio, sem qualquer patriotismo no seu quotidiano, de muito sono e indiferença, e que se conserva alheio ao acontecimento.
Cada historiador chega ao fim da história quando apresenta um quadro inventado do que supõe acontecer com todos os factos e condições, estruturas e consequências. A reconciliação do tempo acontece nos livros de história a cada passo. Mas logo a harmoniosa equilibração se quebra por um conflito que não se esperava ou uma causa que, no tempo dessa historiografia nem era de imaginar.
Quem suporia que um "corso", entrado por um triz no Colégio Militar na França, ganharia no Egito a coroa de França ou acabaria morto na ilha de Santa Helena? Os índios, que avistaram os primeiros colonos ingleses nas suas pradarias, nunca imaginariam que os seus netos fossem intrusos na sua própria terra. O acaso nunca se pode colocar pela janela fora, olhando velhos documentos, quando se estuda o passado. A necessidade de leis, ou regras, como as que fazem a água ao lume ferver, de que modo entram nos acontecimentos? Uma bala perdida ou uma enfermidade infantil, quanto pesam na História?Se o filósofo Hume duvidou de tudo, seriamente ou não, o "se", que coloca na possibilidade o amanhã, faz pensar mais um pouco nas nossas estruturas do pensamento ou, pelo menos, naquelas que insistimos mais em usar. Sem o saber, [1] Kondratov colocou o hábito de Hume em termos de probabilidade. Ao menos sabemos, sem nunca alguém o ter visto, que a água ao lume pode gelar ou uma cadeira voar, aceitando "o milagre de Jeans". A causa e o antecedente são variáveis que, ao analisar a História Universal, a inteligência humana bem pode confundir. Quando o historiador vê demasiado de perto, o seu erro é talvez mais fácil de entender, mas esses grandes homens da história, dos quais se sabem os feitos heroicos, ou trágicos erros, surgem por tantas causas e acasos que só uma visão do presente é o hábito que se tornou lei que nos conduz a toda a explicação do fio, tantas vezes quebrado, das épocas e dos acontecimentos.
Se, de todas as leis, também podem surgir as exceções, não poderá a história ser vista a partir do nosso presente e numa lenta reconstrução do que aconteceu? Partir do perto para o menos próximo, até atingir grandes distâncias, é um meio de não ver a história com causas e consequências. Esta ciência rebela-se contra todas as leis. Sabe-se que a história não se repete, nem as leis se ajustam, apenas o nosso raciocínio assim faz parecer. Até parece estranha a ideia. Contraria o hábito e a lógica do pensar comum mas, por trás disso, há uma outra coerência que dá motivação para entender a história de um modo que nos sintamos a partir de casa, em busca do que fomos com uma curiosidade quase familiar.
Rio da Entropia
( © Lúcia Simas. S. Miguel, Açores )
Inventar o passado é tarefa do presente, mas partir do presente para investigar o que fomos, é recuar prudentemente, mantendo um distanciamento mais objetivo entre os nossos pais, os nossos avós e antepassados mais distantes. Assim se podia inverter o ensino da história.
Em vez de se partir de tempos imemoriais, da Suméria e do Egipto, os seus avós e bisavós dariam uma melhor compreensão das distâncias do passado. Em lugar de originar, em quem aprende, noções erróneas de proximidade, os jovens estudantes perceberiam melhor as gerações passadas. Passariam a terem a noção de que a Revolução Francesa não foi ali mesmo ao virar da esquina, a escrita na Suméria surgiu há um ou dois séculos atrás e o homem das cavernas passeou pelas velhas ruas e dormitaria na Agora de Atenas.
Boas memórias
( © Lúcia Simas. S. Miguel, Açores )
Quando os nossos avós ainda estão carregados de tesouros de lembranças, a ida ao passado arrastaram outras lembranças num afastamento lento do presente. A infeliz criança, que aprende história, olha para os adultos, mesmo os mais jovens, como pessoas de avançada idade e que devem ter conhecido, --- sabe-se lá se não foi assim?, --- o nosso Camões, o rei D Miguel e viram hastear a bandeira republicana, ali em terras de Portugal. Por pouco, qualquer micaelense, dos mais idosos, conversou afavelmente com o bom e religioso Bento de Góis, antes de partir.
Um regresso ao passado que partisse do presente, seria um meio de proporcionar uma noção de história com toda a força da proximidade e do distanciamento de formas de viver e transformações históricas que desembocam na vida de cada um.
III - CICATRIZES DE GUERRA
Capa de publicação
A grande guerra ficou marcada na minha história pessoal por causa dos muitos postais dos mais variados, de paisagens aos ditos alegres, caricaturas ou enfermeiras sempre jovens e gentis.
Esses postais, chegados de longe, lidos e relidos até os saber quase de cor, eram preciosamente guardados e dormitaram por longos anos em álbuns bem guardados pela curiosidade da Infância, que de guerras nada podia entender. Saudades entre irmãos distantes que as imagens ocultam.
Postal familiar
( © Lúcia Simas. S. Miguel, Açores )
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Postal de Paris. ( Campos Elíseos )
(Colecção particular. )
( © Lúcia Simas. S. Miguel, Açores )
Postal de Paris ( Cheias do Sena )
(Colecção particular. )
( © Lúcia Simas. S. Miguel, Açores )
Postais do início do Século XX
(Colecção particular. )
( © Lúcia Simas. S. Miguel, Açores )
Postal do início do Séc. XX
(Colecção particular. )
( © Lúcia Simas. S. Miguel, Açores )
Carregados de lembranças de casa, escritos a aproveitar todo o papel, na frente e verso, sobre rostos e paisagens, os meus dois tios-avós, Tito e Tomé Pires-Coelho escreviam a minha avó, sua única irmã. Ambos eram tenentes do Corpo Médico do Exército e enviavam de França, esses belos postais que nunca contavam nada dos tormentos ou dos combates, mas muito da tristeza, saudade e lamentos contidos de viverem tempos nunca possíveis de imaginar. Natais ausentes, mais mil recomendações, nada expressavam ou narravam do que seria essa realidade vivida da Guerra.
Saudades aumentam. Postal de Natal.1917
(Colecção particular. )
( © Lúcia Simas. S. Miguel, Açores )
Memórias maternas. Postal de França.1917
( Tito e Tomé Pires Coelho não se esquecem da sua sobrinha de 7 anos )
(Colecção particular. )
( © Lúcia Simas. S. Miguel, Açores )
Pelo que me contavam, eram bem jovens e alegres, antes de partirem, ambos médicos, com os cursos acabados de terminar. Foram para Tancos, famoso local na altura, pelo rigor dos treinos que as tropas lá receberam, como se fosse uma profecia do inferno que teriam de enfrentar.
Fala-se de "o milagre de Tancos", tal a rudeza e violência dos preparativos que os nossos militares sofreram antes de partir. Mobilizados no Batalhão Expedicionário Português, lá rumaram para a França e depois embrenharam-se na martirizada Flandres.
Era Bernardino Machado quem então se encontrava na Presidência da República quando, a Alemanha, em 9 de Março de 1916, declara guerra a Portugal. O General Norton de Matos, nosso Ministro da Guerra entre 1915 e 1917, com a colaboração do General Fernando Tamagnini, foi o responsável pela organização desse Corpo Expedicionário Português. A neutralidade portuguesa era dúbia e hesitante. Já antes, no mês de Setembro de 1914, se dera a entrada de Portugal na guerra, porque os perigos começavam a espreitar em África, nas fronteiras das nossas colónias bem cobiçadas pelos alemães.
Embarque para Moçambique
( http://historia-dos-tempos.blogspot.pt/2009/05/fotografias-portugal-na-grande-guerra.html )
Ao invés de sermos atacados na Europa, foi muito mais em Angola e Moçambique que se iniciou o envolvimento do nosso país no conflito que incendiaria o planeta. Portugal não sofreu invasões e apenas os nossos mares deixaram de ser seguros. Mas não foi apenas Portugal a ser assaltado nas suas colónias. Logo no início, outros países foram atacados ou atacaram e a guerra passou a ser global, com intervenção até do Japão, da Indochina e da própria China, que acharam por bem atacar os germânicos, esperando tirar disso bons proveitos.
Gravura de tropas
( http://grandeguerra-marr.blogspot.pt/ )
As forças alemãs, bem equipadas e disciplinadas, infligiram pesadas derrotas aos portugueses, tanto no sul de Angola, como ao norte de Moçambique, locais de fronteira com territórios dominados pelo imperialismo alemão. Na longínqua metrópole, o poder central português estava a braços com problemas graves de conflitos internos socias e políticos. Por outro lado, lá longe e distantes da pátria, as nossas tropas tentavam a muito custo defender-se. O nosso país manteve, por algum tempo, uma posição dividida diante dos acontecimentos. A Inglaterra, a sempre astuta e velha aliada nossa, procurava evitar a entrada de Portugal na grande guerra, mas os interesses que as colónias tinham para Portugal levaram a um envolvimento cada vez maior do nosso país.
Foi depois de muitos ataques às colónias e das derrotas e perdas humanas sofridas, que Portugal entra em cena. É assim que parte para o combate o Corpo Expedicionário Português, (CPE) e se vai envolver no choque dos exércitos na zona da Flandres.
Embarque de portugueses para a Flandres.
( Capa de "Ilustração Portuguesa" )
Portugal continuava com a instabilidade política e muita desorganização interna. Era a prova de uma derrocada económica, que há muito se agravava e mergulhava o país na miséria e instabilidade social. Por entre ações diplomáticas, Afonso Costa e Bernardino Machado foram visitar as nossas tropas, na Flandres, e era tal o estado em que o país se encontrava que, mal regressou, Afonso Costa foi preso. Estava-se a um ano da terrível derrota da batalha de La Lys, onde estiveram presentes esses meus dois tios. Devido à sua profissão deviam estar, se é possível escrever isto, um pouco afastados do perigo, nos hospitais improvisados para os feridos.
Embora se conservassem numa possível retaguarda, nem por isso o risco desaparecia, nem a tragédia seria menos cruenta, com os moribundos, os decepados, os gazeados a cuspir continuamente pedaços de pulmões, numa confusão de ordens, de chegadas inúteis por virem já sem vida, o dilema de ter de escolher quem cuidar primeiro, a pavorosa decisão de perder uma vida, ou nem ganhar nenhuma, dias e noites que não se distinguiam. O estrondo da metralha sempre a soar nos ouvidos, o corpo de enfermagem esgotado, as mãos e o pés hirtos e sem agilidade, a mente a rodopiar mil pensamentos, formas de tratar, a morte a troçar de tudo, mas a repetição da luta de novo, com mais corpos mutilados, horrivelmente desfigurados, quase sem serem já gente, mas olhando, pedindo, murmurando, ou berrando num desespero atroz até faltarem as forças.
Os portugueses, ficaram designados, como todos os soldados das trincheiras, por "poilux", piolhosos, por faltar higiene, pulularem ratazanas, piolhos e pulgas que tanto atormentavam. A designação tem algum desdém ou ironia bem imerecidos, mas assim se denominaram em geral, os soldados da frente, os homens das terríveis trincheiras, em valas que se estendiam por extensões enormes, no que combinou chamar "terra de ninguém" entre os dois inimigos.
As trincheiras! Essas valas de lama e morte que enterraram todo o possível entusiasmo e romantismo com que se podia partir para a guerra. As trincheiras! Onde a morte ceifava, fria e sem piedade, corpos de seres que tentavam sobreviver, permanecendo enterrados em lama, com os ratos, piolhos e todos os males, para além desse odor fétido, quantas vezes, ao lado dos que já tinham morrido, em longo e dolorosíssimo desespero. Ninguém lhes podia valer. Por vezes, a tentação em acabar com o sofrimento, tornava as mãos trémulas, húmidas, desejando um pouco mais de coragem para terminar com tudo aquilo.
Portugueses nas Trincheiras
( Capa de "Ilustração Portuguesa" )
A quantos isto sucedeu e se repetiu? Sem a mínima dignidade, seres humanos permaneciam no lodo, no mais amargo dos estados de espírito, sem saber se estariam vivos ou mortos nos instantes seguintes, durante uma infinidade de horas, de dias de verdadeiro desespero, na loucura da guerra, em que vencidos e vencedores são os mesmos, até os trágicos e loucos papéis estarem assinados e os tratados escritos por gente que tratou dos terríveis acontecimentos fechados em gabinetes. Depois, é o tempo de curar as feridas.
Por um acaso da curiosidade, dentro de uma estante fechada à chave, encontrei uma pequena insígnia, da qual não percebi o significado. Revirei e revirei na mão, a tentar ler as apagadas letras, até entender de que se tratava. Era uma condecoração de guerra. Com o desprendimento de quem é humilde e corajoso, um dos meus tios deixara a sua irmã, minha avó, o que estava entre as minhas mãos e era nada mais anda menos do que uma condecoração esquecida por feitos heroicos na Batalha de La Lys e todas as outras que se travaram ao longo dos anos de guerra. Sempre ouvira falar de La Lys, na infância, mas sem o entendimento adequado para isso. Torna-se muito confuso, passado tanto tempo, recordar esses trágicos tempos!
Diagrama militar de "La Lys"
( http://cambetabangkokmacau.blogspot.pt/2011/04/batalha-de-la-lys-9-de-abril-de-1918.html )
La Lys afinal era bem pouco mais do que uma ribeira, com margens lamacentas, perto de Ipres, na região da Flandres, na Bélgica onde, durante dez longos dias, de 9 até 29 de abril de 1918, os portugueses combateram e foram miseravelmente derrotados, ironicamente, mesmo quase no fim da guerra.
Meus tios estiveram mais de dois anos na guerra e, logo que tinham uma licença, vinham a qualquer localidade, onde a relativa paz devia ser uma bênção, para um breve descanso. Era então que aproveitavam para enviar os tais postais que vinham alegrar a ansiedade de sua mãe, minha bisavó, e sua irmã, minha avó e meu avô, tratado carinhosamente por " compadre"!
Postal de Natal. 1917
(Colecção particular. )
( © Lúcia Simas. S. Miguel, Açores )
Foi deste modo que o tempo passou com essa coleção de postais a aumentar. Depois foram estimados e guardados, em belos álbuns com ilustrações ainda da Belle Époque, carregados de afetos partilhados e ligação de saudade e nostalgia da ilha.
Ver os álbuns era um entretenimento inofensivo dos longos serões infantis. Para uma criança em férias, esses postais de belas terras e cidades desconhecidas, eram uma viagem pela Europa, ironicamente pacífica. Ali só se mostravam os lampejos de tréguas e desejos de paz.
Postal com "Imagens femininas"
(Colecção particular. )
( © Lúcia Simas. S. Miguel, Açores )
O regresso dos meus tios, sãos e salvos, foi a maior alegria para a minha bisavó e toda a família. A guerra fora a maior de todas as loucuras e havia pressa em ver com outros olhos os despojos desse tremendo conflito. Será caso para interrogar, se estariam realmente sãos e salvos, pois a juventude estava perdida, a alegria de estar vivo toldava-se pela sombra das mortes e dos combates, de todos os terríveis episódios que os militares presenciaram.
A Batalha do Lys foi ainda parte da ofensiva alemã da primavera de 1918, comandada por Erich Luderndorff (1865-1937), que foi um acérrimo defensor da guerra submarina e dos ataques aos Estados Unidos. Fora ele ainda quem negociara o tratado com a Rússia, aquando da sua retirada da guerra e tornou esse acordo bem negativo para este país que não podia reagir.
Lenine tinha bem a noção disso, pois declarou que se tratava "de uma paz que era ruinosa mas necessária". Aquele já era um êxito bem amargo, pois, apesar de toda a sua negação para assinar qualquer acordo de paz, Lenine se apercebeu que a guerra estava perdida para os germânicos. O general Luderndorff nunca aceitou a derrota e lutou mesmo quando tudo já parecia esgotado.
Assinatura de "Armistício" de Brest-Litovsk
Notícias nas trincheiras
Em La Lys, após as primeiras investidas bem sucedidas dos alemães, deu-se o encontro com os portugueses.
Ao chegarem à frente, parece que as tropas portuguesas se adaptaram rapidamente à guerra de trincheiras, mostrando grande competência e espírito combativo. No entanto, as condições pioraram ao longo dos dias, sobretudo devido à falta de chegada de reforços que impediam a substituição e descanso das tropas. Esta situação agravava-se pelo tempo frio e húmido, muito diferente do que o que os portugueses estavam habituados. Tudo piorou de tal modo que o Comando do 1º Exército Britânico decidiu a substituição das tropas portuguesas por tropas britânicas, com o objectivo de permitir o seu descanso. O assalto das nove divisões da primeira linha do VI exército alemão, incide diretamente sobre as posições do CEP, Corpo Expedicionário Português.
"O ataque que mais atinge o CEP ocorre a partir das 04:15 com uma fortíssima preparação de artilharia, à qual a artilharia portuguesa responde, embora esteja perante forças alemãs absolutamente superiores." Alguns oficiais portugueses permaneceram no campo de batalha e onde as tropas foram enquadradas e comandadas. Note-se que da parte das nossas tropas foi considerado terem um comportamento exemplar, tendo havido resistência ao inimigo, mesmo com hostes desmoralizadas
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Ofensiva em "La Lys"
Por um acaso, bem prejudicial para os portugueses, a ofensiva alemã coincidiu com o dia previsto para a rendição do CEP, que tinha estado nesse local o dobro do tempo recomendado, e inicia-se o combate que apanha as nossas forças em movimentos e numa localização completamente desfavorável.
Em Nouvelle Chapelle encontraram-se cerca de 50 mil soldados alemães contra apenas uns 20 mil soldados portugueses da segunda divisão, que era comandada pelo General Gomes da Costa (1863-1925), que depois seria o décimo presidente da República Portuguesa. Estes soldados tinham por missão tentar atenuar o impacto fortíssimo da linha da frente, mas nada conseguiram, como seria de esperar, e sofreram avultadas baixas, entre mortos, feridos e desaparecidos
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Recolha de soldados mortos
General Foch
Os alemães, encorajados pelo enorme sucesso, continuaram a avançar, agora contra a divisão britânica, obrigada a enfrentá-los por causa da retirada dos portugueses. Por algum tempo, os ingleses conseguiram fazer parar o avanço alemão nessa área. Mas os ataques continuaram até que o marechal Haig, face à superioridade alemã, pediu urgentemente reforços. Foi a vez do general Foch (1851-1929) ter de avançar em auxílio dos aliados, para um contra ataque.
Tratava-se de um militar que há muito tinha recebido o batismo do combate e estudo das táticas da guerra. Ferdinand Foch descendia de uma velha família de fortes convicções católicas, da região dos Pireneus. Além de já ter entrado na guerra franco prussiana, o que não trazia obrigatoriamente um passaporte bélico glorioso para nenhum francês, escrevera uma obra sobre estratégia militar, publicada em 1906, e proferira diversas conferências na Escola Superior Militar onde, depois aí ter estudado, se veio a tornar um professor prestigiado. Figura emblemática da grande guerra, Foch tornou-se também um militar muito polémico, [2] tanto quanto ao seu temperamento e também pelas estratégias,não se encontrando consenso acerca da sua ação, do seu modo de proceder, nem das suas táticas.
Herzberger, um político alemão, citado por Grimberg descreve, de modo pouco abonatório para Foch, a sua figura: "Um homenzinho de traços duros e enérgicos, habituado a dar ordens." Antes da guerra, tinha um numeroso grupo de amigos de grande relevo intelectual e cultural, contando-se entre eles, Pierre Loti, escritor, a atriz Sarah Bernard, o desenhista e pintor Gustave Doré, o compositor Charles Gounod, e muitos outros. Participara assim da vida parisiense, no aspeto mais culto e brilhante da Belle Époque.
No início dos novos confrontos da grande guerra, Foch era ainda quase um teórico que nunca tinha tido comandado. Encontrava-se agora à frente de um regimento e para mais com manobras de elevada responsabilidade na frente de combate. A alteração da situação que agora já não era a de engendrar estratégias teóricas, nem obediência a ordens recebidas, não se afigura fácil de adaptação da sua parte.Os historiadores acordam em ver, neste general Foch, uma das causas da derrota do plano francês nos primeiros combates do início da guerra. Será arriscado dizer, mas parece que o prestigiado professor de Escola militar recebeu o seu veredito de estratega e este não lhe foi favorável por causa do seu desempenho e resistência às mudanças técnicas e novas ciências militares.
Inesperadamente, foi através da prática que adquiria nova visão das táticas de combate e da qual mais tarde soube tirar partido. A retirada do Marne foi realizada pondo em prática as teorias que ensinara antes, como mestre de história militar e de táticas. A sua tática era de ofensivas, baseada no famoso estratega prussiano Karl Clausewitz e ainda em Napoleão Bonaparte. Durante os primeiros tempos da guerra, teve grande influência nos oficiais franceses. Parece que teve de se modernizar muito rapidamente e de rever as suas estratégias. Um dos seus problemas iniciais tinha muito a ver com a falta de visão face às novas armas de guerra, nem mesmo as enormes possibilidades da aviação ou os carros de assalto, pelo que depois foi criticado.
Antes da sua ação final, que contribuiria para a paz, esteve destacado na Itália pois caiu em desgraça, pelas derrotas sofridas e estar ainda preso aos modelos das teorias de guerra do passado. Porém, mais tarde, já neste final da guerra, iria ganhar grande prestígio que nem todos admitiam. Em 26 de Março de 1918, na Conferência Doullens, Foch recebeu uma tarefa da maior responsabilidade. Teria de coordenar as atividades dos exércitos aliados, formando uma reserva comum, usar essas divisões para guardar a ligação dos exércitos franceses e britânicos e para tapar a lacuna, potencialmente fatal, que teria seguido um avanço alemão no sector britânico Quinto Exército. É bem verdade que, se travou um desafio entre dois colossos desta guerra. Grimberg fala num "duelo entre Foch e Ludendorff".
Marechal Foch
( Ferdinand_Foch_Marcel_Baschet_1925.jpg )
Ludendorff
( http://commons.wikimedia.org/wiki/File: )
http://www.allworldwars.com/Ludendorff Own%20Story
De facto, no final, o general francês redimia-se de muitas das polémicas críticas e dos meios que usara durante este conflito. Mais tarde, Foch recebeu o título de Comandante Supremo dos exércitos aliados com o título Generalíssimo. No dia do armistício, foi eleito para a Academia das Ciências, e logo depois era recebido na Academia Francesa. Também os portugueses lhe deram a 30 de novembro de 1918, a mais alta condecoração, a Ordem Portuguesa da Torre e Espada.
Dirigentes "Aliados"
Os generais recebem medalhas e os heróis morrem nas batalhas. Já após a guerra, o presidente Clémenceau, um grande tribuno, conhecido por "o tigre", que conhecia muito bem os seus militares e a quem nunca deixou rédeas soltas por não confiar no seu discernimento. Foi o êxito da segunda Batalha do Marne que o levou tão alto, mas não se pode atribuir, de modo algum, que discernimento político, dizia ironicamente ao falar dele:
"Ele julga que é Napoleão"
Marechal Foch. Foto da "Life Magazine"
Georges Clémenceau.
( Primeiro-Ministro da França.)
Na altura em que a batalha de La Lys ameaçava os aliados, face à gravidade da situação que piorava cada vez mais, por insistentes pedidos da frente, Foch teve de ceder e entrar em combate.
Tomou essa solução desesperada pois não tinha mais saída. Durante os quatro dias antecedentes à chegada dos reforços, as tropas britânicas estavam numa situação bem precária e o general Haig emitia a sua célebre e desesperada ordem:"Com as costas para a parede, e acreditando na justiça de nossa causa, cada um de nós deve lutar até o fim."
Douglas Haig
( Marechal de Campo Inglês )
Douglas Haig (1861-1928) era muito mais do que um típico militar inglês. Estivera no Sudão, na guerra dos Bóer, na Índia, depois fora adjunto do rei Eduardo da Inglaterra. Desde os primeiros combates dos britânicos em 1915, mostrou determinação segura e iria permanecer na luta até ao fim, como comandante da Força Expedicionária Britânica. Tinha já suficiente entendimento militar para saber que só com a chegada de reforços, o que Foch tentava evitar até ao último momento, não acabariam todos mortos. Enquanto esperavam reforços, foram as arrojadas tropas belgas que mais auxiliaram os ingleses , e que Foch quase deixara abandonados a uma morte certa.
A chegada de reforços aliviou situação de Haig mas, este longo e desgastante combate para ambos os lados, parecia não ter fim. O general Ludendorff resolvera aplicar as táticas que já usara em 1914 com bons resultados. Para os alemães, era bastante frustrante já estarem tão perto de Paris, que o ataque contra os franceses aumentou de intensidade, com esse objetivo tão próximo.
A chegada das tropas americanas deu-se em 1917 e sucede ao mesmo tempo que os russos são forçados a abandonam a guerra. Até então, os Estados Unidos tentaram praticar uma política de isolacionismo, se bem que já tivessem sido atacados no mar. Um cargueiro com trigo para o Reino Unido foi afundado em 1915 e veio precipitar graves acontecimentos internacionais. Anunciava-se a entrada de mais uma grande potência na guerra…Entretanto, os fuzileiros americanos, chegados dos Estados Unidos, eram comandados pelo capitão Lloyd William e conseguiram evitar a passagem dos alemães nas estadas de Reims. O espírito de camaradagem e valentia dos americanos mostraram-se ao longo dos combates, com uma série de frases de encorajamento mútuo que iam fortalecendo o ânimo dos aliados com um alento crescente, agora que circulava a notícia que a Rússia se retirara das lutas. Se bem o feito tivesse resultados de pouca monta, isso veio encorajar os outros combatentes. Nessa altura, os franceses resolveram recuar e isso foi transmitido ao capitão Lloyd William, mas a sua corajosa resposta ficou lendariamente célebre nas narrativas dos fuzileiros americanos:
"Recuar? Raios! Agora que acabamos de chegar!"
Sem ser grande o seu contributo, ainda assim conseguiram uma posição em Belleau Wood e a sua coragem espantou os aliados. Entre o Corpo Expedicionário Americano, vinha um soldado rude e violento, Alvin Cullum York, que há pouco se convertera à religião e considerava a guerra moralmente proibida. Nada levava a pensar que se tornaria no mítico "sargento York", tal a bravura e destreza que manifestou na guerra. Tinha 31 anos na altura e não passava na sua terra, Tennessee, de um pobre camponês mas de pontaria notável. Incorporado, quase à força, teve um comportamento que deixou uma lenda de herói. Após a morte dos seus comandantes, teve de assumir o comando do seu destacamento e teve por missão, durante a Batalha do Rio Meuse, [3] acabar com os ninhos de metralhadoras alemãs que dizimavam os americanos. Face à ordem recebida, avançou só com sete homens, armado apenas com sua espingarda e a sua pistola, eliminando com sua pontaria certeira, posição após posição inimiga. A unidade rendeu-se a York, após uma luta desigual entre o americano e os seus companheiros. Acabaram por destruir 35 ninhos de metralhadoras e trouxeram mais de uma centena de prisioneiros. Ao fim de sua ação, York e seus sete homens haviam silenciado 35 ninhos de metralhadoras e marcharam de volta com 132 prisioneiros alemães e do regimento prussiano. A França, a Itália, o Montenegro e naturalmente os EUA, condecoraram-no com as maiores distinções.
Sargento York
(Corpo Expedicionário Americano )
Passaram-se longos dias em ansiedade crescente, pois não se vislumbrava sinais de resultados, se bem que o triunfo dos alemães fosse cada vez mais seguro. Essa foi uma amarga vitória dos alemães e as vantagens da batalha de Lys, foram as últimas que os alemães fizeram na Grande Guerra. Por todo o lado, cada vez se tornavam mais visíveis, os sinais do esgotamento da Alemanha. A maior ofensiva dos britânicos, nesse conflito, foi sem dúvida conseguir quebrar a linha Hindenburg, constituída por trincheiras e fortificações numa grande extensão, no nordeste da França, com o terrível arame farpado e construções que eram consideradas intransponíveis. À frente, a cerca de um quilómetro de distância, instalaram mais defesas de vigia e ocuparam aldeias e lugarejos como pontos de apoio. Era uma prova para ambos os lados, pois se jogavam todas as estratégias para táticas que resultassem em êxito.
Com a chamada "Ofensiva dos 100 Dias", canadenses, australianos e neozelandeses, lutaram ao lado dos britânicos. Esta linha foi planeada por Paul von Hindenburg e Erich Ludendorff, os quais se encontravam juntos à frente do esforço de guerra alemão, em agosto de 1916, já no fim da batalha de Somme. Estendia-se de Lens até Verdun, com uma extensão de terras devastadas pela tática alemã terra queimada. [4]
Douglas Haig
Depois da guerra e já de regresso à sua ilha, Haig recebeu o título de Lord e mais tarde tornava-se no primeiro Conde Haig. Foi então que fez grandes tentativas para não abandonar e deixar para trás esses soldados que tinham combatido sob a sua chefia. Defendeu a sua situação e o regresso às suas terras pois tornara-se no Comandante do Exército em Inglaterra até ao ano de 1920, e só nessa altura é que se aposentou. Foi um lutador corajoso na guerra e na paz, agora pelos direitos dos soldados e veteranos em todas as partes do Império Britânico.
Haig tinha o terrível apelido de "Açougueiro", pois era implacável no ataque e foi o responsável pelas muitas mortes das tropas nas frentes de combate. Nem por isso deixou de ser Marechal de Campo em 1917, e recebeu diversas condecorações inglesas como a Honra ao Mérito e a Ordem do Cardo-Selvagem.
General John Pershing, dos Estados Unidos, que passou a ter o nome popular de Black Jack, considerou-o 'O homem que venceu a Guerra'. [5] O exagero é grande e bem longe das tropas que sofrem e lutam nos embates. Apenas se explica pelo velho hábito de ver as vitórias do cimo da pirâmide e não das suas bases, onde verdadeiramente os acontecimentos assentam e por eles se constroem. Apesar de ser a contra gosto do ministro Lloyd George, que muito antipatizava com Haig, foi reconhecido como um grande general que revolucionou as táticas militares, ajudou a vencer a guerra e se mostrou um herói autêntico.
Ainda assim, o clemente auxílio que procurou prestar às tropas e aos veteranos que regressavam, é talvez o que há de mais humanitário em Haig e, por isso, o que mais o enobrece. Cuidar desses que sofrerem, por vezes, sob o seu comando, era um ato de gratidão porque ninguém ganha títulos e honras sozinho. A tremenda luta custou bem caro aos alemães em termos de homens perdidos. A chegada de milhares de soldados norte-americanos impulsionou os aliados e os alemães perderam 120 mil homens, entre mortos, feridos ou desaparecidos. [6]
Infelizmente foi esta batalha que mais marcou a participação de Portugal na Primeira Guerra Mundial, com tão malfadado resultado. Pela última vez, os exércitos alemães infligiam uma estrondosa derrota às tropas aliadas. Entre os vencidos encontravam-se as tropas portugueses. Segundo consta, mais por tradição do que certezas, foi a maior catástrofe militar portuguesa depois da batalha de Alcácer-Quibir, em 1578. [7]
Quantos açorianos estariam lá, para além dos meus tios? Quantos morreram, desapareceram ou ficaram prisioneiros?
A situação política e social em Portugal era tão miserável que, mesmo após a assinatura do Armistício, o Estado português não tinha possibilidades financeiras para trazer de volta os seus militares. Esta é uma das acusações que se fez ao sidonismo, essa incúria cruel e injusta de ter abandonado à sua sorte, em França, os nossos heroicos expedicionários.
IV - LITERATURA E A INVENÇÃO DO HORROR
Henri Barbusse. Escritor francês.
Sem disfarçar, Henri Barbusse muito admirado pelo historiador Carl Grimberg, escreveu, ainda no hospital de campanha, e mostra a solidão de soldados enviados para matar, sem saberem bem porque estavam ali, nem sabiam quem eram os poderosos que enviavam para a morte gerações inteiras, que nunca mais veriam as suas famílias, a sua terra, perdendo a juventude que lhes era arrebatada. Este é o narrador dos desgraçados, dos abandonados e que viveram e sentiram nas suas entranhas o medo e a dor, unidos num destino comum. Mesmo os mais diferentes, eram todos iguais, o que os unia era essa força e esse estranho fenómeno da condição humana, igual no nascer e no morrer.
A nossa idade? Nós somos de todas as idades. O nosso regimento é um regimento de reservas com reforços sucessivamente renovados, em parte com o ativo, em parte com o destacamento. Fouillade tem quarenta anos. Blaire poderia ser o pai de Biquet, que veio de outra secção, Marthereau Corporal é chamado o "avô" ou "lixo velho", quando se está a brincar ou a falar a sério. Mesnil Joseph estaria no quartel, se não fosse guerra. Dá-se um efeito cómico quando somos comandados pelo nosso sargento, um simpático rapazinho, com um ligeiro bigode de cor sobre o lábio que, ainda num dia destes, saltava à corda na caserna com crianças. No nosso diversificado nosso grupo, nesta família sem família, neste lar sem lar, onde nos agrupamos, lado a lado, há três gerações, para viver, esperando, paradas, como estátuas disformes, como que abandonadas.
As nossas raças? Somos de todas as raças. Nós viemos de todos os lugares. Pelo que toca a mim, os homens ao meu lado são Poterloo, o mineiro, rosado, com as sobrancelhas de um amarelo palha, com os olhos azuis da cor do linho. Foi preciso muito procurar para encontrar um capacete para a sua grande cabeça dourada, (…). Os meus dois vizinhos diferem na verdade, como o
dia da noite. E não menos importante, Cocoon, de corpo franzino, óculos, com a tez quimicamente corroída pelos miasmas das grandes cidades, contrasta com Biquet, um bretão, de pele cinzenta, com maxilares fortes, e Andre Mesnil, o simpático farmacêutico da subprefeitura, ou Norman, com a sua bela barba muito fina, que tão bem fala e tem tão pouco a ver com gordo camponês,
Lamuse, de bochechas e anafado pescoço. (…) Os nossos empregos? Um pouco de tudo. Suprimidos agora que passou o tempo em que havia uma condição social, antes de se virem enterrar aqui
(…) Sim, sim, somos muito diferentes entre nós, profundamente. Mas ainda somos iguais. [1916 ]
Assalto ao "Chemin des Dames". 1917
( Luc-Albert Moreau - 1882-1948. Musée d' Histoire Contemporaine; Paris)
A frase, "ainda somos todos iguais", vem lembrar a igualdade da condição humana que os unia, com as sombras da morte e a incerteza aterradora, capaz de os mergulhar na mais terrível angústia. Até mesmo os que voltassem, já não eram os mesmos. Quem pode ser completamente feliz depois de ter olhado para os olhos do Mal? Muito tempo depois, uma gargalhada soa, logo é interrompida por um pensamento implacavelmente tenebroso de dias que jamais se poderiam sepultar na mente…
A alegria da sua juventude ficaria enterrada nessas valas de morte. Depois de ver tudo o que viram, nunca mais seriam rapazes alegres e despreocupados. Transformar-se-iam em velhos, esses que teriam a sorte, ou o azar, de voltarem. Por vezes, seria bem melhor nem voltar. Como se pode voltar a casa, depois de ver a morte? Ou quando só se é um farrapo, um triste estropiado? A vida que sentido poderia ter de novo? Como conversar, ter horários e trabalhos, uma vida como os outros, se a vida lhes era ali roubada?
É certo que, nos Açores, se ignorava quase tudo sobre os graves acontecimentos passados no continente europeu. Mas a situação era totalmente outra e também totalmente nova. Havia o telégrafo, a rapidez das notícias, os muitos jornais que depressa trariam as más notícias. Esta foi a primeira guerra que podia ser seguida quase ao minuto pelos comandos da retaguarda. A primeira guerra que as populações podiam acompanhar, com grande rapidez e dados concretos. Era uma era nova e a ciência tinha já muitos meios como nunca antes pudera ter. Assim, para a maior parte do público geral e qualquer pessoa em particular, havia a possibilidade de saber muito acerca do que se passava na frente e todos os factos inopinados, as emboscadas, ou atrocidades que aconteciam.
De repente, houve uma mudança muito forte no ânimo dos ingleses, na sua ilha. Puderam passar a saber tudo o que se passava nas frentes e o resultado é que ficaram aterrados, quando souberam o que se passava na frente. Também os franceses não podiam deixar de ficar terrivelmente abalados com as realidades dos jornais, que nem sequer eram pessimistas para não abalar o ânimo, mas com a possibilidade de filmar e ver ou de ler o que Barbusse transmitiu nas páginas da sua obra-prima "Le feu", publicada ainda em plena guerra.
Do lado alemão, o desânimo apodera-se das tropas que se apercebiam que não iriam ganhar a guerra. Extenuados, mostram um comportamento extremamente preocupante para os seus comandantes, algumas unidades da frente fugiram dos combates, não defrontaram o inimigo, nem ofereciam grande resistência e assim um grupo de 15 mil ficou prisioneiro. A batalha de Amiens, com tropas australianas, com o australiano John Monash (1865-1931) no comando, traz a primeira vitória da guerra para o exército britânico, nessa fase da batalha.
Quando tal notícia chegou ao General Ludendorff, então já Chefe do Estado-Maior, este declarou que o dia 8 de agosto de 1918 era o "dia negro do exército alemão." A situação agrava-se ainda mais para os alemães. No dia seguinte, muitos outros soldados foram feitos prisioneiros. A grande perícia de Monash neste combate foi a de perceber a necessidade de coordenar a infantaria, com os aviões, a artilharia e os tanques. Acerca da infantaria, Monash deixou um depoimento bem humano:
(…) o verdadeiro papel de infantaria não estava em desgastar-se com o esforço físico heroico, nem a definhar sob o fogo de metralhadora impiedosa, para não se enfiar nas baionetas hostis, nem a despedaçar em pedaços [ como tinha acontecido nas batalhas anteriores] mas, pelo contrário, avançar sob a proteção da Infantaria australiana, com o máximo possível de recursos mecânicos, sob a forma de armas, metralhadoras, tanques, morteiros e aviões, com antecedência e como impedimento mínimo possível de perdas, para se libertar, tanto quanto possível, da obrigação de lutar no caminho para a frente; a marchar, resolutamente, independentemente do barulho e tumulto da batalha, com o objetivo determinado, e lá para segurar e defender o território adquirido; e reunir sob a forma de prisioneiros, armas e zonas, os frutos da vitória." [8]O exército francês obriga os alemães a abandonar a cidade de Montdidier, que estava ocupada e permite a reabertura da linha ferroviária de Amiens-Paris. A resistência crescente dos alemães em 12 de Agosto, encontrou uma ofensiva que abalou as suas forças. Apesar de vencedores, esta foi uma das mais dolorosas vitórias dos alemães. As baixas alemãs somaram 40.000 mortos, feridos e 33.000 prisioneiros. As perdas francesas e britânicas totalizaram 46.000 soldados. O uso de armas químicas veio a ser um dos mais terríveis aspetos desta guerra. Não era uma novidade, já era conhecido na Antiguidade e já se usara na época medieval, mas agora ia tornar-se numa das mais horrendas das formas de ataque.
Uma das corajosas testemunhas, a enfermeira inglesa Vera Brittain, deixou um depoimento amaríssimo e pungente de quem se sentia impotente para ajudar a diminuir o sofrimento dos combatentes, atingidos pelo gás."Eu gostaria que uma dessas pessoas, que dizem querer levar a guerra até suas consequências finais, visse os soldados envenenados pelo gás de mostarda. Grandes bolhas cor de mostarda, cegos, todos eles agarrando-se uns aos outros, a lutar desesperadamente para respirar, com vozes que são um sussurro, a dizer que a garganta deles está se está a fechar e que vão sufocar-se."
Ferido de Guerra
( http://www.deadlybirds.com.br/deadlybirds_blg/2009/03/armas-quimicas-na-grande-guerra/ )
Foi um dos crimes mais terríveis contra a Humanidade que ocorreu nesta guerra. Pela primeira vez na história, usaram armas químicas contra os inimigos. Não se sabe ao certo quem as usou primeiro. Quando os alemães disparam gás venenoso sobre as posições aliadas, o horror foi total com um pânico sem nome. Os soldados atingidos, trémulos, desajeitados, tentavam colocar, apressada e nervosamente, as máscaras de gás, já a sentir os pulmões em fogo e a tentar recuar
.
Utilização do "Gás de Mostarda"
Do outro lado, o vento, oscilante na direção, voltou-se contra os atiradores e assim, à impiedade do simples arbítrio do vento não escaparam os próprios alemães, que tão atordoados ficaram que nem disso conseguiram tirar partido. A ideia de um ser humano criar uma tal arma e de outro a usar, tem tudo a ver com teses e teorias.
O sofrimento pavoroso que isso causou em tantos jovens inocentes, que nada sabiam de guerras e estavam bem alheios de suas causas, é que não se pode calcular. Apesar disso, tanto as armas químicas como a proteção contra elas não pararam de se desenvolver durante o conflito.
Soldados em fuga à "nuvem de gás"
( http://maragon31.wordpress.com/2011/ )
Até os animais !!!
( http://hid0141.blogspot.pt/2011/01/primeira-guerra-mundial- )
Os alemães começaram a atacar de novo com gases e os aliados criaram novas proteções para poderem respirar, passando dos panos para os capacetes. Todavia há que pensar que as mudanças do vento não podiam ser previstas e os ataques nem sempre eram bem sucedidos, os próprios atacantes atingidos, o que tornava infernal o local das batalhas. Estima-se que o número de mortos ou feridos por agentes químicos tenha chegado a mais de um milhão no fim desta guerra, ironicamente, a Guerra que iria acabar com todas as guerras.
Em termos técnicos, o gás venenoso era uma arma terrível e eficaz ao ataque das trincheiras. Os soldados eram atingidos sem se poderem mover ou resistir. Estavam prisioneiros nas valas das trincheiras cavadas para a sua sepultura, no lodo e na lama fétida das chuvas e detritos de toda a espécie. Pode afirmar-se que era razão para dizer que esta guerra fez enlouquecer o mundo. Por mera curiosidade, sabe-se que o cabo austríaco, Hitler, foi também gazeado nesse combates. Vale a pena recordar o testemunho de uma das vítimas o poeta inglês Wilfred Owen, ironicamente morto, pouco antes do fim deste inferno. O seu testemunho ficou registado no famoso poema "Dulce et decorum est" (1917): [9]( Apesar ser uma tradução que não satisfaz as exigências de uma estética mais apurada, os versos valem pelo seu trágico conteúdo.)
Entre nuvens de gás
( http://maragon31.wordpress.com/2011/ )
Totalmente encurvados como se fossem velhos mendigos em fila, joelhos dobrados, tossindo como bruxas, andávamos sobre a maldita lama/ Até o momento em que os insistentes sinalizadores nos fizessem voltar/ Então, na distância que nos restava percorrer, começamos a arrastar-nos/ Alguns marchavam tontos de sono.
Muitos deles haviam perdido suas botas, coxeando, com os sapatos ensanguentados/ Todos estavam estropiados, todos cegos: Bêbedos de fadiga, surdos mesmo aos alarmes de que um cartucho de gás estourara ali perto.
Gás! Gás!
Rápido, rapazes! Num êxtase mal ajeitado, todos tentam colocar a máscara ainda a tempo. Mas alguém continuava a gritar alto e tropeçando, como um homem em meio ao fogo ou a lama
./ Confuso, como se estive metido numa densa e enevoada vidraça de luz verde, como se estivesse num mar verde, vi-o afogar-se/
Em todo os sonhos que tive depois dessa desprotegida cena, ele aparecia precipitando-se sobre mim, derretendo-se, sufocado, afogado/
Não sei se, com esses enfumaçados sonhos, também alguém conseguirá ter paz. Atrás da carruagem para onde o atirámos, observei o branco dos seus olhos convulsionando-se no seu rosto/ A sua cara de enforcado, como se fosse um diabo vomitado pelo pecado/ podia-se escutar, a cada solavanco, o sangue saindo, em espasmos, dos seus pulmões corrompidos/ Impudente como um cancro, amargo como fel. Quão vil e incuravelmente inflamado em línguas inocentes/ Meu amigo, não queira este tipo de prazer elevado/ Tão ardentemente infantil em querer alcançar tal glória desesperada/
É uma velha mentira: Dulce et decorum est pro patria mori
"Quão doce e honrado é morrer pela pátria!" [tradução do latim]
Heróis esquecidos. Os cavalos!!
( http://hid0141.blogspot.pt/2011/01/primeira-guerra-mundial )
Entrada para as Trincheiras
Espera nas trincheiras
V - CAMPO DE MEMÓRIAS. O CORPO EXPEDICIONÁRIO PORTUGUÊS.
As trincheiras foram o inferno para quem por lá passou. A guerra, que
seria rápida e com códigos de honra, que se acreditavam nunca morrer,
tornava uma monstruosa visão do mal na sua mais hedionda face. Os
principais visados pelo ataque do gás, em La Lys, foram duas divisões
francesas constituídas essencialmente por tropas coloniais argelinas,
que perante o ataque foram acometidas de total pânico.
Pobres portugueses, numa guerra tão afastada dos seus
familiares e terras de seu país, arrastados por alianças que nada lhes
diziam, jogos de interesses, sonhos otimistas e bem ilusórios de que
essa era a guerra final. Nesses dias enfrentaram o inferno! A iminente
derrota da batalha levou a que se sucedessem motins na frente, tanto
mais que não se sentiam bem comandados. Os motins sucederam como já
antes tinham acontecido dos dois lados das forças combatentes. Também os
houve entre os portugueses.
Sem poderem fazer frente
ao inimigo, ainda houve alguns focos de resistência portuguesa mas, sem
poder ter ligação efetiva entre si, e isso só mostrou a bravura das
tropas. Um grande número de homens ficou prisioneiro das forças alemãs
que se apresentaram pela sua retaguarda.
Durante o fim da manhã desse fatídico
dia 9, as linhas portuguesas foram completamente ultrapassadas pelo
inimigo, que contava com uma superioridade numérica superior a 1 para
10, em alguns sectores. A derrocada das linhas portuguesas, não foi no
entanto muito diferente da que tinha ocorrido com os britânicos em 21 de
Março, onde durante as primeiras horas após a violenta barragem de
artilharia, se renderam aos milhares. Parte das forças portuguesas no
sector sul lutaram juntamente com as forças britânicas da 50ª divisão,
que consegue suster o avanço inglês no lado oposto. É nesse sector que
ocorreram casos isolados de grande bravura de alguns militares
portugueses que insistiram em continuar a lutar, mas a sua importância
para o resultado da batalha não foi relevante.
Aníbal Midões. o "Milhões"
Soldado Português.
(
http://www.geocities.ws/atoleiros/Grandeguerra )
Ficou célebre
o chamado soldado Aníbal Midões,[10] um camponês transmontano, o
mais condecorado dos portugueses na Grande Guerra, cujo nome completo
era Aníbal Augusto Milhais que, com a maior coragem, mesmo com os
camaradas a tombar à sua volta, moveu corajosamente a sua metralhadora,
que para os portugueses tinha o apelido de Luísa, (Lewis) e, sozinho,
enfrentou as forças alemãs que avançavam. Foi o humilde Midões que, com
o seu desassombro e ânimo, possibilitou a retirada de muitos soldados
portugueses e também de alguns ingleses. O número de soldados que
salvou nunca se saberá.
A mudança do nome colou-se à sua figura porque quando chegou
ao acampamento, o seu comandante Ferreira do Amaral, muito emocionado
com tamanha valentia, teria dito:
"Chamas-te Midões, mas vales Milhões".
Desde
então o nome propagou-se e assim o chamavam. Curiosamente, não foi em
Portugal, mas ainda no próprio campo de batalha, que recebeu a mais alta
das honras nacionais, a Ordem Militar da Torre e Espada, que é concedida
por Valor, Lealdade e Mérito.
A vaguear sozinho pelas trincheiras e campos, Milhões "continuara
ainda a fazer fogo esporádico, para o qual se valeu de cunhetes de balas
que foi encontrado pelo caminho. Quatro dias depois do início da
batalha, encontrou um médico escocês, prestes a morrer afogado num
pântano. Salvou ainda mais uma vida! Foi este médico, para sempre
reconhecido ao destemido português a quem devia a salvação, que deu
conta ao exército aliado dos feitos do soldado transmontano."
[11]
Julga-se que os alemães terão imaginado que, em vez de um
simples camponês sozinho, soldado raso, enfrentavam um fortíssimo
regimento de portugueses e ingleses pois no seu vaguear, atirava de
diversos pontos sem se pudesse precisar o local onde se encontrava.
Retornado à sua terra natal, pobre e sem recursos, nem
quaisquer ajudas do Estado, acabou por emigrar para o Brasil em 1928. Os
portugueses emigrantes desse país, quando souberam de tal facto, ficaram
indignados e revoltados com a falta de gratidão do nosso país,
vociferando contra a pátria madrasta, e reuniram-se para não o deixarem
trabalhar. Conseguiram ainda juntar uma quantia para que pudesse voltar
à sua terra e à sua família, começando uma vida melhor. Mais tarde, o
Estado concedeu-lhe uma pequena pensão e a família, orgulhosa do seu
antepassado, mudou o seu nome de Milhais para Milhões. Existe no Porto
uma exposição permanente no Museu Militar, em sua memória.
O nosso grande dramaturgo e escritor Júlio Dantas, representante de uma
época, escreveu sobre o caso num dos seus livros "O Heroísmo. A
Elegância. O Amor":
"É o soldado Milhões, do 15 de Tomar, figura
de bravo, coberta de bênçãos e de rosas que, em Ferme du Bois – ele,
apenas com a sua metralhadora ---, protegeu a retirada de um Batalhão
inteiro de Infantaria escocesa, e o salvou, sem se perder um homem."
É óbvio o exagero literário, mas convém recordar mais
um ato de coragem de um valente português. O nosso país sentiu bem as
consequências de uma guerra que alastrava por vários continentes,
já que tínhamos colónias nas sete partidas do mundo.
A parte final da reação dos aliados
foi a operação "Georgete", em que os alemães sofreram uma pesada
derrota. Mas isso não altera em nada o horror desta guerra. Vencidos ou
vencedores, mortos são o penhor desta guerra e nada apaga o horror
implacável sofrido pelos dois lados. Este é um depoimento, um grito de
dor e de interrogações por morte sem sentido:
"Na pradaria avança uma companhia de atiradores... os homens dobrados em dois com a mochila nas costas e a arma nas mãos, correm pesadamente para se atirarem ao chão e seguir ao primeiro sinal. Um deles pára próximo a mim, sua cara de camponês repentinamente transforma-se numa careta dolorosa e, continuando a correr, levanta o braço em cujo extremo está pendente a mão esfacelada com os dedos cortados pela metade, efeito de uma bala... os homens jogam-se ao solo... o soldado continua dando saltos e ainda escuto seus gritos: "Meu tenente, meu tenente, aonde estás?." [12]
O facto das tropas britânicas terem aceitado ficar sob comando
coordenado dos franceses, permitiu aos aliados estruturar de forma mais
eficaz as suas forças, com unidades francesas a substituírem as forças
britânicas nas primeiras linhas. Para além da forte reação dos aliados
foi decisiva a falta de meios motorizados e de transporte eficientes
para suportar e apoiar o avanço das tropas, o que foi uma constante
alemã em toda a guerra.
Mais um fator se veio juntar a estes, que justifica o
insucesso alemão, as suas forças, apesar de muito numerosas, eram na
maior parte, as chamadas "tropas de trincheira", menos preparadas
de que as unidades de elite que os alemães tinham utilizado na operação
anterior, chamada "Michael", cerca de duas semanas antes. Outro fator,
desfavorável para os alemães, era o estado do solo. Devido às muitas
chuvas na proximidade da ribeira de La Lys, o solo estava ensopado de
água e se isso favorecia as posições defensivas dos Aliados, tornava
para os que se encontravam metidos nas valas uma tortura, de lama,
urina, moribundos, a terra a sufocar as bocas, os pés sangrando no
fétido lodo, tendo ainda possibilidades de contar com os ninhos de
metralhadoras que varriam de um lado e do outro, agora bem mais do lado
dos aliados, com os alemães a ganhar terreno.
Os britânicos, comandados por Haig, ao aceitaram ficar sob
comando coordenado dos franceses, deram novo alento e mais disciplina
aos aliados, o que permitiu coordenar de forma mais eficiente as suas
forças, com unidades francesas a substituírem as forças britânicas já
extenuadas e dizimadas nas primeiras linhas. Alguns dias depois, os
soldados alemães recuaram ainda mais, pois chegam outras unidades do
exército britânico que vieram reforçar as posições mais fracas, com
tropas francesas a sul e belgas a norte. O general alemão Ludendorff
tentava ainda uma luta [13] em que já poucos acreditavam e menos ainda
entendiam.
É estranho que tudo se silenciou e
agora só haja aquele tão pequeno símbolo de coragem de uma tão terrível
carnificina. Como ficou aquela condecoração assim perdida, aparentemente
sem valor, por entre jarrinhas de porcelana, flores de cera e outras
recordações já perdidas de minha falecida avó? Os seus dois irmãos na
guerra marcavam uma ameaça de morte constante e estavam distantes, mas
sempre próximos pelo pensamento e pelos postais. O regresso deles devia
ter feito com que nada mais importasse do que as vidas salvas e a enorme
alegria de os ver regressar a são e salvo, sem mais perdas, a não ser uma
certa juventude desaparecida nas trevas de uma guerra que os marcou para
sempre.
Afinal, de repente, recordei que se falara de terem operado,
em condições bem precárias e arriscadíssimas, em hospital improvisado e
montado no campo, os feridos que chegavam em grande número e sem parar.
Recordei ainda que contavam como tudo estremecia com o rebentar das
bombas, pois estavam quase junto à frente dos conflitos e combates que se
travavam violentamente.
Os feridos
A
relíquia quase esquecida que pude recordar, remete para tempos olvidados,
mas tão graves que marcaram a vida de milhões de seres humanos.
Impressiona, para todo o sempre, pensar no som e estremecimentos da
artilharia bem perto que os meus tios sentiam e que contaram a viva voz
a sua Irmã, minha Avó, então uma jovem senhora.
Na
altura, o estado de espírito dos portugueses na Flandres era de tão alto
desânimo, que muitos oficiais voltaram a Portugal. Entre os aliados, o
sentimento da derrota iminente levou alguns dos nossos soldados a
deserções e suicídios. Porém, disso os meus tios nunca falavam. Para
minha mãe, sua sobrinha, uma criança, com pouco mais que sete anos,
vieram brinquedos de França, belas bonecas de rosto inexpressivo, de
fina porcelana e de olhos azuis com longas pestanas, ricamente vestidas,
tão parisienses e aristocratas, que sedas e cetins eram o seu trajar,
botinhas de pelica, chapéu com flores. Ainda vi as velhas caixas onde
dormiam de olhos fechados pois a maravilha das maravilhas, era abrirem e
fecharem os olhos, muito azuis, sempre com um ar ausente como se
esperassem um regresso ao seu país natal.
Bonecas da Época da Grande Guerra
Entendendo melhor agora os factos e tragédias passadas, talvez fosse
essa a causa que levou meu tio mais velho, Tomé Pires Coelho, (1890 -
1958) [ 14 ] o que recebeu a condecoração, e enveredou pela política autonómica
dos Açores, a emigrar com a jovem esposa para os Estados Unidos da
América. Tomou
mesmo uma posição francamente independentista, acerca das nossas ilhas,
que ficou assinalada em obras do autonomista Dr. Melo Bento.
De toda
essa tragédia, há uma experiência do Corpo Expedicionário Português no
campo de batalha que ficou registada em publicação. As palavras são
sempre incapazes de representar uma imagem que descreva o horror desses
dias! Estas
são ingénuas lembranças de retalhos da saudade dos dois irmãos, mas que
pouparam o mais que podiam à família, o que sofriam e as suas notícias
vinham, sem o horror da guerra, nem as histórias de um terrível passado
que alterou todo o planeta, bem se pode dizer.
A
conflagração que seria rápida e eficaz, alastrou como fogo incendiando o
mundo inteiro. Os Açores não ficaram isentos de ataques dos alemães e, a
atestar o facto, ficou o quadro do pintor regionalista Domingos Rebelo,
da Calheta de Pero Botelho com seu pequeno porto piscatório, que já não
existe, e Ermida que domina a cidade do alto da Mãe de Deus, em Ponta
Delgada, se encontra coberta de modo a camuflar a sua existência no
monte.
Domingos Rebelo - "Calheta de Pero Botelho"
No alto,
oculta-se a ermida que está em risco de ser atingida por um submarino
alemão. Nos nossos mares, rondavam os submarinos alemães e, a qualquer
momento, temia-se o pior. A Grã-Bretanha já há muito tempo tinha os
olhos nas ilhas dos Açores e receava o perigo de serem usadas pelos
alemães, por causa dos cabos submarinos, ou da vinda de vasos de guerra,
Pantera, que fundeara na Horta e em Ponta Delgada, antes de causar a
crise internacional de Marrocos. Em 1908,
uma esquadra alemã já viera aos Açores e desembarcaram em S. Miguel,
anotando os melhores percursos de entrada.
A defesa
da costa portuguesa, por forças americanas e ação preponderante destas
nos Açores, é assunto altamente melindroso que interessava não só a
política portuguesa, mas também forçosamente a Inglaterra pois esta, por
ser aliada, nos devia dar meios para assegurar contra os riscos da ilha
de São Miguel. Foram porém os americanos que desempenharam a missão de
defesa no Atlântico. Essa época associa-se à sua ajuda às populações da
ilha de S. Miguel, com falta de cereais e de serviços de saúde.
O jornal
Açoriano Oriental de 2 de Novembro de 1918, em plena guerra, relatava
que um representante dos EUA, pedira à Cruz Vermelha do seu país os
socorros necessários para as famílias pobres atingidas pela epidemia que
então grassava. Entre os pedidos, estava a vinda de médicos,
enfermeiros, carros e outros mantimentos para uma população de cerca de
60 000 pessoas. Ironicamente, antes de se iniciar esta Grande Guerra, considerava-se que
esta era o fim dos combates e a preparação para uma tranquilidade, sem se
ver o fim. Imaginava-se que seria uma guerra quase relâmpago, com um
regresso à paz de modo definitivo e um novo mundo a contento geral.
As
premissas para o progresso e o bem-estar eram de tão bom presságio que
o lado negro da sociedade europeia, se mascarava sob um aumento de
bens, nunca antes visto pelas classes médias
VI - DERRADEIROS AROMAS
Os novos "bens" de Consumo
Iniciava-se a era das comunicações rápidas, da velocidade dos
transportes, dos comboios que, quais vias nervosas, circulavam pelos
países, dos voos audaciosos, das descobertas espantosas da ciência a bem
da humanidade. Uma crescente euforia dos povos europeus demonstrava-se
por entre publicações de revistas e jornais bastante otimistas, com nova
publicidade de bens disponíveis que jamais tinham estado ao alcance de
tantos. Um confortável ar de grande sossego remetia para a ilusória
esperança da impossibilidade de tão requintada sociedade se envolver
em rudes conflitos. Isso seriam barbáries de um passado já morto. Nunca
mais chegariam a acontecer lutas e conflitos de grande extensão ou de
crueldade.
Descurava-se o que a história contava acerca da natureza humana, da sua
crueldade e agressividade sempre latente ou oculta e nunca ausente.
São os
pequenos erros que levam a grandes quedas, transformando futuros, só
porque alguém tropeçou no caminho que a vida mostra, mas não perdoa
nenhuma falha nos desertos. Entretanto tudo continua tranquilo, nem se
adivinham tempestades.
Com o
advento do romantismo, inicia-se uma série de publicações para um público
variado, do popular ao mais erudito. Um exemplo desse otimismo comum,
está patente nos jornais e mais ainda nas revistas de então, muito
ingénuas e carregadas de idealismo. Os Almanaques e Álbuns para as
senhoras também proliferam. Não faltavam poemas sentimentais,
caricaturas e críticas mordazes às sogras, aos automobilistas, sem
esquecer as alusões às criadas e aos magalas, às criancinhas espertas,
com páginas dedicadas a conselhos de beleza e moda e ainda contos
dramáticos com pano de fundo na natureza e na Idade Média, ou então os mais
recentes estilos de vida. A leitura estendia-se a um número crescente de
pessoas, dos mais variados interesses e idades.
Novos passatempos
Um
exemplo disso foi a publicação "Serões". Revista mensal ilustrada, que se
iniciou em 1901 com divulgação das belezas de Portugal, curiosidades e
notícias esporádicas do estrangeiro. Um pouco menos crítica, mas mais
moralizante, surgiu também "Os Serões das Senhoras", esta última, em
Portugal, é a antepassada da célebre revista "Modas e Bordados", que
tanto sucesso teve por gerações inteiras, e só veio a terminar bem
depois da revolução de Abril. Iniciada em 1910, pela revista "O Século",
destinava-se à classe média. Seguia o modelo familiar em que se limitava
a mulher, por mais requintada que fosse, a ser o "anjo" ou a "fada do
lar", mesmo que tivesse a maior elegância, havia sempre latente também as
exigências de recato. Uma das mais antigas publicações era "O Ocidente.
Revista Ilustrada de Portugal e do Estrangeiro", iniciada em 1878 e que
terminou em 1915, em plena guerra, por motivos mais do que evidentes,
pois foi uma revista de custo elevado para a época.
O
modelo para tudo o que de novo surgisse, quer na Europa, quer nos
Estados Unidos, era o parisiense que na altura ditava a moda e os
estilos de vida. Para a
escrita dos artigos especialmente dedicados às damas, havia uma plêiade
de autores e colaboradores, com finalidade quase sempre moralizante e
prosélita, para protótipo da mulher, menina prendada, noiva tímida e
submissa, esposa fiel e mãe extremosa.
"Por detrás desse mimetismo jornalístico estava naturalmente, a
autoridade incontestada de Paris onde tinha nascido a alta-costura,
manequins, os desfiles de moda." [ 16 ]
Novas "imagens" da Mulher
Na vizinha Espanha, outra revista abarcava um leque bem mais variado e rico, se bem que contemplasse as senhoras com rubricas adequadas e a moda de Paris. Traduzia a ascensão da classe burguesa enriquecida, que não era erudita, mas se interessava por uma cultura que agora lhe era acessível.
"La Ilustracion Iberica"
Tratava-se de uma luxuosa publicação
com ilustrações e primorosos desenhos de Arte Nova. Era "La Ilustracion
Iberica" semanário científico, literário e artístico, iniciado em 1888
por Ramon Molinas, tanto se editava em Barcelona como no nosso país.
Tinha grandes pretensões artísticas e abarcava tanto as facetas do
romantismo, com o gosto pelo exótico, regresso ao passado, o
subjetivismo, medievalismo e o sentimentalismo., como a beleza artística
da "arte nova", em delicados pormenores. Foi aí que, em folhetim, ao
nível do romance de aventuras, uma das inovações da época, que o nosso
escritor Eça de Queirós traduziu a famosa obra "As Minas de Salomão" de
Sir Henry Rider Haggard (1856-1925). Não faltavam descrições de viagens,
usos e costumes dos povos, estado social, político e religioso, vidas
públicas e privadas, paisagens, anedotas e charadas muito ao gosto do
tempo.
Essa era
uma das melhores revistas ilustradas do fim e início do século que se
podia obter na Península Ibérica. Os artigos, viagens, poemas e contos
sentimentais ou fantásticos, cruzavam-se com esplendidas litogravuras de
reproduções de quadros, dos pintores em voga, modas madrilenas,
exposições e notícias, sem grande relevo para os graves acontecimentos
que podiam mostrar sinais sombrios. Para além da menção a nascimentos ou
funerais de celebridades políticas e da aristocracia ou sociedade
espanhola da época, pouco se podia descortinar dos acontecimentos. A
tentativa de tornar a revista mais nacionalista, abriu as portas a
tradições e a artistas recentes, também a bailados típicos, costumes das
províncias ou com as suas exposições. Porém, isso não mostrou
enriquecimento, mas antes era a sua decadência a demonstrar a crise que
se aproximava.
O "Almanaque - Editora, Musical, Artístico, Literário" de 1910, editado em Portugal e Brasil, era uma obra requintada, com partituras de músicas da brasileira D. Francisca Gonzaga, ou Alfredo Keil, a reunir uma panóplia de poemas, artigos de viagens e novelas com cenários medievais e gravuras de extremo cuidado artístico. Aparecia já a nova publicidade para o grande público, que pode servir de modelo para o que se publicava em Portugal e, com maior ou menor relevo, existia por toda a Europa.
"Almanaque" - Editora, Musical, Artístico, Literário
As
publicações, no contexto europeu que se alargava ao novo mundo, Brasil
ou Estados Unidos, apresentavam notícias e atualidades com pouco relevo,
pois a predominância ia para os poemas sentimentais, os folhetins e
romances, mais o vestuário da moda, as proezas atléticas e umas simples
páginas para caricaturar cenas da sociedade elegante e algumas
políticas. Os riscos reais apareciam vagamente mas estavam já colocados
de modo, talvez propositadamente míope, nas guerras em África,
nomeadamente no caso de Cuba ou, mais próximo, os conflitos em Marrocos.
Acompanhando mais de perto os acontecimentos graves e a proximidade dos
conflitos que não se podiam ignorar, estava a revista "Lectures pour
Tous- Revue Universelle Ilustrée". Principiou por ser um Suplemento do
"Almanach
l´Hachette", editado por Victor Tissot em 1889. Teve vida longa, pois
chegou até 1974 e ainda é recordada em Portugal e no Brasil. Era uma
revista para a família burguesa, com contos fantásticos, em ambientes
exóticos ou peças de teatro ao gosto do tempo, quase sempre de fraca
qualidade e ainda modas, mais alguma crítica alegre. Num estilo romântico
e sem grande profundidade, assim se manteve por anos seguidos.
Nos anos
de 1913 e 1914, a sua faceta alegre, de caricaturas ou viagens dos
europeus desaparece e mostra sinais de uma situação cada vez mais
confusa e ameaçadora. Depois passa a dar notícias da guerra, sempre com
aquela esperança de vitória que animaria o seu público. É
curioso, por exemplo, analisar alguns jornais brasileiros, em plena
guerra, onde as notícias do conflito, as vitórias e os avanços das
tropas aliadas só mostram sempre um lado positivo, triunfante e
otimista, misturado com as notícias de quem se diverte, lê obras em
folhetins, quer de Silva Gaio, quer de Xavier de Montepin, sem descurar
anúncios de espetáculos de teatro, de canto, e mesmo todos aqueles
produtos que as damas e cavalheiros desejam.
As
notícias que iam chegar da frente, eram filtradas quase sempre nos
jornais, de modo a dar um tom de vitória às tropas de ambos os lados. A
realidade das perdas humanas e da dureza da guerra só se tornou
conhecida, porque a fotografia e o cinema eram muito mais realistas.
Pouco
antes da guerra, os jornais franceses apresentam já graves preocupações
com o papel decisivo da cavalaria, num futuro conflito, o que era já
uma antevisão mais realista do horror que iria acontecer, ou ainda as
possibilidade de fogo a bordo de navios, a aventura de atravessar o
Atlântico de aeroplano, os desabamentos dos túneis de Paris ou ainda a
descrição da queda de Napoleão III, como acontecimento de muito mau
agoiro para um futuro pouco melhor que a República francesa traria. A
distância a que viam os acontecimentos políticos pode significar que o
público, sendo muito variado, exigia dos jornalistas uma franca
neutralidade.
As
referências ao armamento e às fardas, às capacidades dos submarinos e da
aviação, as conquistas fora da Europa e as lutas em Marrocos, tudo isso,
porém, ainda trazia esperanças de todos os povos resolverem os seus
conflitos e viverem em paz.
Novas armas - A Aviação Militar
Com a República há ventos de mudança muito fortes na França, mas esta ficou dividida, entre os que aclamavam os novos tempos republicanos e os que desejavam o regresso de uma monarquia constitucional. Um certo paralelo aconteceu com Portugal, pois a queda da monarquia, após o regicídio, trouxe um parlamentarismo tão frágil que Manuel de Arriaga, o primeiro presidente da república, de tão desiludido, abandonou a política, após muito pouco tempo de governação. As colónias eram caso para grande preocupação no nosso país, mas as reportagens da época, ao tratarem dos assuntos, eram bem prudentes. Com a crise de Marrocos, mostrou-se já quão fortes eram as divisões europeias nos anos de 1905 a 1911.
Crises em África
Novos problemas coloniais
A Alemanha e a França quase começavam a guerra, com esse pretexto, porque ambas negavam-se a ceder os seus interesses nessa mesma região do Norte de África. Com algumas concessões e diplomacia, a França ficou então com o domínio sobre Marrocos, mas não sem dar benefícios à sua opositora, a Alemanha, que veio a ficar, primeiro, com uma pequena faixa de terreno no sudoeste africano. Para evitar a guerra, houve uma conferência internacional em 1906, na cidade espanhola de Algeciras, a fim de resolver as disputas entre franceses e alemães. Porém, uma tal solução feria os brios dos alemães que não se conformavam com tão poucos domínios. A Alemanha, já em 1911, mostrou a sua hostilidade reacesa e surgem novos conflitos com a França pela disputa da África.
Mapa de África de 1914
Então, para evitar a guerra, a França concedeu à Alemanha uma considerável parte do Congo francês. Bem distantes, mas muito atentos, os Japoneses preparavam-se para entrar na guerra pois viam que dela podiam muito bom tirar proveitos. Assim, aproveitando as contendas em que os alemães se encontravam, logo os japoneses procuraram expandir-se tanto na China como no Pacífico, ocupando as Ilhas Marianas, Carolinas e Marshall, que estavam então em poder dos alemães. Fora o próprio Japão que declarou guerra à Alemanha, logo em agosto de 1914. Uma frota japonesa veio depois para o Mediterrâneo para auxiliar os seus aliados britânicos na luta contra os submarinos alemães.
Oficial Japonês
Outros povos europeus tinham os olhos postos nas colónias portuguesas, dos italianos aos ingleses e assim os portugueses tinham a missão espinhosa de defender as suas largas fronteiras coloniais. Mas as preocupações sociais e políticas da metrópole, entre Bernardino Machado e o rei Jorge V da Inglaterra assoberbavam os pensamentos dos nossos governantes, enquanto se seguia com preocupação o acirrar de ânimos e o crescente armamento dos povos, com pouco empenho e cuidado com as tropas que nas nossas colónias enfrentavam situações cada vez mais insustentáveis. Ao lado dos conflitos internos, e dos nacionalismos, a corrida ao armamento, o enriquecimento económico e o expansionismo, eram três gigantes poderosíssimos prestes a um desenlace trágico.
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Alianças político-militares ambíguas
A confusão e o desamparo das populações em fuga
( http://restosdecoleccao.blogspot.pt/2010/05/portugal-na-1-guerra-mundial )
A
Grande
Guerra anunciava-se paradoxalmente pelo progresso e enriquecimento dos
povos. Curiosamente é a esta guerra a que mais vezes se atribui o adjetivo de
"grande", apesar de a segunda guerra ter sido ainda mais
dantesca e infernal do que o primeiro conflito mundial. O que
parece é que nunca ninguém tinha assistido a tamanha confrontação e com
tal violência, com as novas armas devastadoras que deixaram o mundo
assombrado e um rasto de desilusão em que se semearam todos os medos e
todos os horrores, a perda para sempre das certezas de paz. A era dos impérios desmoronava-se e
novas ideias agitavam a Europa, com ventos de mudança, ainda auspiciosos
na esperança do desenvolvimento. As Exposições Mundiais, ao mesmo tempo
que eram uma afirmação da hegemonia dos povos, tinham uma faceta frívola e sofisticada, com um cariz alegre e
despreocupado.
Tornaram-se pretexto para edições de revistas de grande luxo
e nelas se podia ver o sonho do progresso e da paz. A beleza da Arte
Nova dera uma qualidade requintada à arquitetura, às decorações e até
aos anúncios artísticos de novos bens de consumo em grande escala para a
classe média.
Calendário - 1902 Ambientes despreocupados
Muito diferente da agressiva publicidade de agora, apareciam já os chocolates, algo muito requintado anteriormente. Surgiam à venda, tal como os perfumes, nas suas belíssimas caixinhas decoradas de Arte Nova. O requinte chegava a anunciar pianos, as chamadas pianolas, mesmo para quem não sabia tocar. Em forma de caixas de música, serviam para encantar, quem de música pouco entendia.
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Novos "bens". Os chocolates
Novas bebidas - A Coca-Cola
Caixas de chocolates
Cada dia aumentava o arrojo e exagero do vestuário e não menos extravagantes adereços e chapéus exóticos. A isso não ficavam alheios ou indiferentes os cavalheiros. Nos anúncios começavam já a surgir as habituais promessas e atestados científicos do crescimento do cabelo para os calvos, ou de mudança estética, com aparelhos estranhos e bem dolorosos para quem os experimentasse, a fim de obter nova forma nasal ou até facial, as máscaras dermófilas, ou pílulas orientais para conseguir o crescimento do peito, produtos "científicos" para emagrecer, asseverados por ilustres médicos, ou cremes ignorados e mirabolantes para uma cútis sem defeito.
Cursos de Piano. As pianolas.
Um pouco de "extravagância"
Terapias e tratamentos
"Parfum POMPEIA"
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Preocupações com a "Moda" feminina e masculina. Os Perfumes.
A
vaidade é de todos os tempos e o acesso a novos produtos,
paradoxalmente, vinha tornar a mulher, na sua grande maioria, ainda mais
dependente do marido ou do pai. Com tais hábitos de luxo e de Moda,
tornava-se mais complexo e quase impossível para a mulher ter um emprego
e ser independente. A independência feminina era mal aceite nos meios
burgueses. O estatuto da mulher que trabalhava era logo mais baixo,
tanto para ela como para o marido. Este devia ser considerado o chefe da
família e conseguir modo de sustentar tanto o lar, os filhos e criados,
como todos os gastos fúteis e a elegância da esposa.
Só nas classes mais baixas, mercê da miséria e dos fracos salários dos
homens, é que as mulheres trabalhavam duramente. As desigualdades
sociais eram bem nítidas, e tanto nos campos como nas cidades a
diferenciação do estatuto feminino era muito grande.
"Primeiro de Janeiro" de 1914.
À medida
que a data de 1914 se aproximava, todo esse novo mundo de prosperidade
parecia estar ao alcance de muito mais pessoas mas, por outro lado, a
ameaça real da guerra tornava uma parte da mentalidade europeia bastante
apreensiva.
Se, por
um lado, a época que vai dos anos 80 do século XIX, até quase à beira do
deflagrar da Grande Guerra, é chamada La Belle Époque, por outro,
fala-se na "era dos impérios". Afinal eram os últimos impérios do Ocidente
que ainda se mantinham, apesar de todas as suas lutas intestinas e
governantes sempre de sobreaviso para com as possíveis revoltas e as
insurreições dos nacionalismos crescentes.
Exposição Universal de Paris
A grande burguesia começara por manifestar a sua hegemonia e riqueza na velha Albion, e os outros países europeus seguiam em franco progresso. Isso contribuía muito para que os estados fossem mais fortes e depois os sonhos de imperialismo ganhassem terreno. A burguesia, paradoxalmente, pela sua riqueza, contribuía para uma mentalidade bélica que não se coadunava com os seus planos de enriquecimento pacífico, embora opressor de povos e dos seus próprios trabalhadores.
Alegoria sobre as "contradições" Sociais.
Só nas ciências, o progresso, com toda a explosão de descobertas que se conjugaram em pouco tempo, era bem real. Quando se quer afirmar que se tratava de "a era do império", aplicando o título da famosa obra do historiador marxista Hobsbawm [ 17 ] tem de se ter em conta, além do facto das famílias reais serem mais ou menos todas aparentadas na Europa, que o imperialismo alastrava pelo mundo, com a luta, mais ou menos surda, entre os povos para se apoderarem de territórios, que na altura eram colónias. Esses mesmos territórios tornavam-se cada vez mais cobiçados, já que a necessidade de matérias-primas e a exportação de produtos excedentes crescia a olhos vistos. Essa foi uma das causas de muitos povos, que nada tinham a ver com as causas da grande guerra, acabaram por se envolver nela. Foi também uma época que se podia chamar "de crise" sob os mais variados aspetos. Os interesses chocavam-se, a África, o Japão, a Pérsia e até a China, entravam sub-repticiamente na cena internacional. Esta crise, com os seus contrastes, aparentava prometer futuros melhores para os otimistas e, em menor número, os pessimistas decifravam sinais vagos de conflitos graves. É de temer o uso da noção de crise pois sob o seu insoldável "véu de ignorância", um pouco ao modo da filosofia política de John Rawls, se ocultavam mil sentidos, sem qualquer acordo prévio.
Perfume da "Belle Époque". Os espectáculos.
A Belle Époque também quis dizer a criação do público, das grandes massas e de novo estilo de vida do urbanismo! Essa multidão tem uma nova visão do mundo. Agora a multidão lia jornais, ia a cafés, passeava por todo o lado e enchia de movimento as ruas das cidades europeias. As praças, jardins, os museus e teatros, os concertos,
as óperas e os ballets, eram agora muito menos seletos e a aristocracia perdia um pouco o seu lugar, conservando um brilho que a classe burguesa gostava de copiar ou mesmo de ultrapassar
.
As "sufragistas"
(Miss Fowler. USA.)
Na
sociedade americana, os valores democráticos e a educação feminina
levaram a que surgissem mulheres pioneiras na luta pelos seus direitos.
A mulher americana teve um contexto propício a exercer maior atividade e
a influenciar mais a sociedade, ao contrário do que acontecia na Europa.
As universidades e o funcionalismo público ajudavam a criar um novo
mundo em que a cultura, a arte e o espetáculo, criavam novos espaços para
um público sempre crescente.
O
escritor vienense, Stephen Zweig, um filósofo e historiador injustamente
esquecido, (1881-1942) traçou, já no exílio, um belo quadro da sua
cidade de Viena, antes do seu nascimento. Ao falar
da sua infância, remete para uma "época de segurança dourada" onde tudo
estava certo do seu lugar e dos outros, das sucessivas gerações e de um
império quase milenar, que agora vira cair por terra. A sua descrição
comovida não deixa de estar impregnada de nostalgia e de romantismo de
quem era judeu e recordava um tempo em que isso não era uma barreira ao
sentimento comum pela estética e pela música:
(…) a
alta nobreza também abandonara a sua antiga posição protetora; para trás
ficavam os gloriosos tempos em que os Esterhazy hospedaram um Haydn, em
que os Lobkowitz, os Kinsky e os Walstein rivalizavam em acolher nos
seus palácios as estreias das obras de Beethoven, em que uma condessa
Thun se ajoelhara diante do grande génio para suplicar-lhe que não
retirasse da Ópera o Fidélio.
Wagner,
Brahms e Johann Strauss, ou Hugo Wolf já não encontravam o menor apoio
em Viena; para manter os concertos filarmónicos no nível anterior, para
possibilitar a existência de pintores e escultores, faltou a burguesia
para preencher esse vazio, e só os burgueses judeus é que tornaram em
motivo de orgulho, e também de ambição, poder contribuir na primeira
linha da frente, e conservar no seu antigo esplendor a fama da cultura
vienense. Os judeus sempre amaram esta cidade e estavam aclimatados a
ela, com toda a sua alma mas sabiam que, só através do seu amor pela
arte, se sentiriam cidadãos de pleno direito e autênticos vienenses. No
resto, pouca influência exerciam na vida pública. (…) Unicamente no que
respeita à arte todos se sentiam com os mesmos direitos, pois em Viena,
o amor e a arte eram considerados um direito comum. O papel da burguesia
judia é incomensurável com a sua contribuição e proteção na cultura
vienense. Ela era o público, enchia os teatros e os concertos, comprava
os livros e os quadros, visitava as exposições e, com a sua compreensão,
mais flexível e menos carregada de tradição, convertia-se em tudo,
promotora e precursora de todas as novidades. Viena ficava atrás de
Berlim no que respeita à arte, do mesmo modo que a Áustria ia atrás do
Império Alemão no terreno político, por culpa da indolência da corte, da
aristocracia e dos milionários cristãos, que preferiam os cavalos e as
caças, ao fomento da arte. (…) numa ocasião anti semita tentou-se fundar
um denominado "teatro nacional" não compareceram autores nem atores nem
público; após uns meses o «teatro nacional» falhou estrepitosamente, (…)
as nove décimas partes de quem celebrava como cultura vienense do século
XIX, era uma cultura promovida, alimentada e até criada pela comunidade
judia de Viena.
Viena
( http://salveospirilampos.blogspot.pt/2010/04/1-dia-em-viena-e-welcome-day.html )
Vale a pena lembrar a elevada qualidade dos artistas e escritores, pintores e jornalistas que se tornavam ícones e ultrapassavam os salões vienenses para chegarem à cena parisiense, ou ao mundo mais fechado dos clubes ingleses, ou ainda à Itália, ou ao Novo Mundo que mantinha os olhos no modelo da cultura europeia.
(…) à semelhança do que ocorreu em Espanha antes do seu ocaso igualmente trágico, o judaísmo vienense fora muito produtivo na arte, embora, de modo algum apenas judaica, mas expressando com a maior energia , por um milagre de compenetração, o que era tipicamente austríaco e vienense. Goldmark, Gustav Mahler e Schönberg converteram-se em figuras internacionais da criação musical; Óscar Strauss, Leo Fall e Kálmán reanimaram de novo a tradição da valsa e da opereta: Hofmannsthal, Arthur Schnitzler, Hoffmann e Peter Altenberg elevaram a literatura vienense ao nível europeu a um ponto que nem fora alcançado com Grillparzer e Stifter; Sonnethal e Max Reinhardt recuperaram a fama da cidade do teatro e levaram-na através do mundo. Graças ao seu amor apaixonado por esta cidade e da sua vontade de assimilação, adaptaram-se completamente e eram felizes servindo a fama da Áustria; sentiam a sua condição de austríacos como uma missão diante do mundo. [ 18 ] [tradução nossa]
Essa
tinha sido mesmo uma era de promessas de paz. A esperança de dias
melhores era partilhada por muitos, as classes operárias lutavam pelos
seus direitos, governantes e agricultores, cientistas, artistas,
anarquistas, nacionalistas e revolucionários de diversas doutrinas
mantinham um equilíbrio cada vez mais instável, mas não se pensava numa
guerra como a que se avizinhava.
Nunca
mais se voltaria a ter um tal sentimento de fé num futuro, onde a
ciência brilharia e as técnicas tornariam a vida segura e próspera.
Partilhava-se no Ocidente um entusiasmo por uma sociedade pacífica,
sem grandes receios. Os conflitos jamais se alastrariam e as revoltas
que aqui e ali surgiam eram apenas ainda restos de um mal-estar que iria
desaparecer em breve. Assim
como se inventam tradições, também se inventam causas e efeitos. As
causas próximas parecem fáceis de distinguir, porém seria inimaginável
que o futuro fosse tão contrário aos sonhos e ilusões de paz. Era como
se, depois de lançar fogo a um palheiro, não pudesse arder a casa ao
lado, depois a rua inteira e, por fim, a cidade toda.
A guerra,
como um monstro aterrador, aparecia em sinais que não evidenciavam as
proporções que depois veio a tomar.
"Marcha da Paz"
Fala-se de "a paz" quando se quer referir o tempo anterior à "guerra de catorze". Só que a medalha tem o seu reverso. Criava-se todo um clima de instabilidade, miséria, corrupção, jogo, dissolução de costumes e valores. Por trás do cenário desta época, em que o progresso e todos os avanços racionais lhe dão a versão da vivência do mito de Prometeu, com a luz da inteligência e da ciência a brilhar jubilosamente, oculta-se uma outra face assustadora da sociedade. O mal-estar contra a Alemanha crescia a olhos vistos e, na França, o medo de espionagem era crescente.
O jovem Dreyfus.
(Nota: ignora-se quem riscou assim o postal.)
O
acontecimento de suposta espionagem que mais celeuma ergueu na França,
foi o caso do capitão Alfred Dreyfus, um judeu francês, de família de
ricos industriais da Alsácia, acusado por certos indícios, sempre muito
polémicos, de traição contra a pátria, por espionagem a favor dos
alemães. Não podia haver pior assunto.
A descoberta de um documento altamente comprometedor de
espionagem nas repartições do Estado-maior alemão, em Paris, em 1894,
possivelmente por uma empregada de limpeza que o encontrou no caixote de
lixo, deu início a um caso que inflamou os ânimos dos franceses, dividiu
a nação e até
muitos outros países do mundo, incluindo Portugal, a Itália e o Brasil.
No meio da contenda, um francês, por onde quer que passasse, podia ouvir
a pergunta:
"Olhe,
não é no seu pais que estão todos a discutir por causa de um espião, um
tal Dreyfus?"
Um
mal-estar extremo e inquietações invadiam o Ministério de Guerra francês
e alastraram-se a outras Repartições e Ministérios. Havia um traidor
entre eles. Era urgente, era necessário identificar o espião. Se não o
encontrassem, um bode expiatório faria um excelente efeito para acalmar
tão acesos ânimos.
O
documento fatal, ou o "bordereau", como ficou a ser
conhecido, era uma carta altamente comprometedora, sem assinatura que precisava de ser
identificada. E, de repente, apareceu um culpado sobre o qual as
suspeitas eram quase certezas, tal a animosidade que sobre ele caia. Era
o capitão Dreyfus. Um oficial de artilharia do exército francês, sobre o
qual todas as suspeitas pareciam ser certezas. A culpa
ou inocência do oficial alsaciano era o pomo da discórdia entre duas
tendências que se degladiavam pela Europa fora, cada uma com a sua
teoria, a favor ou contra.
A
acusação caiu sobre o capitão em Setembro, em Outubro já estava preso e
o julgamento por um tribunal militar foi rápido e, em quatro dias, pouco
antes do Natal de 1894, Dreyfus é considerado culpado e condenado. A
sentença não podia ser de morte, e assim a sua pena foi de prisão
perpétua na Ilha do Diabo, para onde embarca logo em Fevereiro do ano
seguinte.
Antes, a
5 de janeiro, numa terrivelmente humilhante cerimónia, retiram-lhe os
galões e quebram a sua espada de oficial.
Quebra da Espada de Oficial de Dreyfus
O
antissemitismo deu provas de grande força pelo enorme tumulto da
multidão enfurecida que acompanhou o caso sob o domínio de uma grande paixão que
manifestava o ódio aos judeus, misturado com o ódio aos alemães. Foi como
a ponta de um enorme icebergue do ataque aos judeus que se iria
descobrir anos mais tarde, com toda a sua violência.
Depois
de algum tempo, em Outubro de 1896, o jovem jornalista Bernard Lazare,
um poeta e anarquista da época, publica mais de 60 artigos intitulados
"O erro judiciário - A verdade sobre o caso Dreyfus" no jornal
"L'Echo de
Paris", em defesa do prisioneiro. Entretanto, Mateus Dreyfus, o irmão do
degredado, era da opinião que uma campanha revisionista não se devia
ainda realizar, sem investigações mais aprofundadas e mais
esclarecimentos, para terem provas seguras da inocência do capitão. Entretanto, aparece noutro jornal
,"Le Matin", uma nota a dar por
assegurada a assinatura do prisioneiro no fatal memorando.
Foi
então que, Mateus Dreyfus, sempre convicto da inocência do seu irmão,
nos finais de 1897, através das insistentes e preciosas investigações do
Chefe da Polícia Picquart, que nem por isso era bem visto no seu meio,
se descobriu que Charles-Ferdinand Walsin Esterhazy era o
verdadeiro culpado, pois a sua assinatura é reconhecida por um banqueiro,
curiosamente um português, de nome Castro, que asseverou ser esse o nome
de um seu cliente.
Major Charles-Ferdinand Walsin Esterhazy
( http://de.esterhazy.net/index.php?title=Dreyfus-Aff%C3 )
Face às
provas que evidenciavam a inocência de Dreyfus, agora podia haver um
segundo julgamento, já com o apoio de Zola, o célebre escritor francês e
outros dreyfusianos. Mas a sentença repetiu-se, para grande indignação
dos que acreditavam na inocência do capitão.
Acirraram-se os ânimos.
De um lado levantavam-se os antissemitas
franceses e havia fortes manifestações em Paris, clamando contra os
judeus. Os dreyfusianos encontraram os defensores dos judeus que foram
aumentando, enquanto do outro lado a reação também subia de tom. Aos
defensores, Bernard Lazare e Scheurer veio juntar-se o jornalista
Teodoro Herzl, famoso por ser ele o criador do sionismo, isto é,
defensor de um Estado para o povo judeu. Herzl juntou-se-lhes após
verificar a vaga de antissemitismo que alastrava em França e que muito o
perturbou, apesar de curiosamente viver na Alemanha, onde o
antissemitismo estava mais latente.
Este
ódio aos judeus tinha em França fortes raízes e, já em 1886, Edouard
Drumont publicara "La France Juive", uma obra polémica contra os judeus.
Mas não faltavam obras desse género em que os judeus eram vistos como
perigosos inimigos, gananciosos, que conspiravam e preparavam golpes
para aumentar o seu poder. Do outro lado, intelectuais aliavam-se aos
dreyfusianos. O clamor antissemita era grande, até houve ataques a
judeus, roubos, pilhagens, mortos e feridos. Na Argélia deram-se mesmo
autênticos "pogroms", com muitos mortos e as revoltas sucediam-se. A
filósofa judia, Hannah Arendt, muito tempo depois, ainda afirmava que "toda
a vida política da França durante a crise Dreyfus passou-se fora do
Parlamento".
O caso
teve um tal impacto que vai muito para além da sua figura, exalta
ânimos, torna-se questão dos jornais, indigna, emociona, irrita, e nada
de lógico ou racional aparece com transparência. Foi esse
militar Charles Esterhazy que, mais tarde, se veio a provar ser o
culpado do crime de traição de que o presumivelmente inocente Dreyfus
era acusado.
Aquando
do primeiro julgamento toda a França tremeu, as disputas faziam furor
nos cafés e botequins, enquanto os jornais alimentavam a polémica,
suscitando paixões, entusiasmos ou um ódio fatal ao oficial judeu, que
depois de sofrer as piores humilhações, foi condenado de novo. O furor
da imprensa foi tão grande que se pensa nunca ter havido outro caso
igual. Choviam artigos a favor e contra de todos os lados a mostrar que
não se tratava de Dreyfus, mas era muitíssimo mais do que isso. Este era
judeu, de famílias ricas, industriais na Alsácia, e ainda o primeiro
judeu a ter um posto tão elevado no exército francês. A França
mostrava a sua divisão interna, a sua vontade de um regresso de novo à
monarquia, as feridas mal curadas da comuna, da guerra franco
prussiana, o medo de haver espiões ou de ataques de judeus ocultos na
sombra. Nunca tinham esquecido a humilhação da derrota e de Bismark ter
conseguido que Guilherme II da Prússia, em Janeiro de 1871, fosse
proclamado imperador da Alemanha, em território francês e para mais, em
Versalhes, um símbolo fundamental para aquele povo. A
realidade da humilhação e condenação de um inocente fica muito aquém da
opinião pública, dos conflitos e das ideologias que se confrontavam
através desse caso.
A culpa
do verdadeiro autor do "bordereau", levanta fortes questões ainda hoje
muito sombrias. Charles-Ferdinand Walsin Esterhazy (1847 - 1923) era um
militar, de família aristocrata com origem húngara, com uma boa folha de
serviços. Tinha até recebido a condecoração da Legião de Honra pelos
feitos militares. Com um temperamento muito extrovertido e afável, sabia
conseguir amigos e ser aceite pela sua personalidade viva e jovial. Teria
sido a sua cobardia e o ódio deste oficial contra o capitão Dreyfus, que
desencadeara e urdira toda a trama e até escrevera o documento que
serviu de prova.
Se
Esterházy era um espião, ou um caluniador, não pode deixar de se
estranhar que, quando foi descoberto e julgado, tivesse um tratamento
tão diferente e não fosse castigado, mas sim absolvido. Ora, se
as provas que os juízes possuíam, eram as mesmas para este caso de
espionagem, quer de Dreyfus, quer de Esterházy, como podia haver tamanha
discrepância no tratamento dos dois acusados?
Se foi
uma ação de propaganda ou de forças antissemitas que desejavam ver a
França unida, o regresso à monarquia ou ainda um ato de corrupção e de
espionagem por parte dos mais altos oficiais do Ministério de Guerra,
não se poderá nunca saber.
A
questão Dreyfus foi muito mais do que o próprio Dreyfus, aliás um
militar cumpridor, pouco simpático e com uma certa reserva enigmática.
Capitão Alfred Dreyfus
Após o
segundo julgamento condenatório, o artigo do famoso escritor Émile Zola
" J´accuse", 1898, publicado no jornal " L Aurore", fez furor e esgotou a
edição. O traidor e espião devia ser desmascarado e não preso um
inocente. Zola era um acérrimo inimigo dos Alemães e a defesa da verdade
devia com certeza, relacionar-se com também com a política francesa. O texto
tinha como provas as investigações de Georges Picquart. Um dos
pormenores que marcou o artigo de Zola e o tornavam uma ofensa grave é
que desenrolava uma série de nomes sonantes do exército e o escândalo
era ainda maior do que a sentença:
"O
meu dever é falar, não quero ser cúmplice. As minhas noites seriam
atormentadas pelo espectro do inocente que paga, na mais horrível das
torturas, [ na terrível Ilha do Diabo] por um crime que ele não
cometeu."
O artigo
ficou célebre pelo brilho da escrita em que a peroração, com a frase "J'accuse",
enumerava todos aqueles que estavam relacionados com o caso Dreyfus e a
sua condenação.
O grito
de revolta de Zola encontrou um eco enorme a apoiá-lo, pois veio alertar
os franceses contra a arbitrariedade do julgamento e condenação do
capitão Dreyfus à prisão perpétua na ilha do Diabo, uma colónia penal
para os presos mais perigosos, nas Guianas francesas, arquipélago esse
ironicamente denominado para casos destes, o arquipélago das "Ilhas da
Salvação".
Ilha do Diabo
Era um dos locais mais horríveis para onde se podia enviar prisioneiros.
O livro "Papillon" e o filme do mesmo nome, demonstram a vida infernal,
onde era fácil enlouquecer, suicidar-se ou morrer de mil doenças do
clima insalubre. A
petição para a revisão do processo fora assinada por dezenas de
intelectuais, como o famoso escritor Marcel Proust, Anatole France, que
cheio de indignação, devolveu a sua medalha da Legião de Honra e mais
tarde receberá, pela sua notável escrita, o Nobel da Literatura, muitos
outros intelectuais, a revoltada massa estudantil e populares. Porém
nem assim se conseguiu ilibar o militar que esteve a ponto de morrer
aos poucos na prisão do rochedo mais tenebroso que os franceses
escolheram para castigar os seus criminosos.
O texto
de Zola, em carta aberta ao Presidente da República, Félix Fauré, foi
épico, inflamado, próprio de um tribuno romano na sua defesa. Ergueu a
França num coro de protestos, ao ponto de em cafés e vários locais,
terem ocorrido
acesas discussões, muitas vezes chegando a "vias de facto".
Primeira página de "L'Aurore" com a famosa Carta de Émile Zola
Por fim,
face ao tumulto em toda a França, os crimes da Argélia e o escândalo que
já era mundial, o Tribunal trata de anular o julgamento de 1894 e reabre
o processo, reenviando Dreyfus a um novo conselho de Guerra. Reunido na
cidade de Rennes em 1899, em vez declarar a sua inocência, continua a ser
considerado culpado e agora condenado a 10 anos de cadeia.
Durante
anos, por entre suspeitas e acusações, afirmações de inocência e
incriminações, a França viveu o drama deste militar. O próprio Zola,
depois do artigo ter esgotado a edição de 30.000 mil exemplares, foi
levado a tribunal, com graves consequências pelo seu gesto. A multa foi
paga por um amigo, Octávio Mirabeau, o Diretor do jornal foi preso e
também teve de pagar pesada multa. Zola foi para um exílio em
Inglaterra, para escapar à prisão.
Já em
1899 - o tribunal de cassação anula o julgamento de 1894 e reabre o
processo, reenviando Dreyfus a um novo Conselho de Guerra. Este novo
julgamento, realizado na cidade de Rennes, em 1899, não solta Dreyfus
que continua a ser considerado culpado, e é condenado a 10 anos de
cadeia.
Repare-se que as penas vão diminuindo, como se a opinião pública é que
desse a sentença. É uma ironia que, no dia 19 de Setembro de 1899, o
capitão Dreyfus é amnistiado e deixa a prisão. Mas apesar de tudo isso,
não lhe retiraram o estigma da culpa. É curioso em extremo que, nessa
mesma altura, sido agraciado por Loubet, eleito presidente da república
nesse ano.
Se o
caso Dreyfus dividiu a França, também teve repercussões em muitas partes
de mundo, no Brasil e até nos Açores. No fim da segunda guerra, em 1939,
o ensaísta, jornalista e escritor, Dr. Bruno Tavares Carreiro,
(1888-1957) o mais entusiástico anterianista açoriano, tomava tão a
peito este caso que, sendo jurista, ainda mais o fascinava. Levou
longos anos em profundas investigações, até escrever uma das suas obras
mais conhecidas na época, "O Caso Dreyfus" (1939-1950) . Tavares
Carreiro revela uma emotiva tomada de posição a favor de Dreyfus,
marcando bem o horror deste drama que, estranhamente, colocou o major Esterhazy, o verdadeiro espião, num confortável lugar de testemunha no
escândalo. Apesar da sua vida dissoluta, caráter extravagante e gastador
impenitente, Esterhazy granjeara amigos e conseguira uma carreira
brilhante, chegando até a
ter, por "feitos de guerra", recebido em 1882, a condecoração da Legião
de Honra. Tinha um espírito vivo, comunicativo e facilmente seduzia o
público. Não se pode negar que tinha um espírito sedutor e que a sua
facilidade em conquistar amigos lhe dava uma faceta que Tavares Carreiro
não quis ter em conta já que defendia sem reservas o capitão Dreyfus.
Tavares Carreiro chama a Esterhazy "um herói falhado de Balzac". O certo
é que o bom trato e a popularidade de Esterhazy apagavam indulgentemente
os seus erros considerados menores entre os militares. Já o capitão
Dreyfus não inspirava simpatias a todos. A sua figura reservada, seca e
pouco simpática, as suas origens e todo o seu comportamento levavam a
que muito facilmente as culpas lhe fossem atribuídas.
Se
entendermos Dreyfus como um caso judaico, de velhos ódios que
incendiaram as mentes por vários recantos da Europa, prova-se que o
antissemitismo já estava bem vivo na época, o medo da comuna era recente
e o ódio aos prussianos forte. Por outro lado, os dreyfusianos
eram os liberais, republicanos, anarquistas, toda uma nova França contra
o reacionarismo. De ambos os lados dos intervenientes anónimos, estavam bem
vivos os resultados da guerra franco prussiana, a corrupção da
administração francesa e os riscos que a Argélia trazia. É
paradigmático como os ideais transtornam os factos. Depois de Dreyfus
sair da prisão, e de Zola já estar de regresso da Inglaterra, onde se
refugiou, para não ser preso, quis oferecer um jantar (1906) ao capitão
Dreyfus e a sua esposa. Faltava uma confrontação real com o homem que
defendera pelos seus ideais e pelo qual tanto lutara.
Diante
da figura apagada e intimidada do capitão, face ao seu aspeto tacanho e
desajeitado, a quem nem conseguia mostrar uma sincera simpatia, Zola
sentiu uma forte desilusão. Não era aquela a aparência heroica e garbosa
do inocente acusado em vão que esperava encontrar. Entre a realidade e
todo o imaginário vivido e alimentado à roda do caso, o escritor criador
do naturalismo e do romance realista, ironicamente era vítima da sua
própria criação. Dreyfus não era apenas um judeu militar inocente, era
muito mais, tornara-se um símbolo de toda uma França que estava
dilacerada por ódios e paixões opostas, algo muito mais grave do que a
condenação de um só homem.
Infelizmente, Zola não chegaria a ver o fim do processo. Apareceu morto
por asfixia devido a gaz em 1902, e segundo se apurou em circunstâncias
muito pouco claras, sem possibilidade de apurar a verdade. Nesse mesmo
ano da morte de Zola, aparece um novo pedido de revisão do processo
Dreyfus. Mas a Corte da Cassação ainda demorou 4 anos para reconhecer em
definitivo a inocência de Dreyfus, sem enviá-lo a novo julgamento. Em
1902 novo pedido de revisão é feito e, em 1906, foi reconhecida
definitivamente a inocência de Dreyfus, outra vez sem o enviar a novo
julgamento. Por fim, foi reintegrado no exército, lutou na guerra de
1914 e faleceu em 1935.
Olhando
para a sua figura quebrantada, de rosto fechado, não se adivinha o que
possa pensar depois de tudo o que passou. Muitos são os que se admiram
de nunca ter exigido e nem sequer pedido qualquer indemnização ao estado
pela arbitrariedade de todo o processo, das consequências para a sua
carreira que era promissora antes deste caso, nem pelos danos económicos
nem, mais do que tudo, pela enorme dor e humilhação que sofreu.
As
consequências deste caso ultrapassam as pessoas que viveram o escândalo.
Foi uma onda de ódios e de luta ideológica que se desencadeou mostrando
a xenofobia e o antissemitismo que se ocultavam sob uma falsa
tolerância. A exaltação não ficou por aqui. Tomou novas dimensões e as
razões do ódio religioso passaram ao ódio ideológico que teria os seus
resultados bem mais trágicos e ainda longínquos.
VII - "BELLE ÉPOQUE". LUZES E SOMBRAS.
"Boulevard" em 1871
(http://www.martasfashiondiary.com/2011/11/la-belle-epoque.html)
Para
muitos historiadores, o ano de 1871 foi considerado o início da "Belle
Époque".
Nessa
mesma fatídica data foi a guerra franco prussiana e a sangrenta Comuna
de Paris, onde os combates pela liberdade deixavam uma mancha sangrenta
de repressão sem piedade contra o proletariado. Assim se
mostravam os resultados do movimento político anterior da revolta do
proletariado em 1848, esse que levou Marx a ser expulso da França,
movimento este que se transformou numa derrota dos socialistas e
operários. A traição ao proletariado em 1848 não ficou sem resposta
e a consciência dos explorados tornava-se mais forte. Foi uma derrota
que se transformou na vitória de uma classe operária agora mais lúcida
do poder da monarquia burguesa de Napoleão III e da força que
representava um proletariado unido.
Combates em Paris
A mente
de Bismarck e a sua astuciosa política nunca deixariam de ver a França
como inimiga, já que o Império Austríaco estava enredado nas suas
tentativas de unidade interna cada vez mais incerta. Se a economia alemã
era cada vez mais forte e o poder militar crescente, qualquer pretexto
servia para declarar a guerra. A sua diplomacia e sentido da
oportunidade deram aso a que a declaração de guerra surgisse como uma
faúlha lançada a palheiro bem seco. A guerra franco prussiana foi um
desastre até para o futuro da Europa. Por
outro lado, a cidade de Paris ao recusar render-se, veio até a servir de
mais uma justificação para se imiscuir nas lutas internas da França.
O pavor
que a insurreição dos três breves meses da Comuna causou, o derramamento
de sangue das vítimas esmagadas, depois de uma breve aurora, fez tremer
a burguesia apavorada com a ideia da possível repetição de um período de
terror. A Europa dos Impérios e das monarquias sentiu um perigo no ar,
que trazia a sombra de um sangrento Robespierre e todo o seu utópico
mundo, rodeado de ferozes quadros de mortes em nome de uma liberdade
impossível.
Os
franceses enfrentavam a guerra com os prussianos sem forças para os
vencer. A maior parte dos deputados monárquicos, diante da força dos
inimigos, queria um armistício. Os revoltosos de Paris tomam conta da
capital e obrigam os membros do governo a uma fuga da capital, onde não
conseguem manter-se. Mas foram os prisioneiros de guerra que os
prussianos libertaram que ajudaram a acabar com a revolta. Era uma luta
desigual, com franceses contra franceses e com o vexatório apoio dos
prussianos. Levanta-se a dúvida e a interrogação se esta é mais uma
ideia recuperada, de modo a enaltecer uma libertação que pouco terá de
verdade. O certo é que Paris se reerguia da guerra com a Prússia e da
revolta de Paris.
.
Elogio à "Comuna"
O poder comunal manteve-se durante cerca de quarenta dias. Terminava a primeira revolução socialista que foi aniquilada, sem dó nem piedade e enorme perda de vidas, entre elas muitas mulheres e até crianças.
Gravura de Paris
Nessa
altura, com tudo isso, ainda houve um final feliz para Bismarck, embora
a sua queda estivesse para breve. Pode assistir e observar, com o seu
orgulho de prussiano satisfeito, a assinatura do tratado de Versalhes e
ver Guilherme II, coroado no âmago do símbolo dos Impérios, a Sala dos
Espelhos. Cerca de
cinquenta anos depois, o que pouco significa no rolar dos anos, outro
tratado, no mesmo local, derrubaria por muito tempo as glórias e
triunfos da Alemanha.
Memento mori
Quem
parece ter tido a ideia de uma primeira Exposição Mundial foi o príncipe
Alberto, marido da rainha Vitória, e não se pode deixar de reparar na
sua origem e educação, para entender os meandros da história. A
exposição realizada no Palácio de Cristal, em Hyde Park em
Londres, no ano de 1851,na mais favorável altura para a Inglaterra.
Basta notar o facto
de se tratar da
primeira exposição internacional de produtos manufaturados, Era a
hegemonia da Inglaterra e o êxito da revolução industrial que se
mostrava ao mundo. Em 1878, realizara-se a Exposição Mundial em França e
outras exposições se seguiram.
Exposição Mundial - Londres ( 1851 )
Os povos procuravam, cada um a seu modo, mostrar nos seus pavilhões expositivos o que de melhor e mais moderno ou mais exótico os seus países traziam para a nova idade de luz e de confiança no que a ciência exibia. Esquecendo o lado sombrio que ocultava a revolução industrial, a opressão dos povos colonizados, as injustiças e divisões partidárias, era agora uma época de euforia, de entusiasmo, porque parecia respirar-se melhor, toda a civilização era um hino à prosperidade crescente, segundo consta de muitos relatos da época.
Exposição Mundial de 1889 ( Paris )
A Exposição Mundial de 1889 de Paris teve a inauguração da espantosa Torre Eiffel, "sinfonia de ferro", inaugurada para celebrar o centenário da Revolução Francesa (1789). Escandalizou e encheu de pasmo os visitantes. É bem curioso que inicialmente parece que só serviria para a exposição e logo depois seria desmontada. Como sempre acontece, não faltaram descontentes, horrorizados com a inovação, o que é possível recordar pelo abaixo-assinado publicado no jornal "Le Temps", contra o que chamava "Torre de Babel":
"Nós, escritores, pintores, escultores e arquitetos apaixonados pela beleza até agora intacta de Paris, protestamos com todas as nossas forças contra a construção em pleno coração de nossa capital da inútil e monstruosa Torre Eiffel". Entre os que o assinaram, estavam os escritores Guy de Maupassant, Sully Prudhomme e Leconte de Lisle. ".
Torre Eiffel
(imagem da época )
Café "Majestic" - Arte Nova (Porto)
A esta
feira seguiu-se a de 1900 a celebrar as conquistas do século, com todo o
esplendor que lhe dava a Arte Nova. Eram afirmações dos paradoxos dos
avanços científicos e as maravilhas da técnica ao lado da agitação
social e política. Atraíram milhões e milhões de visitantes, o que, para
a época, era mesmo notável. Ao invés do que se passa nestes inícios do
século XXI, agora um adolescente rebelde tem muitos caminhos científicos e tecnológicos pela frente e
ainda não se decide a escolher, a ciência parecia ser capaz de vencer
todos os obstáculos e desafios para atingir um venturoso progresso para
a humanidade. Entenda-se que esta "Humanidade" deveria ser essencialmente
branca, masculina e europeia.
A
ingenuidade no progresso e no poder da ciência admitia-se como um bem
adquirido. Ninguém levava a sério a sua face destruidora, os
intelectuais, cientistas e a maior parte da burguesia apostavam num
avanço que lhes traria os maiores bens.
Augusto Comte
Foi
Auguste Comte, (1798-1857),
transformado em sacerdote da religião do futuro, quem conseguiu
interpretar melhor a ideologia que explodiria com grande fulgor. Apesar
de todas as suas excentricidades, incoerências e perturbações mentais,
encontrou um bom terreno para cultivar as suas ideias. A sociedade que
ele imaginava existir estava moribunda e apostou num progresso
científico de prosperidade sem fim e num poder espiritual que nunca
existiu. Os seguidores não lhe faltaram. Após a sua morte, as suas
ideias propagaram-se firmes e ingénuas nos seus fiéis adeptos.
Comte
estava convencido, face à explosão de conhecimentos e das ciências, que
iriam desaparecer os homens de guerra, pois já não haveria razões para
combater. Uma ilusão que milhões de seres humanos iriam pagar bem caro,
quando as ciências mostrassem o poder das armas e tecnologias de morte
.
Alexandre Humboldt.
Símbolo do cientismo e orgulho Germânico
( http://acces.enslyon.fr/santo/pedagogie/histoire/Alexandrehumboldtportrait.jpg )
A tese
de que a humanidade chegava a uma etapa em que abandonava todos os seus
avatares e se guiaria pela ciência dos factos, apenas factos, e pelo
rigor do positivismo ultrapassou fronteiras e veio a tornar-se na
filosofia da época e nos fundamentos da sociologia. A história da
humanidade seria a história da natureza do homem e o seu
desenvolvimento. O
problema de Comte foi ter uma noção da natureza humana que deveria ser
como ele se via a si mesmo. Projetou na humanidade a sua própria
natureza, tal como ele se sentia. Na História, chegara a hora de se
reduzir a diversidade à unidade. Com todo o rigor dos factos, traçava um
destino de progresso, mas a natureza humana não era assunto para
discussão, já que Comte seria o modelo.
Raymond
Aron (1905-1983), filósofo e sociólogo francês, diz que ele se torna
"profeta da paz". Traçava uma etapa da sociedade, tão otimista como
ilusória, sob a noção de que agora se abandonavam as teorias, as
abstrações e se entrava na era dos "factos".
Pobreza e condição feminina
Portugal
teve os seus positivistas, na linha de Comte, em que se salienta o
político, poeta e historiador Teófilo Braga e toda uma literatura que
seguia um "naturalismo" ou positivismo, nem sempre fecundos.
Na
Inglaterra, alguns opositores às leis dos "factos", nomeadamente o
escritor Charles Dickens, eram exceções. Na sua obra, "Tempos Difíceis",
(1854), enquanto os operários sofrem as maiores agruras com greves e
represálias, Dickens denuncia a desumanidade das leis impostas pela
revolução industrial aos trabalhadores. Entre os primeiros na denúncia,
Dickens critica feroz e sarcasticamente esse novo fanatismo pelos
"factos", com o pragmatismo e utilitarismo de Bentham e Stuart Mill.
O contexto de miséria da sociedade industrial, em que o "mundo
vitoriano" mergulhara a cidade de Londres, repete-se noutras cidades,
nomeadamente Paris, onde a miséria e degradação eram semelhantes.
Se
Dickens escreveu a acusar a opressão dos operários, do trabalho das
mulheres, das crianças de tenra idade e a mendicidade, também o escritor
francês, Victor Hugo, em "Os Miseráveis" (1862), traça um retrato
arrepiante de todos os males e injustiças a que estavam sujeitos os
pobres. Oliver
Twist e Cosette são figuras infantis que tentam a denúncia dos males
sociais, tal como os bairros tenebrosos de Londres estavam para os
esgotos de Paris.
.
C. Dickens - "Oliver Twist"
O enriquecimento da burguesia, com a revolução industrial, acarretava a opressão dos operários, das crianças, mesmo das mais pequenas de 3 e 5 anos, pois tinham mais mobilidade dentro das minas e, com as suas pequenas mãos, podiam consertar objetos e atingir outros,
inalcançáveis para os adultos. As pobres mulheres, submetidas a uma vida carregada de sofrimentos devido ao egoísmo e ao imperativo dos "factos", com a proibição do uso do imaginário, não se podiam dar ao luxo de ilusões de um mundo melhor. As doenças, a falta de higiene, os horários pesadíssimos, a ausência de cuidados mínimos com os trabalhadores, a crueldade fria, tornava o novo urbanismo fabril num inferno para grande parte dos seus habitantes.
Augusto Comte
A
realidade veio pôr em causa toda esta teoria que se desdobrava em
explicações com um cariz científico e positivista que criava
contradições, entre a aceitação do primado do egoísmo e o altruísmo
vencedor. A teia do pensamento europeu estava eivada de um movimento
evolucionista, que ia das teses de Darwin até às teorias comtianas,
justificando o fio lógico de um processo, habilmente organizado, mas que
se coadunava com a classe dominante. Sem o saber, Comte foi o arauto de
uma forma da seleção natural que manipulava tudo, até o altruísmo, a
favor de um egoísmo social.
Para desencanto dos discípulos que continuam a revisitar a sua obra, a
realidade da Europa ocidental, que Comte afirmava ser local de onde partiria a
realidade social total, vivia em derrocadas, lutas de classes,
nacionalismos, doutrinas opostas.
A ordem
e a desordem precisam uma da outra para existir. O progresso histórico
no século XX cimentou-se por entre os ódios e paixões entre povos, com
feridas abertas e novas doutrinas socialistas, que não se podem esquecer,
nomeadamente a obra de Marx e Engels. Por fim, todo o frágil equilíbrio
entre impérios e estados veio a redundar numa hecatombe sem igual, em
lugar das profecias da paz [ 19 ]
Comte,
tal como Hegel, Marx e até Kierkegaard, tomou a tríade e a contradição
para fundamentar uma evolução, uma doutrina e uma forma ética que
conjugavam uma série de ideias que pairavam no ar.
O caso
do cientista prussiano, o conde Alexandre Humboldt, (1769-1859) é
paradigmático. Na sua época, as ciências tomaram um incremento
espantoso. Este famoso cientista, partilhava já de um pensamento
ideológico que colocava os povos germânicos acima de quaisquer outros
povos. Por isso, tentou descaradamente desmerecer as explorações dos
portugueses em África em prol dos germânicos. Foi um explorador no
território africano, onde estavam já os portugueses e onde podia ver bem
a realidade que tentou falsear. O seu mérito é, porém, indiscutível.
Notabilizou-se na investigação em que abarcava a etnografia, a
antropologia, a física, geografia, a geologia, a mineralogia, a
botânica. Humboldt é um claro exemplo da multiplicidade de ciências que
tinham um incremento novo.
É
notável o efeito da viagem de Darwin para as investigações por
observação direta. Não deixa de ser curioso o facto das teorias de
Aristóteles terem uma tal força que atravessaram séculos, mantendo a sua
forte influência. Da geração espontânea, ao mundo lunar e sublunar,
passando pela teoria do movimento, as suas ideias estão tão perto do
senso comum, que dificilmente se refutam. O jovem
Darwin, depois da sua célebre viagem à roda do mundo, no veleiro Beagle,
debateu-se com as suas hesitações em publicar a sua obra. A descoberta
pairava no ar, já que um outro cientista descobre ao mesmo tempo o
evolucionismo e, só não publica antes de Darwin os seus trabalhos, por
uma honestidade invulgar. Era Alfred Russel Wallace, (1823-1913), que
lhe escreveu a pedir a sua opinião acerca dos seus trabalhos.
Sobre
tal episódio, Darwin conta, na sua autobiografia, ter ficado
completamente surpreso e admirado, de tal modo que escreveu ao seu amigo
Lyell dizendo: "Ele [Wallace] não poderia ter feito melhor resumo do meu
trabalho desenvolvido nestes últimos 22 anos...". [ 20 ]
Enquanto
o transformismo se adensa, tudo demonstra o glorioso nascimento e o
fantástico laboratório experimental em que a Europa Ocidental se estava
a transformar com o curioso fenómeno das afinidades de interesses
científicos centrados em dados experimentais fiáveis. Os
intelectuais europeus abandonavam quaisquer idealismos para se dedicarem
à experimentação e às descobertas. O fascínio pelas ciências tem um
início notável quando se olha de longe para a diversidade de seres
humanos e para a multiplicidade de ciências e novas invenções que
começavam a pulular.
Mesmo
com as guerras e todas as dificuldades, nunca como hoje o
desenvolvimento do conhecimento e o número de cientistas e pensadores
foi tão grande e aliás, não pára de aumentar.
A
Belle
Époque foi privilegiada em ter reunido uma plêiade dos mais notáveis
vultos em todas as esferas do saber e, o que não se pode considerar mero
acaso, mas sim por um concurso de circunstâncias favoráveis às
descobertas, para haver um avanço convergente em tão breves anos. Na
ciência, foi uma época pródiga e o mesmo acontece em todas as artes, bem
como na indústria, o desenvolvimento económico, a expansão de ideias. Os
inventores e cientistas da época são assombrosos, trabalham em
diferentes áreas, sem se conhecerem, mas contribuem para uma mudança
completa de vida dos povos. Parece que as ideias pairavam no ar e
algumas mentes, mais atentas e intuitivas, captavam sinais invisíveis
para a maioria das pessoas.
No caso
de Alexander Graham Bell (1847-1922), tratava-se de um cientista e
inventor escocês que foi para o Canadá e se imortalizou pela descoberta
do telefone. Se houve polémicas por causa desta patente, foram notáveis
os seus trabalhos com surdos-mudos. Doutorado por Edimburgo, ensinava
pessoas com deficiência a falar, pois estudara a ciência da acústica,
com o objectivo de melhorar a surdez de sua mãe.
Alexander G. Bell
A
primeira demonstração pública da sua invenção ocorreu em 1877, em
Filadélfia, onde estiveram presentes D. Pedro IV de Portugal, quando
já não era Imperador do Brasil e o cientista inglês Lord Kelvin. Ao
longo da sua vida, o extraordinário Alexandre Bell chegou a registar 18
patentes em seu nome e 12 com os seus colaboradores.
O
italiano Guilherme Marconi (1874-1937), foi um inventor a quem se pode
chamar o pioneiro das comunicações a longa distância. Devido ao seu
telégrafo, conseguiu o grande feito de salvar mais de mil pessoas num
naufrágio. Isso deu-lhe grande celebridade e o mundo tomou consciência
da sua fantástica descoberta. Depois disso, o valor do seu invento
tornou-se incalculável. Teve um valioso contributo durante e depois da
Grande Guerra. Ainda hoje existe a companhia Marconi a imortalizar o seu
nome. A biografia que seu filho deixou, mostra as memórias pessoais de um
homem que mudou o curso da ciência. Aquando da sua morte, no Times
dizia-se "que esta época poderá ser designada por esta figura".
[21]
Ironicamente, as guerras foram o que mais marcou o terrível século XX e
os cientistas ficaram como nota de rodapé. Levanta-se ainda a questão de
saber até que ponto as armas em que se transformaram os inventos não
foram a causa de milhões de mortos numa eclosão de violência nunca antes
vista.
Já o
americano, Thomas Alva Edison (1847-1931), foi um quase inacreditável ser
humano, tantos foram os seus inventos. Raros são os homens que se
destacam deste modo, no seio do anonimato que cobre quase todas as
vidas. Uma mente invulgar, determinação nas investigações e uma época
propícia para que os seus talentos resplandecessem como um girassol em
pleno dia de sol. Seu filho, Charles Edison, rendeu-lhe uma comovida
homenagem com uma biografia grandiosa de um homem que era um génio. Para
os filhos, a vida junto de um homem assim, devia ser fascinante.
Divertia-os e não se isolava da vida familiar a que dava enorme apreço.
Apesar de todos os seus inventos e todos os trabalhos, a família estava
em primeiro lugar. O filho confessa que Edison também teve os seus
insucessos. Algumas invenções em que investiu o seu dinheiro só lhe
deram prejuízos graves.
No
primeiro ano da Grande Guerra, em Dezembro de 1914, Edison estava sem
dinheiro. As suas experiências não estavam a urdir o efeito desejado.
Eram com os lucros dos filmes e dos discos, já então muito famosos e
difundidos, que sustentavam os trabalhos e pesquisas de laboratório.
Desgraçadamente, o fogo deflagrou na fábrica com uma intensidade louca e
espalhou-se por todo o lado, com o material altamente inflamável, de
celuloide, embalagens e películas. De nada valeu a chegada dos
bombeiros, pois tudo ardia tragicamente depressa demais.
Enquanto o filho o procurava muito aflito, pensado em como devia estar
abatido, sentia uma pesada angústia e terrivelmente apreensivo com a
reação do pai iria ter.
Edison
tinha já 77 anos e todo o seu capital estava irremediavelmente perdido.
Como podia começar de novo?
Encontrou-o sereno e em busca da esposa pois queria que também
aproveitasse o incendio, para assistir àquele enorme fogo, pois nunca
mais poderia ver outro igual. Já no
rescaldo, pôs-se a dormir serenamente com a cabeça sobre uma mesa. Ainda
disse que "aquilo era
apenas coisas velhas. Sobre as suas ruinas edificariam mais e melhor".
Na
verdade, foi isso mesmo que aconteceu, nem a idade, nem a ruína, nem as
perdas, o derrubaram. Recomeçou com tenacidade e reergueu-se. Foi o
que se pode dizer um "self made man", desses que os americanos tanto
elogiam, ao contrário dos "herdeiros", esses filhos de boas famílias,
que tanto cita o sociólogo Bourdieu. Em vez destes, que têm a vida
facilitada do berço à sepultura, e nunca serão arrivistas nem
"aculturados", o génio de Edison, com a sua inteligência e o seu
entusiasmo sempre presente, modernizava áreas cruciais da sociedade.
.
Gravuras de Thomas Edison
Quase construiu uma cidade para as suas instalações. Enriqueceu com a comercialização de aparelhos e inventa outros dispositivos sem aplicações comerciais. Cria um aparelho para o código morse e possibilita o telefone. Aplica-se na investigação em telefonia, aperfeiçoa o fonógrafo, cria a primeira lâmpada incandescente. Alia-se a uma bom grupo de profissionais e patenteia mais invenções. Foram tantas, que se diz atingirem 2.332 , [23] um número fabuloso, mesmo que nem todas tenham sido ideias originais suas.
Edison na Imprensa
Tal como
a época e as condições ajudaram Alexandre Humboldt a tornar-se num grande
investigador e cientista, abarcando muitas áreas do saber, assim também
já noutra era e noutras circunstâncias, Edison é por si só é um
paradigma de novos tempos e revela-se em múltiplas áreas de inventos.
Apesar de ser profundamente surdo de nascença, nada obstou a que tivesse
sempre ânimo e até ao fim da vida foi passando por fases de prosperidade
e de penúria. Nunca o desânimo se apossou do seu espírito. No cinema,
realizou uma série de filmes mudos e depois sonoros. Um dos exemplos,
que ainda hoje se pode ver, trata-se de " Frankenstein, o filho de
Prometeu" ,de 1910 e, no ano da Grande Guerra, estreava já mais um dos
seus filmes sonoros, "The Patchwork Girl of Oz".
Durante
a Primeira Guerra Mundial, a General Electric, que fundara em 1888,
entra no campo de metalurgia naval, produzindo gigantescas máquinas e
novos equipamentos para os navios construídos em diversos estaleiros
americanos. Depois, a General Electric irá tornar-se num dos maiores
centros industriais do mundo inteiro com sucesso constante até aos dias
de hoje. Estes
cientistas revolucionaram as comunicações no mundo inteiro de uma vez
por todas. Traziam, muitos sem o saber, um contributo revolucionário
para um novo tipo de estratégias fulcrais, que mudaram por completo as
formas de luta na grande guerra.
O cinema
mudo começava a fazer sucesso por todo o mundo, especialmente na Europa.
Depois dos simples documentários e dos seus êxitos junto do público,
passa a ser uma arte e indústria de massas que se alargam ao mundo
inteiro. Georges Méliès destaca-se com o aperfeiçoamento das técnicas e
ficou célebre a sua obra-prima "Viagem à Lua", em 1902. Com Edwin Porter,
inaugura-se o estilo "western" nos EUA com "O Grande Roubo do Trem" no ano
seguinte, e mais tarde o cinema tornou-se uma nova forma de manipulação
de massas com géneros adequados a veicular as ideologias dominantes.
Geralmente, o espetáculo de cinema mudo era acompanhado por música de
orquestras, ou mais modestamente apenas por um pianista, para dar
adrescido
realce às cenas, cortadas por frases elucidativas, exibidas na tela,
para melhor se entender a trama visionada. Até à
primeira guerra mundial, o cinema de Hollywood não existiu. A Europa era
pioneira e em franca expansão, mas a grande catástrofe da guerra
destruiu esta indústria florescente.
Entretanto, no campo das ciências humanas, há um incremento vertiginoso.
Já Comte revelara um otimismo histórico que mais se coadunava com a
ideologia do cientismo do que com a situação política que se vivia na
Europa. Max Weber, Simmel e Emílio Durkheim iniciam a nova ciência, a
sociologia. Nos inícios do século XXI, esta ciência humana dá grandes
contributos para estudos de novas facetas sociais e de transformações
humanas, com um cunho ambivalente entre a filosofia e a psicologia.
A
psicologia, como ciência, inicia-se em 1879 com a criação do primeiro
laboratório experimental pelo grande contributo de Wundt, (1832-1920),
que lança os alicerces da célebre introspeção, publica obras que
descortinam a mente, entre elas o seu fundamental estudo "Princípios de
Psicologia Fisiológica" , a que se seguiram as descobertas da
reflexologia de Pavlov (1849-1936) na distante Rússia, enquanto Watson
(1878 – 1958) realizava diversas experiências com bebés, nos Estados
Unidos. Depois de se interessar pelo comportamento dos ratos de
laboratório e pelo sistema nervoso central, inicia o "comportamentalismo",
uma doutrina que procura afastar da psicologia qualquer subjetividade
que lhe roubasse o carater cientifico.
A
carreira científica de Ivan Pavlov, moveu-se por entre as guerras e a
implantação do comunismo na Rússia. Viveu em extrema pobreza, com
laboratório sem condições e onde morava com a esposa que ficou tísica.
Teve de partir em busca de cura, mas nunca mais voltou. Pavlov não
aceitou um convite para ir para a Suécia trabalhar e preferiu ficar na
sua pátria. Apesar das suas críticas às deportações em massa e aos erros
da política comunista, nunca foi preso. Fora aluno do grande médico,
Claude Bernard, a quem se deve o "método experimental" e, em 1904, recebeu
o Nobel de Medicina. Se nos
inícios do século XX, foi a psicologia que estava a ter grande
popularidade, nos inícios do século XXI, a situação repete-se em função
da sociologia. A
popularização crescente da psicologia parece que se tornou num obstáculo
a que a vejam como ciência, assim já o afirmava o psicólogo Kendler, em
1971, ao mesmo tempo que, paradoxalmente, o prestígio de alguns
sociólogos é cada vez maior.
No campo
das ideias, nos finais do seculo XIX, a França foi a grande inspiração
para todo o mundo. Antes, com o Iluminismo e depois a Revolução
francesa, o espírito de liberdade, igualdade e fraternidade irradia para
o mundo inteiro. No passado, a ocidentalização da Rússia por Pedro, o
Grande, teve por base o estilo de vida francês. Mais tarde, o presidente
americano, Thomas Jefferson, dizia que todo intelectual tem duas
pátrias, a dele e a França. Haverá revoluções no mundo sem que o
espírito francês não se manifeste? Até o Maio de 68 teve a sua
influência na China e, apesar das guerras, até há pouco tempo, a
Sorbonne era um símbolo em qualquer parte, ao lado da língua francesa
que se falava nas obras mais vendidas no mundo inteiro.
Para ter
uma brevíssima noção do espírito francês, é preciso apenas recordar a
viragem que Descartes teve no pensamento moderno e a prosa única de
Blaise Pascal para se sentir que há um espírito francês. Revela-se num
determinado humanismo, sentido de humor e método que os escritores
franceses possuem. Citando o inesquecível Manuel Antunes que multiplica
as figuras deste matemático e pensador e depois o sintetiza numa só
pessoa, pode-se dizer que, neste grande mestre do espírito francês, se
tece uma teia da mentalidade própria dos franceses, mas que neste caso
único, se reuniu numa só pessoa.
Na sua
breve vida, (1623-1662) Pascal conseguiu o que ninguém mais pode reunir
num só espírito com o maior génio. Foi um racionalista, mas pré
existencialista e pré marxista, foi crente, mas há um Pascal "ateu",
empirista e fideísta. Encontrámos o teólogo, o cientista, o culturalista
e até o romântico. Também há o trágico e dialético, o grande cientista e
o físico e matemático. Em sua homenagem, o nome Pascal é a linguagem de
programação estruturada, em homenagem ao matemático Blaise Pascal,
porque o suíço Niklaus Wirth, assim o quis homenagear nos nossos tempos.
Física, matemática, filosofia e teologia, infinito e conformismo, o seu
legado é fabuloso. É o prussiano e pietista Kant, o filósofo das Luzes,
quem diz mais tarde, que Pascal diminuiu o campo das ciências para
aumentar o campo da crença. Mas também coloca o Deus abscontitus face ao
homo abscontitus.
As
linhas que traçou podem ser comparadas às veias de um gigantesco corpo
por onde circula um sangue generoso, angustiado, nem por isso menos
elegante ou menos subtil É essa multiplicidade que se encontra dividida
por tantos franceses que dá corpo a uma França generosa em bens que
distribui prodigamente por outros povos. Rabelais
não é senão uma faceta do espírito francês e Voltaire só podia existir
numa cultura racionalista onde a ironia era uma arma feroz.
Em
Mersenne, (1588-1644) descobre-se um campo cultural onde vai brotar o
espírito moderno e a nova filosofia. Este inteligente padre, fecundo
escritor e matemático que conseguiu reunir por cartas e encontros uma
plêiade de espíritos do seu tempo, que deixaram um legado precioso.
Através dos seus correspondentes, Mersenne tornou.se o centro divulgador
científico, trocando dados preciosos com os maiores cientistas da
época. Descartes recebeu dele forte influência, mas também se
correspondia com Galileu, Fermat, Pascal e Torriceli correspondendo-se
com os maiores cientistas seus contemporâneos, Descartes, Galileu,
Fermat, Pascal ou Torriceli. Mersenne organizava também encontros entre
estes cientistas e viajava com frequência pela Europa para se encontrar
com alguns deles. Este círculo alargado de cientistas europeus é por
vezes designado por Academia de Mersenne, mas o que importa é que criou
um cadinho gigantesco onde o espírito francês bebeu o que de melhor tem. Se a
pena de Molière pode fustigar as "Femmes savantes", o apreço pela
filosofia foi um dos dotes das damas do século XVII, uma delas, a
Marquesa de Sévigné (1626-1696) ficou entre os grandes escritores
franceses, pela vivacidade do seu estilo, descrição e adjetivação dos
acontecimentos da sua época. Com mais de 1.500 cartas, escritas, em
grande parte à sua filha, tem outras para os filósofos La Rochefoucauld,
Corbinelli, ou Madame de La Fayette. O sentido de humor mistura-se com
um esplêndido bom senso, que transformam os sucessos mais triviais em
deliciosa leitura.
Os
salões das grandes damas desempenharam papel fundamental na cultura para
um espírito cartesiano muito difundido e mais tarde as ideias do
Iluminismo. Houve um contributo feminino para a formação do espírito
francês.
Merece
referência o filósofo que viveu durante a grande guerra e deu um
contributo notável com as suas investigações bem originais. Trata-se de
Henri Bergson,
(1859-1941) escritor de origem judia, pai polaco e mãe inglesa.
Estudou em Paris e foi professor em diversos liceus, até passar a dar
aulas no prestigiado Colégio da França, onde retoma os grandes temas
filosóficos de sempre, mas com um cunho que o tornou único com a sua
noção de intuição, possivelmente a parte mais original da sua obra. As
suas aulas eram muito concorridas e vinham músicos, arquitetos,
desenhistas e público em geral. O Colégio passou a ser como "a casa de Bergson". Um dos seus ilustres discípulos foi William James. Sem a sorte
de Comte, os seus seguidores nem repararam muito nas potencialidades das
suas afirmações:
" Só
raramente e com grande esforço, podemos chegar à intuição; no entanto a
humanidade chegará um dia a desenvolver a intuição de tal modo que será
a faculdade ordinária para conhecer as coisas. Então, desaparecerão
todas as escolas filosóficas e haverá uma só filosofia verdadeira
conhecedora da verdade e do ser absoluto."
Henri Bergson
Também
tratou de assuntos pouco estudados então como o riso e a memória, com um
seu esprito de finura marcadamente francês. Recebeu o prémio Nobel de
Literatura. Assim tem sido sempre que um filósofo tem grande renome e
nunca a filosofia pode ser premiada pois assim o estipulou Alfred Nobel
(1833-1896). Bergson teve a sorte de não ser perseguido, pois era judeu,
e afirmava mesmo o seu estatuto, sem o querer alterar. Se bem que se
interessasse pelo cristianismo, percebeu que devia estar ao lado dos
seus, mesmo doente foi dar o seu nome à prefeitura como cidadão judeu.
O
americano William James, (1842-1920) foi filósofo e o pragmático pai da
psicologia, investigador versátil, injustamente esquecido como filósofo
e com os seus estudos originais em que abordava temas notáveis, acerca
do hábito, da aprendizagem, da vontade ou da personalidade. Por certo
que, vendo a dificuldade em avançar, os mais recentes estudos de
psicologia refugiam-se nos seus mestres, e William James foi isso mesmo,
um mestre que muito deixou para ser continuado.
Ainda Sigmund Freud,
(1856-1939) "o homem da lanterna", assim o
chamaram por ver no escuro, nesse inconsciente labiríntico, era médico e
neurologista que trabalhou com os mestres mais famosos da sua época.
Alusões a Sigmund Freud
Depois começou a idear um novo método
para a cura das neuroses e outras perturbações psíquicas. Logo nos
começos do século XX lança o seu livro mais célebre, senão o mais
importante, "A interpretação dos sonhos"(1903), e descobre esse lado
obscuro que se temia: o inconsciente, a sua força e a sua capacidade de
dominar os nossos raciocínios. Foi um golpe no pedestal do orgulho
humano. Surgem discípulos e dissidentes. Os seus discípulos dissidentes, Alfred Adler
e Carl Gustav Jung tornam-se também célebres, se bem que
seguindo caminhos diversos. Em relação às crianças, a sua discípula,
Melanie Klein, foi soberba.
A
descoberta do inconsciente e mais ainda do inconsciente infantil, mudou
a mentalidade ocidental e causou uma revolução sexual com nova perceção
da infância. O oráculo do escuro é criticado por Marx, em consequência
disso, a psicologia não pôde aparecer na Rússia e, muito menos a
psicanálise, mas Marx é também um "mestre da suspeita", tal como
Nietzsche, para completar a tríade.
A
psicanálise veio derrubar o mito do poder da racionalidade e mostrar a
força das pulsões inconscientes que não podemos controlar pois nem
sabemos a sua força em nós. O inconsciente mostra que a nossa vontade e
a perceção da realidade não são mais do que um ínfimo ilhéu acima das
águas insondáveis de um icebergue, onde o grande inconsciente mergulha e
do qual nada nos lembramos, mas do qual nada esquecemos. "A psicanálise
funda-se na palavra" mas na meta linguística e com uma outra lógica que
se separa da lógica diurna. A
descoberta das novas teorias e o filão que se descobria foi um rude
golpe na racionalidade e uma nova perspetiva do que se diz ser a
natureza humana. O senso comum e as experiências levaram a que certas
descobertas se efetuassem por pessoas extremamente hábeis em usar o
método catártico e explicar as etapas da infância e da sexualidade.
Como
todas as grandes descobertas, a psicanálise suscitou escândalos,
derrubou mitos e alterou em muito a mentalidade da época. Do lado de lá
da Mancha, em Inglaterra, o famoso Robert Louis Stevenson, escrevia "The
strange case of dr. Jekyll and mr. Hyde", uma inspirada metáfora acerca
dos mistérios psíquicos do ser humano. No meio do gosto pelo romantismo
da época, criou um personagem sombrio e assustador, um duplo de luz e
sombra, que muito deve à metáfora para explicar a dupla personalidade.
Sigmund
Freud, natural da Morávia, mas conhecido por ser um famoso médico
vienense, tinha um orgulho tão grande pela sua obra e segurança no seu
prestígio que nem temia a ameaça nazi para consigo, dadas as suas
origens judaicas. Se não fossem os amigos que o levaram para Londres, não
podia esperar qualquer respeito ou ser poupado, como aconteceu tantos
outros que não se convenciam que o Holocausto seria uma pasmosa
realidade do século XX
.Freud
chegou a ir aos EUA e aí recebido
triunfalmente por esses americanos que viam na velha Europa os valores e
os ideais simbólicos que lhes davam raízes fortes para os novos povos.
Sigmund Freud
Também
um outro grande intelectual e escritor, Nobel de 1929, Tomás Mann,
(1875-1955), ao chegar a Nova Iorque, exclamou, conforme recorda George Steiner (25) : "Wo ich bin ist die deutsche Kultur" ou seja
"Onde eu
estou, está a cultura alemã" e, se muitos tomaram a frase por
orgulho e causou algum mal-estar, o sentido das suas palavras era a
profunda responsabilidade que carregava consigo. Isso é tão real como a
sua perceção lúcida da época vivida intensamente e que podemos ver
na obra "A Montanha Mágica".
Há uma
visão de um mundo doente que se desagrega com uma doença terminal e não
há qualquer remédio ou paliativo para os fracos. O militarismo e as mais
complexas ideias fervilham no ar como se, na obra, os personagens
representassem diversas formas de estar no mundo, mas num mundo doente
em que os médicos, personagens alegóricos, com as suas teorias, e só das
teorias pretendiam retirar efeitos. O pessimismo dourado, de um
mal-estar suave, em que não se fala do mal nem da morte que só se
adivinha, dá uma noção do mundo de então. Exala de cada página uma
beleza subtil, que fascina e atrai pelo fio das palavras que nos guiam e
se enrolam e desenrolam em dias longos, pretensamente alegres, com todos
os ritos para dar sentido à vida que se apaga. Iniciada a obra em 1912,
interrompeu-a em 1915, para o publicar em 1924.
"A Montanha Mágica" (Capa)
A morte está sempre por trás da
cortina, na sua trágica negação. Na monotonia dos dias, desenrolam-se
lições profundas de filosofia, arte, política, religião, num desfiar
espantoso de captação de toda a fragilidade humana. Desdobram-se mil
formas de vida, de enfrentar a morte, diálogos e cenários que são
inigualáveis lições do absurdo e da razão, com uma sensibilidade para
cada pormenor que as tornam centros polissémicos de leituras. A
apregoada paz não existiu antes de 1914, o que realmente existia era o
poder de se sonhar com essa paz. O futuro podia ser de esperança, até ao
início da grande guerra que roubou todas as ilusões. Não se temia uma
guerra total mas alguns conflitos que seriam sanados. A França vivera
sérias convulsões sociais. Entretanto a expulsão de Marx em 1848 tornou
ainda mais revoltada a sua escrita. Mas quem representava Marx, no meio
de tanto anarquista, revoltoso, rebelde? Uma consciência que não
existia, um proletariado que desejava ser burguês ou um grupo de
intelectuais saídos das fileiras da aristocracia e da própria burguesia?
Os grandes rebeldes não o eram na prática, tal como Marx nunca se lançou
em qualquer luta na vida real.
É
injusto referir Marx sem falar de Engels, pois a este se deve o apoio na
escrita, que se pudesse dedicar às suas obras e as suas palavras
pudessem, mais tarde, inflamar tanta gente. Um sem número de revoltosos
apregoava as suas ideias, teorias, e as pequenas convulsões ficaram no
silêncio da grande narrativa que é a História. Não eram
só operários, mas filhos de burgueses ou mesmo aristocratas e príncipes
das casas reais da Europa que se manifestavam por diversas cidades, no
paradoxo do socialismo que atrai, sem lhes alterar a forma de vida
ociosa. Tantos jovens ricos apaixonavam-se por causas que nunca serão as
suas.
Acontece sempre que não se sabe quem é que lança o rastilho, mas depois
descobre-se que o fogo já está a arder no meio da casa.
Iconografia de Sarah Bernhardt
Na Belle
Époque surgia a diva sem par, Sarah Bernardt, [26] um ícone da época,
(1844-1922) que Robert Gottlieb [27] designou como "a mais famosa atriz da
história do Mundo."
Sarah
teve uma aparição no teatro que ninguém igualou. Os êxitos
multiplicavam-se logo no início e a fama rodeou-a para sempre. Depois de
surgir na "Comédia Francesa", com todo e esplendor que o teatro pode
oferecer, fez sucessivas viagens pela Europa e América, levando na
escolta uma série de cães e gatos e de admiradores, criando todas as
excentricidades que a adulação e a fama causam em quase todos os seres
humanos. A primeira biografia de Sarah apareceu em 1883. Tratava-se de
uma perfídia de uma colega e falsa amiga, Marie Colombier, que publica
"Memórias de Sarah Barnu". A obra faz furor e chega à centésima edição.
As biografias posteriores não terão tamanho êxito. A fúria com que Sarah
invadiu a casa da falsa amiga correu a cidade. A cólera e raiva da atriz
e os protestos do filho e admiradores só fizeram aumentar a venda da
obra. Se vivera pela publicidade, agora parecia morta por ela. A celeuma
à volta do caso é tão grande que se assemelha a uma enorme crise
política, tal foi a repercussão na imprensa. Durante algum tempo, Sarah Bernardt não conseguiu recuperar do escândalo mas, por fim, reagiu e
regressa triunfante, já com 40 anos, ao palco. De novo, é o sucesso.
Toda a cidade a adora e cada vez mais a sua fama se torna mundial.
Para
Aristóteles, o prestígio era o que mais queriam os seres contemplativos,
"ociosos" e poetas pois disso vinha o sopro divino para lhes dar a
imortalidade própria dos deuses, que por momentos podiam partilhar.
Para Sarah, o prestígio foi a áurea que conseguiu construir à sua roda e,
com isso, alimentou as suas originalidades, os seus caprichos, a sua
vaidade, a par de uma avultada fortuna. Se deu ao mundo a sua arte,
também soube usá-la em seu proveito. Comentava-se que levava por
comitiva, nas viagens que realizava, os seus cães e uma legião de
apaixonados fiéis, perfeitamente cativos, que se renovavam. Entre eles,
conta-se o Príncipe de Gales, depois rei Eduardo VII. Sarah seria
suficientemente astuta para usar o seu talento muito especial para
conservar esses apaixonados como seus amigos, para o resto dos seus
dias.
Sara Bernhardt
A sua
educação católica, misturada com fortes raízes judaicas, parece que não
a tocou muito profundamente. Também não se envolveu em combates do
antissemitismo que grassava. Melhor será referir que se manteve alheia a
toda a religião, fosse qual fosse. Apenas o culto chamado Sarah Bernardt
lhe dizia respeito. A nova geração da burguesia via em Sarah a
incarnação dos seus ideais com as personagens que representava. O seu
êxito, em diferentes áreas, demonstra as suas capacidades práticas bem
desenvolvidas. O talento permitiu que se tornasse empresária,
participante no cinema, em peças dos clássicos franceses, Racine e
Molière ou de Shakespeare, representando papéis masculinos como Hamlet,
ou ainda peças suas contemporâneas, como o retumbante sucesso em "A dama
das Camélias" de Alexandre Dumas, filho, influenciando tanto a grande
Ópera, como as artes de vanguarda.
Com toda
a coragem, quis representar nas trincheiras, em 1915, num dos seus
regressos dos EUA, dando espetáculos para animar as tropas aliadas.
Sofreu nesse ano a amputação de uma perna, mas teve suficiente coragem
para mesmo assim, continuar a atuar no palco. O fenómeno Sarah Bernardt
designada até como "a Divina Sarah", é muito complexo porque dependeu do
contexto cultural de uma época em que o teatro e o cinema abriam a porta
a multidões e surgiam esses grandes mitos que hoje continuam nas
estrelas de cinema e de música, ídolos das massas. Sara
Bernardt, pequena, magra e inteligente, podia até passar desapercebida, se
não tivesse um comportamento independente e personalidade combativa e
forte. Adaptava os papéis a si própria, com a arte de não se deixar
adaptar pelos personagens. Não se ia ao teatro ver Hamlet, ia ver-se
Sarah Bernardt.
Sara Bernhardt
Mercê de
repetidos êxitos, escândalos e das viagens em digressão teatral, criou
uma lenda à sua volta, em que distorcia a realidade a seu favor, não
aplicando as regras de toda a gente a si mesma. As suas viagens causam
enorme admiração. Atravessou continentes, foi até à longínqua Austrália,
visitou o Havaí e as ilhas Sandwich, chegou a atuar no Egito e na
Turquia. A Grande Guerra não teve grande impacto na sua vida e no seu
trabalho. Ao aparecer nos palcos estrangeiros, surgia como se fosse uma
espécie de distinta embaixatriz da França. No tempo da guerra, nem todos
combatiam, nem todos sofriam. Havia sempre alguém que tinha tempo para
se divertir e para ir ao teatro, se bem que o riso pudesse
tornar-se amargo. Os que se divertem, são grupos que aparecem em todos
os tempos, em todas as ocasiões, e vivem alheios aos dramas dos outros.
Sarah
adquiriu uma grande fortuna que soube administrar pragmaticamente com
ajuda de seu filho único. A sua morte, em Paris em 1923, coroou uma vida
plena de sucessos, que depois se cobriu de histórias sem fim.
Acompanharam-na no seu funeral cerca de um milhão de parisienses.
Entretanto, num campo oposto, também pobre e que se destacará do anonimato, nasce Maria Skłodowska, uma polaca, de Varsóvia, (1867 -1934), ao tempo sob o pesado domínio russo, e que devido a muitas circunstâncias aparentemente só adversas, veio estudar para Paris, vivendo épocas difíceis como estudante. A sua alimentação era extremamente parca, quase só de pão, rabanetes e alfaces, chegando a desmaiar nas aulas por inanição.
.
Marie Curie
Marie Curie
Filha de
família, sem muitos recursos, na sua juventude na Polónia, fora uma
simples perceptora de uma rica família aristocrática. Uma paixão por um
jovem da família pôs fim ao ensino, pela desigualdade social e o
afastamento da insensata e ousada perceptora. A frustração deu-lhe
ânimo, empurrou-a para a França e para estudos mais avançados, por um
convite bem oportuno do irmão. Optou primeiro por Matemática, depois
Física e depois foi-se evidenciando até chegar a ser a primeira
professora na Sorbonne.
Casando
com o físico Pierre Curie, passou a ser considerada francesa e
continuaram juntos, a trabalhar sem parar, em investigações que muito os
atraiam. Inicialmente, sem reconhecimento público, trabalhavam num
laboratório improvisado, em pobres condições. Foi com ele que partilhou
o Prémio Nobel de Física, em 1903, mais tarde recebeu de novo o prémio
Nobel de Química em 1911, pela descoberta dos elementos químicos rádio e
do polónio. No ano após a sua morte, por leucemia, devido possivelmente
aos efeitos da radioatividade, a sua filha Irene recebeu também o prémio
Nobel da Química. Em 1926, a sua outra filha Eva, escreveu a mais famosa
das suas biografias, editada pelos "Livros do Brasil".
Filhas de Marie Curie
A filha descreve uma mulher
determinada, com um espírito cientista antes de tudo, e uma vida por
demais simples e modesta sem grande arroubo afetivo. Vários filmes
relatam a sua vida. Curiosamente também atravessou o Atlântico, visitou
os EUA em 1921, com as suas duas filhas, onde foi recebida em triunfo. O
motivo da viagem era recolher fundos para as suas investigações. Paris
atraia as atenções de toda a Europa, quer pelo prestígio político, quer
pelos ditames da moda, dos espetáculos e toda a cultura. Não se trata de
reduzir uma Europa sempre tão cheia de contrastes, com fronteiras que a
cultura e a religião traçavam. Mas esse mito ainda hoje é assim falado
como se toda a Europa dependesse dessa chamada, já na altura, "cidade da
Luz", gozando de uma referência cultural única, de uma certa alegria e
alguma loucura. Era o tempo em que "os búlgaros eram bárbaros", na frase
feliz do escritor búlgaro Todorov, que quase sempre viveu em França.
Para o
escritor e socialista Eric Hobsbawm, parece que os sinais conturbados do
século XIX, não podiam nunca transformar-se no que foi para ele uma
"epidemia de guerras ao longo do século mais assassino da História",
acentuando os males da primeira Grande Guerra e a loucura nazi. Todavia
este historiador não se refere com o mesmo ardor às purgas na Rússia,
nem ao genocídio implacável de Estaline. Esses acontecimentos na Rússia
e depois o terror do maoísmo continuaram o inferno das guerras deste
século devastador. Na
Antiguidade poderão ter existido casos de guerras e séculos de horrores,
concorrentes a esta dita "epidemia" que deve ser também o tempo em que
mais se desejou a paz.
Jardins do "Passeio Alegre" - Foz Douro (Porto)
( © Levi Malho. Porto )
A mentalidade pacifista de hoje não se deve deixar embalar pelo tão pouco
tempo de paz que temos. Há sempre conflitos bem graves de que não
estamos muito cientes. O bem-estar que atinge a sociedade do ocidente é
um fenómeno raríssimo no devir da humanidade. O que era próprio da
mentalidade que chegou até ao século XVII, era o estado de guerra e não o
da paz.
Estamos
a ser muito otimistas, sem pensar no passado, nas tempestades que a
humanidade sempre viveu ou nas filosofias da história de Kant ou de
Hegel, a que hoje se recorre. Os filósofos não se cansaram de afirmar
como a guerra é uma realidade dos povos e a concórdia dos homens é um
ideal. A "Paz perpétua" de Kant é uma ideia moral e só surgiria por uma
harmonia entre os Estados. Esta seria a finalidade da História.
Alegorias pacifistas
O medo dos perigos, tal como hoje temos, com todos os sentimentos de horror,
desespero e pavor, era para Kant um meio de educar os povos. O temor das
guerras com tudo o que receámos é que as faria diminuir. Num apelo à
"astúcia da Providência" e com uma visão teleológica da história, os
males da sociedade são, paradoxalmente, um progresso histórico.
A
imoralidade conduz à moralidade e o mal acaba por gerar o bem. Hegel via
bem mais longe e classifica a guerra como uma "necessidade racional", mas
da Razão que governa o mundo e à qual os homens sem saber, obedecem.
Extrapolaria a sua tarefa de "pensar a vida" ao divagar sobre o que deve
ser o mundo, e apresentar fórmulas de governar, ou dar lições aos
políticos.
Contrariando Platão e Kant, a "Filosofia do Direito" de Hegel coloca
cada homem sem poder ultrapassar o Espírito do seu tempo. "O Espírito
particular de um Povo pode cair, pode desaparecer, mas constitui uma
etapa na marcha geral do Espírito do Mundo e este não pode desaparecer.O
Espírito de um Povo é pois o Espírito universal numa figura particular
que lhe é subordinada". [28]
Uma certa singularidade
( © Levi Malho. Porto )
A ironia
de Hegel é ser germânico, admirar Napoleão, ensinar em Iena ou em
Berlim. A sua filosofia e o último fim da história perdem o sentido ao
passarem para a existência empírica, o seu "Dasein" ou o seu conceito de
abstrato. Mantendo-se na análise da "totalidade", tem de considerar o
Estado uma realidade da vontade racional livre tal como faz, mas sem
considerações sobre a realidade do seu próprio contexto histórico.
O que
Hegel critica a Napoleão por este querer dar uma nova constituição
política aos Espanhóis, sem ter desenvolvido no Espírito desse povo a
consciência racional adequada, pode ser criticado nele quando examina o
devir dos povos aplicando uma adequação do Espírito de um Povo, grego,
romano ou outro, quando o seu progresso não pode ser percebido por um só
indivíduo, mesmo que esse indivíduo seja mais inteligente que os outros,
ou seja, Hegel. A sua
noção de que o estado natural de um país é o estado de guerra, é também
filha do tempo.
Recuando
para a antiguidade, a mentalidade dos gregos era a de estar sempre em
guerra e era na guerra e por ela que a sua coragem e o seu valor se
manifestavam. Sócrates era tão conhecido na sua época por ser soldado,
como por filósofo. Os gregos educavam-se para serem corajosos e saber
lutar sem medo. Apenas o tempo dos Jogos Olímpicos e pouco mais, é que não era de guerra. Os
espartanos aprendiam a frugalidade e o amor à pátria até à morte. Os
romanos tiveram a sua "paz romana", mas isso significava que o centro
desse Império estava mais ou menos estável, com uma mão-de-obra escrava,
que satisfazia todas as necessidades.
Quando
olhamos para o velho Egito, pensa-se nas mais de vinte dinastias que se
dissolveram no pó do deserto. Por pouco que isso possa parecer assim de
longe, quantos séculos de lutas e de destruição implacável, de
sofrimento e de dor de milhões de escravos, de povos massacrados?
Quantas tragédias, crimes e guerras sem fim se ocultam nessas areias
dos locais hoje desabitados, em ruinas e no pó das cidades, passadas à
espada, e onde não voltaria a crescer o verde da relva? Este
século XX, que representa, face a tudo isso?
Ao longo
do tempo, a relativa clareza foi substituída por confusão. Primeiro, a
linha entre conflitos entre Estados e conflitos dentro de Estados ---isto
é, entre guerras internacionais e civis--- tornou-se nebulosa, porque o
século XX foi caracteristicamente um século, não apenas de guerras, mas
também de revoluções e esfacelamentos de impérios, de enormes
progressos, descobertas fabulosas que nos espantam pela profusão e
mudança nas vidas.
Presença total da Guerra
A
questão que atormenta tanto quem quer entender um pouco o comportamento
humano, as suas motivações profundas e os seus desejos mais autênticos,
descobrir porque há sempre tantas guerras e os povos continuam a seguir
cegamente chefes que, com a maior das incertezas, os levam para o
combate. A glória
e a fama não podem ser motivos para o comum dos mortais. Afinal, são
poucos os heróis e muitos os mortos, os mutilados e os que perdem os
melhores anos da sua vida num perfeito desperdício. Haverá uma causa
ancestral na condição humana que leve
assim facilmente a entusiasmar-se
e a participar de bom grado em tantas carnificinas?
Para
Francis Fukuyama, (1952-), um economista, filósofo e político, nipo-americano,
o homem comum aceita o desafio do combate por tédio e cansaço, devidos à
paz. Para este autor, a primeira guerra mundial deve-se a isso, muito
mais do que "ao militarismo e o nacionalismo germânico, o colapso
progressivo do equilíbrio do poder europeu, a maior rigidez do sistema
das alianças, os incentivos à preempção e á transgressão ( … ) à
estupidez e irresponsabilidade dos dirigentes" e muitos outros fatores.
A visão de Fukuyama é original. Trata-se
de um entusiasmo popular. É esse entusiasmo popular que faz vibrar as
multidões, como foi o caso das cidades onde as manifestações da
população por causa da declaração de guerra entre a Áustria e a Sérvia
foram enormes, se bem que nada tivessem a ver com o caso. A sociedade
civil uniu-se sem distinção de religiões, de operários e camponeses, de
proletários e burgueses. Todos clamavam pela guerra. O que se passou em
Berlim foi descrito por uma testemunha:
"Ninguém conhece ninguém. No entendo, estão todos tomados por uma
intensa emoção: guerra, guerra e o sentimento de companheirismo."
[29]
A
hipótese de Fukuyama é de uma espécie de revolta das populações de
diversas cidades da Europa, contra uma civilização mediana, segura e
próspera. Escreve ainda que a crescente "isothymia" da
vida quotidiana já não era suficiente. A "megalothymia" ressurgia
em grande escala, não a "megalothymia" pessoal dos príncipes, mas
de nações inteiras em busca do reconhecimento do seu valor e dignidade.
Para além da sua tese conter uma necessidade de reconhecimento que cada um
tem vontade receber por parte do Outro, é a necessidade de sacrifício,
uma necessidade que não tem objeto. Essa vontade estaria exposta na
filosofia de Nietzsche, a conhecida vontade de poder, de superioridade
que quer vencer a mediania, o materialismo e o bem-estar burguês. Um
anseio muito forte, por trás do entusiasmo bélico, seria a liberdade.
Assim, a guerra, em Fukuyama, corresponderia a uma necessidade niilista
que existe sempre. A mesma vontade de reconhecimento e de superioridade
conducentes a uma criatividade existiria agora, no seio da democracia
liberal e no próprio âmago dela pode nascer uma guerra que será contra
toda a mediania e todo o bem-estar que corrói a multidão sem identidade
e que quer afirmar uma superioridade e reconhecimento que a guerra pode
dar.
A
suposição de Fukuyama não se clarifica com a entrada das tropas alemães
numa ofensiva bélica dos seus chefes, de que não partilhavam, nem da
França ou da Inglaterra na Grande Guerra, muito menos com a entrada de
tropas que nem sabiam onde ficava essa Alemanha, esses ditos inimigos e
que partiam apenas porque lhes era impossível recusar.
A caminho da "Guerra Total"
Lá, do
distante oriente, da Austrália e de outros lados, vale a pena ver uma
meia dúzia de fotos ilustrativas da partida desses soldados e todas as
teses de reconhecimento e entusiasmo se apagam. Resta a certeza da força
do poder e da passividade obediente de milhares de seres humanos,
habituados ao domínio das suas vidas. Isso não se pode afirmar sem
recorrer a outro argumento que está sempre presente e cada vez mais atua
nas massas, que é a propaganda e a publicidade. A pressão social que, com
os apelos ao cumprimento do dever, a imitação e a massificação exerce,
está bem patente. Uma publicidade bem organizada e científica constrói
uma ideologia da qual ninguém se pode libertar facilmente.
Como se
explicam as grandes manifestações de pesar pela morte de tiranos que
oprimem o seu povo, que o escravizam e o reduzem a ferramentas de
trabalho, sem pensar na força de um condicionamento total dos seus
comportamentos através das crenças neles incutidas?
Ninguém escapa
O
contexto em que se move o próprio Fukuyama tem algo a ver com as suas
ideias. É um homem do pós-guerra, sem relação com certas realidades dos
povos que viveram e passaram pelas crises dos conflitos, entraram nas
lutas muito para além da pele dos factos. Apesar de polémica, a sua tese
é brilhante e a sua visão consegue trazer boa parte do hegelianismo para
o nosso presente. Fukuyama
evoca o entusiasmo pelo sacrifício, visto de uma forma académica e
teórica. Mas, em contraprova, repare-se como vive e o que sente um jovem
estudante alemão que parte para a guerra de catorze. Muitos narram o
modo como viveram a situação.
É
curioso o facto de haver tantos bons jogadores de xadrez sábios nas suas
complexas e longas estratégias e os múltiplos planos num pequeno e
simples tabuleiro, que foram também grandes estrategas militares e
políticos. Para um jogador, um plano arriscado apenas faz perder uma
partida de tamanha complexidade que pode espantar quem de nada entende
de tal jogo. Porém, o mais assustador é que esses mesmos planos que
serviam para um bom raciocínio e memorização de múltiplas variáveis, tão
inofensivas como agradáveis, podem ser usadas de forma mortal. Há uma tal
frieza e indiferença cruel nas estratégias que conduzem à morte e ao
sofrimento milhares e milhares de seres humanos inocentes, que se pode
pensar que o real e o imaginário se unem num sonho de loucos, que levam a
lúgubres cenários de mortes e miséria, nos quais os maiores culpados se
isentam sem culpas. Os paradoxos dos títulos e medalhas são mais uma
nota que remete para a irracionalidade da condição humana.
Livro de Erich Maria Remarque
O
escritor alemão Erich Maria Remarque, pseudónimo de Erich Paul Remark
(1898-1970) deixou um depoimento
carregado de dor e desespero face ao absurdo da guerra para a qual foi
arrastado, tão inconscientemente e com uma excitação que os professores
lhe inculcavam. Esses mesmos que não iam partir, mas incitavam à luta
tantos jovens, sem bem terem noção do que se passava. A sua obra prima é
o relato emocionado e o espetáculo atroz que perpassa nas páginas que
não deixam um leitor indiferente.
Remarque
relata a sua experiência, através do personagem Paul, pois foi recrutado
aos 18 anos, o que aconteceu a tantos jovens europeus, embalado por um
entusiasmo que logo se apagou nos treinos, bem antes de entrar do
conflito. Narra todo o fervor e entusiasmo que lhe incutiram e que o
levaram a partir. Muitos dos que partiam estavam convencidos de que iam
para defender a sua pátria. Todavia,
sem o fator de encorajamento, os jovens alemães não estariam motivados,
nem partiriam tão inconscientemente para a guerra. Rapidamente, a cruel
realidade cai sobre os adolescentes de modo devastador e assim descreve;
[30]
"Os efeitos produzidos pelo bombardeio são bastante lamentáveis. O recruta recém-chegado recomeça a inquietar-se, sucedendo o mesmo com os outros dois. Um deles escapa, desaparecendo a correr. Os dois outros dão-nos bastante trabalho. Precipito-me atrás do fugitivo sem saber bem se lhe devo dar um tiro nas pernas. Ouço, neste momento, um assobio; deito-me no chão e quando me levanto vejo a parede da trincheira coberta de estilhaços de obus, ensanguentada por pedaços de carne e de restos de uniforme. Volto para o nosso abrigo."
Reino da Violência
Como
explicar o desânimo total, logo que os combates começam, o
desaparecimento de qualquer entusiasmo e cada soldado apenas resistir
porque não pode regressar, sem o peso da vergonha e da pressão social
que o condenam? Apesar disso, temos de ter em conta, quantos não
fugiram, ou não se arriscaram, desertando, ou vagamente satisfeitos por
ficarem mutilados e saírem daquele inferno. Os suicídios são também uma
outra forma de negar essa vontade de reconhecimento que tanto empolga Fukuyama. O
"leitmotiv" de toda a obra é uma busca do reconhecimento dos
outros, de uma afirmação nietzschiana daquele "sim, à vida" que encontra
uma força bem mais destruidora no leão do que poderá haver no menino.
A
questão toma outros contornos em Jean Renoir, cineasta, que confessa a
grande ilusão dessa busca de "reconhecimento" diante do Outro através do
sacrifício ao ídolo da guerra, por razões que afinal não se acredita.
O
"reconhecimento" é uma forma de orgulho, mas de quem não vive as
polémicas na pele, apenas idealiza nos mapas. As razões da guerra cada
vez mais parecem nada terem a ver com a natureza do ser humano, dado que
não se pode separar o biológico do cultural, nem nada do que é humano
ultrapassa o "nó górdio" de ser o único animal cultural.
Combate durante Grande Guerra
( http://www.greatwardifferent.com/Great_War/Lady_of_Loos/Lady_of_Loos_02.htm )
"Mas,
afinal porque se faz a guerra? Porquê, ninguém sabe mas pode
saber-se. Ser-se-á forçado a ver como em cada manhã se sacrifica ao
ídolo da guerra a carne fresca de mil e quinhentos jovens, todos os dias
para os despedaçar, é para o prazer de alguns guias, que povos inteiros
vão ao talho, organizados em rebanhos de exércitos para que uma casta
galonada a ouro escreva os seus nomes de príncipes na História. Para que
gentes também douradas e que fazem parte da mesma quadrilha, tratem de
mais negócios – por questões pessoais e questões de escritórios. E
ver-se-á logo se se abrir os olhos, que o que separa os homens não são
aquelas ideias em que se acredita, são aquelas em que não se acredita.
[31]
A Belle
Époque teria culminado com a Exposição Universal de 1900, expressão
máxima da cidade da Luz, com apoio de muitos governos, sem esquecer o
português. O intuito tem algo comum com outros similares e que se
repetirá com a exposição de Xangai, já em 2010, sob o signo da ecologia,
com forte propaganda ideológica e aparente tolerância pacífica, uma
réplica à ostentação de poder e perfeição que nos deram as Olímpíadas em
Pequim. As perguntas que estas analogias possam trazer, ficam sem
resposta. O
consumismo começou a surgir com maior bem-estar de alguma classe média
europeia, a habitação em faustosas vivendas, férias e tempo de lazer,
mais interesse pelo desporto, teatro e a ópera. A fascinação pelo cinema
iniciava uma fascinação das massas.
Aumenta
o requinte e o luxo no vestuário, as grandes festas nos palácios e nas
cortes de Paris, Viena ou Munique. Surgem os "cabarets", o "Moulin Rouge"
as danças do "can-can", o requinte do "Maxim´s". Os franceses deliram com o
ballet russo e o bailarino Ninjinski que depois veio até ao outro lado
do Atlântico. A sua coreografia de "L´après-midi d´un Faune" e de "A
Sagração da Primavera", com toda a sensibilidade aliada à sua
inigualável técnica, podem ser vistos como mais uma mudança da Belle
Époque na sua frágil perfeição. Infelizmente, depois de alcançar a maior
fama, Ninjinski mergulhou para sempre na loucura (1919) e morreu
esquizofrénico em Londres.
Iconografia da "Belle Époque"
( http://malindesign.wordpress.com/category/bookcase/design-a-snack/ )
Isadora Duncan (1877 - 1927)
foi outra bailarina muito original e
polémica que teria criado a dança moderna. De origem
americana,
com um comportamento anticonvencional, a sua arte levantou controvérsia
e muita crítica, assinalada por uma mentalidade política que a levava a declarar-se comunista, nos próprios EUA. Fica no ar até que ponto tudo
isso não era mais do que hoje se chamaria "máquina de propaganda"?
Apesar da fama, muitos consideravam-na apenas uma oportunista que se
inspirara nas antigas danças gregas, mas que não trazia nada de válido
para além do exotismo que representava. Com a idade, foi perdendo o êxito
e a fortuna. Por fim, quando vivia exilada em França, a sua trágica
morte, estrangulada por uma "écharpe" que se enredou nas rodas do seu
automóvel, contribuiu ainda mais para a lenda que deixou à sua volta.
Isadora Duncun
O início da vertigem da velocidade tomava vulto, bem como a libertação da mulher, da sua luta por maior visibilidade social, da sua presença, muito ridicularizada, ao volante dos automóvel e do seu uso da bicicleta, que lhe dava liberdade de movimentos. Em termos de mudança de estatuto, não era ainda nada que se parecesse com a luta pela igualdade de géneros e a carga de ridículo e sarcasmo era muito forte a acompanhar a interdição de trabalhos que não fossem domésticos. O dualismo do feminino burguês levantava uma grande desigualdade entre as trabalhadoras, rurais, fabris ou domésticas, e a burguesa que era dependente do pai ou marido.
"Sufragista"
Com certa importância, as sufragistas faziam a sua aparição, chamando a
atenção da opinião pública para a necessidade da emancipação feminina
enfrentando tradições, famílias e a própria polícia inglesa e americana
com manifestações e greves de fome, passando pelo desprezo e
ridicularização das suas aspirações de uma reforma que tanto tinha de
económica, de social e política, pelo direito ao voto. O aparato com que as sufragistas
escandalizavam a sociedade teve melhores resultados depois da guerra. A
necessidade de trabalhar nos locais, antes ocupados pelos homens, por
causa de toda a mobilização que obrigou milhões de homens a abandonarem
empregos e trabalhos, no seu regresso não podia retroceder na
independência e na atividade que as mulheres tinham adquirido.
Se a
mudança começou com um grupo de pioneiras que trabalhavam e se
notabilizavam, as primeiras médicas que apareciam na Alemanha e depois
em Portugal, a filóloga alemã, D. Carolina Michaelis de Vasconcelos, a
socialista polaca Rosa Luxemburgo, ou as mulheres da família Curie,
levantavam interrogações quanto ao futuro. Eram vistas como exceções e
alheias ao comum das mulheres.
Novas "imagens" da Mulher
A grande
divisão burguesa entre a casa e o emprego fraturou-se com
a queda da natalidade. Este declínio
foi uma mudança que também se relacionava com a maior baixa de
mortalidade. A
separação do trabalho caseiro do trabalho, ou seja, o que se diz
"ganha-pão" ou emprego que, por tradição, competia ao homem, não
facilitava, nomeadamente à classe burguesa, a emancipação feminina.
Economicamente dependentes do homem, quer solteiras, quer casadas,
aceitavam-se exceções quando se ligavam a ocupações ditas "femininas".
É bem
curioso que a educação de crianças não parecia desadequada, por isso foi
um das áreas, apesar de todas as limitações e reservas, que abriu mais
cedo as portas às mulheres. Porém os trabalhos domésticos podiam ou
deviam ser ocupações femininas. Então as mulheres mais pobres tinham
acesso a uma multidão de ocupações, sempre mais mal pagas do que as dos
homens, quer no campo, ou na cidade. A ideia
de competição entre os dois sexos no que toca a salários ou ordenados
diminui a emancipação feminina. Apesar de toda a luta levada a cabo
antes da Grande Guerra, o estatuto da mulher que não precisava de
trabalhar era sempre mais elevado. Se as
mulheres atingiam postos de diretoras e dirigentes, começava a ser
inconcebível pensar que não pudessem participar em igualdade na vida
social.
O Código
Civil napoleónico de 1804 deixou uma herança bem pesada e negativa na
França e não só, pois foi adaptado em muitos países. Retirava-se a
liberdade e o poder económico às mulheres, num retrocesso que só
terminou após a Grande Guerra.
Arquitectura "Arte Nova" (Paris)
( http://www.fotothing.com/vic99/photo/0f78cd29ce41d91fa76d48f4081b3393/ )
A
propaganda da visão civilizadora dos povos em 1900, revestia-se na
estética da Arte Nova, e que, após uma época de decadência e algum
menosprezo, voltou a ser uma das tendências atuais. Ao invés do
habitual, a Arte Nova não foi dominada pela pintura. Mesmo os pintores
mais estreitamente relacionados com o estilo, Toulouse-Lautrec, Pierre
Bonnard, Gustav Klimt, criaram cartazes e objetos de decoração
memoráveis. Juntamente com a Arte Nova e a sua estética juvenil chegaram
tempos auspiciosos para o "design" que se modernizou, bem como a
tipografia e os belos desenhos para os cartazes de marcas comerciais que
ainda sobrevivem.
Igual
revolução sucedeu com o "design" de moda, o vestuário e o mobiliário,
assim como o de jarras e lamparinas da agora famosa Tiffany, artigos de
vidro e joias delicadíssimas do célebre René Lalique (1860-1945) e
edifícios arquitetónicos, como existem alguns na cidade do
Porto, a livraria "Lello e irmãos", única no mundo inteiro.
Livraria "Lello" (Porto)
( http://pt.wikipedia.org/wiki/Livraria_Lello_e_Irm%C3%A3om )
Livraria "Lello" (Porto)
( http://pt.wikipedia.org/wiki/Livraria_Lello_e_Irm%C3%A3om )
VIII - APOGEU E DERROCADA DA EUROPA
Na altura da Belle Époque, a Europa tinha o domínio económico mundial.
Com um crescimento demográfico grande, mais de 44% do comércio, rondando
os 90% das indústrias no mundo inteiro, o avanço cultural, científico e
a grande prosperidade escondiam por outro lado, os movimentos das
greves, bem violentas, a miséria e os múltiplos conflitos sociais, a
situação dos
mineiros, os conflitos da classe operária, ao mesmo tempo que o
armamento bélico crescia, numa outra face mais ou menos oculta do
progresso científico.
Nos
confins da Europa, na Rússia, surgia, com apenas 26 anos, um novo czar
em 1894 e, nesse mesmo ano, casava com uma alemã, a princesa Alice,
protestante, convertida à religião ortodoxa. Nicolau II recusara casar
com várias princesas, entre elas contava-se uma francesa, irmã da
rainha D. Amélia, que se tornou esposa do nosso rei D. Carlos
.
Czar Nicolau
O casamento do czar começou muito mal assinalado para os russos mais pobres. Um trágico acidente com a morte de muitos populares, que esperavam algumas ofertas nessa ocasião, enlutou o povo. O excessivo aglomerado de pessoas teve por consequência milhares de mortos a marcar tragicamente essa data. O mesmo já acontecera com o delfim de França, que seria o rei Luís XVI, quando casou com Maria Antonieta, por causa do pânico gerado por um acidente com o fogo-de-artifício.
Czarina Alexandra Feodorovna
O povo
russo viu com maus olhos a chegada desta princesa e não se afeiçoou à
nova czarina que trazia mau agoiro, além de parecer arrogante e fria. A
corte também lhe foi hostil, apesar da sua grande beleza. Com a
irresolução que manifestará sempre, o czar, devido à morte de tantos
populares, cancelou o baile de casamento, mas logo mudou de ideias e
isso ainda mais desagradou a todos, menos à aristocracia francesa ali
presente, indiferente aos acontecimentos, e à qual o czar não quis
descontentar.
A mãe de
Nicolau II, Maria Feodorovna, foi sempre muito mais popular do que a
nora, Alexandra, tão convencida do poder autocrático do marido que
imaginava ter uma autoridade que realmente não tinha. Muito lucraria se
tentasse uma proximidade com a sogra e outros familiares. Porém mostrou
ser muito teimosa e, ao mesmo tempo, de uma grande timidez e por tais
razões manteve, tanto quanto podia, grande distância da corte e do povo.
Assim, evitando a proximidade ou o contato com as multidões, os
"paizinhos dos russos", procuravam viver como uma rica a boa
família burguesa, com os interesses centrados nos filhos em vez da
governação de uma tão grande nação. Entretanto, os cuidados a ter com o
filho varão, que por fim nascera, depois de todas as suas irmãs, tornou
a família real ainda mais distante. A criança tinha hemofilia, o que
tentavam esconder do público, e isso tornou ainda mais fechada a família
e afastada dos graves problemas do império. O povo russo vivia sob um
regime feroz e de tal submissão que essas suas condições de
constante humilhação e miséria preparam o terreno para a sujeição que
aceitaram depois da queda dos Romanov e o totalitarismo seguinte.
Caricatura "povo Russo"
O
Domingo Sangrento em 1905 marcou uma viragem no destino do enorme país.
Tal como acontecera com a tomada da Bastilha e Luís XVI, o czar não deu
o valor devido aos trágicos acontecimentos. No diário da czarina
Alexandra, as impressões que escreveu acerca do facto são de uma absurda
inconsciência e desinteresse. Está completamente longe de querer
entender o novo país que adotara, que sofria enormes privações e que já
devia conhecer melhor. Tinha os olhos postos no passado e não se
convencia de que tudo mudava à sua roda. O que
começara por ser uma manifestação pacífica, junto do Palácio de Inverno,
com uma petição ao czar, mostrava ao mundo o horror de um absolutismo
cego, com o fuzilamento de milhares de pessoas em São Petersburgo. Se
bem que ausente do Palácio, a culpa recaiu sobre Nicolau II que nada fez
para mostrar que sentia os problemas do seu povo.
A partir
daí a simpatia do povo pelo czar mudou-se em indignação que se espalhou
por campos e cidades, com o apoio de intelectuais bem ativos.
Czar Nicolau II
A face de Nicolau II mudava definitivamente para o seu povo, quase todo formado por camponeses, vivendo miseravelmente. Ele já não era aquele "paizinho" bondoso e generoso que iria socorrer o seu povo com quem formava um corpo único, quando se libertasse da nobreza corrupta e opressora.
A frase
que corria de boca em boca
--- "Nicolau
Romanov, antigo czar e presentemente assassino das almas do Império
Russo: o sangue inocente de operários, das suas mulheres e filhos ficará
para sempre entre ti e o povo russo"
destruía a áurea lenda dos czares
serem sempre aqueles protetores de todos os russos. Agora, juntamente
com a czarina Alexandra, perfeitamente alheia à gravidade da situação e
fortemente supersticiosa, passaram a ser odiados como criminosos e
opressores. No mesmo sangrento ano de 1905, a figura tenebrosa do monge
Rasputine entrava em cena, ficando junto dos Romanov, até ao seu
assassinato em 1916. O seu prestígio começou por ser entre populares,
depois alargou-se a algum clero e, por fim, junto dos czares.
Rasputine ficará na história como
um personagem tenebroso, intriguista, sem escrúpulos de espécie alguma,
cujo poder se alimentava da superstição e da fraqueza dos outros.
Imagem de Rasputine
(http://www.hrono.ru/biograf/bio_r/rasputin_ge.php)
Foto de Rasputine
(http://www.hrono.ru/biograf/bio_r/rasputin_ge.php )
Nem se sabe bem ao certo a data do seu nascimento. Natural de uma aldeia na Sibéria, sem estudos e bastante rude, nada podia prever um destino tão invulgar. Na sua terra, o culto a São Simão deve tê-lo influenciado, mas não continha os seus excessos, o álcool, roubos e mulheres. Ainda adolescente, já alguns espíritos crédulos acreditavam que tinha dons especiais e até prever o futuro. Depois de viajar, conhecer um bispo e uma seita muito estranha, casa-se na sua aldeia
, mas depois abandona a mulher e os filhos. Viajou muito por locais de peregrinação, esteve no Monte Athos, na Grécia e em Jerusalém. Passou a ser considerado "homem santo", depois de dizer que tinha visto um anjo que lhe dera a missão de auxiliar espiritualmente os povos.
Rasputine
(http://russiashow.blogspot.pt/2010/04/rasputin-santo-ou-demonio.html)
A igreja
ortodoxa queria ter um elo entre as classes altas e o povo de modo a
maior unidade religiosa. Esse papel parecia talhado na perfeição para
Rasputine e ele era suficientemente astucioso para saber como enganar a
Igreja e o clero. Com as suas artimanhas, conseguiu, durante algum
tempo, aparentar servir os desígnios da Igreja. Aproveitava-se da
tradição que atribuía aos monges de aldeia uma categoria respeitada e
honesta, num país onde a maioria era gente miserável e ignorante.
A sua
fama chegou aos ouvidos dos czares, quando aparentemente curou uma amiga
da czarina que ficara em coma depois de um desastre de comboio. Os
médicos estavam já desesperados, mas Rasputine conseguira a sua cura.
Foi através desta senhora que a czarina soube dos poderes curativos do
"monge louco". Então mais uma sombra
iria cair sobre o bom nome dos já impopulares governantes, os czares e
afetar a sua popularidade de que tanto necessitavam.
Czar Nicolau II
A czarina vivia presa a uma angústia constante por causa da fragilidade do filho Alexis, uma criança inteligente mas com hemofilia. Hoje sabe-se que se trata de uma doença genética, que se propagou na descendência da rainha Vitória de Inglaterra e afetou, pelo parentesco, várias casas reais da Europa. Como as mulheres são portadoras e só se manifesta nos homens, o pequeno Alexei, descendente da rainha de Inglaterra, padecia dessa doença.
Rainha Vitória, enquanto jovem.
( Cf. "Mulheres Imortais", op. cit., Nota [33] )
Sem grandes conhecimentos acerca das suas causas, passava por ser uma doença maldita sem possibilidades de cura. Rasputine, possivelmente por hipnotismo, acompanhava as crises hemorrágicas do pequeno czar, de um modo zeloso e eficaz que não se conseguiu nunca entender muito bem. Após essa cura, os Romanov passaram a ver nesse pérfido camponês, a salvação do filho. A czarina, em especial, acreditava totalmente nos seus poderes e ficou presa da sua nefasta influência.
Alexei
Nicolau II tentou, por diversas vezes, afastar Rasputine, tanto mais que não lhe faltaram avisos e advertências do seu caráter dissoluto e das intrigas da sua política. Mas a doença do filho e a teimosia da esposa acabaram por ganhar, devido à sua fraqueza e irresolução de sempre. A influência política de Rasputine só veio abrir mais o fosso entre a família real e o seu povo.
Alexei
A
partir de 1912, quando Alexei sofria dores intensas, por mais uma
hemorragia hemofílica, a czarina enviou um telegrama solicitando o
auxílio de Rasputine. O místico respondeu imediatamente, dizendo que
Alexei não ia morrer e que a criança ia melhorar. Conta-se que, assim
que o telegrama de Rasputine chegou às mãos da czarina, Alexei melhorou
imediatamente. A czarina Alexandra atribuiu esse facto aos seus poderes
espirituais, passando a exigir a sua presença constante no palácio, como
se a saúde do herdeiro dependesse disso.
O czar,
sensibilizado e agradecido, com a sua fraqueza de sempre, mudou de
comportamento e não apenas aceita a presença de Rasputine no palácio,
como passou a respeitá-lo como um sábio conselheiro do trono. O certo é
que essa pérfida figura se transformou num homem influente,
provavelmente usando capacidades hipnotizadoras e junto do czar,
intrometia-se em questões políticas, sem que houvesse protestos. A
nobreza, ao ver o domínio daquele monge de modos grosseiros, meio
analfabeto, e com uma vida dissoluta que não conseguia encobrir, viu-se
afastada do poder e ao mesmo tempo a sentir grande descontentamento.
Como a doença do futuro czar era mantida em segredo absoluto, o povo não
percebia as razões de tamanha ascendência. Todas as vezes que o jovem
czar tinha uma crise, chamavam Rasputine e este conserva-se junto de
Alexei, por muito tempo, em pretensas preces, até que a criança
melhorasse.
O
"curandeiro" ganhava confiança e fama. A prudência do czar começou de
novo a ver mal a presença desse "monge devasso" no seu palácio e com o
grau de intimidade dele com a czarina Alexandra e enviou-o para a
Sibéria. Aí Rasputine sofreu um atentado do qual recuperou, quando tudo
levava a crer que não podia escapar. A sua natureza forte e a robusta
saúde resistiam a tantos golpes.
Rasputine, cada vez mais, representava o símbolo da decadência e do ódio
à opressão dos Romanov. A czarina continuava sempre muito impopular e
até detestada na corte por inabilidade política. O seu
afastamento e da família que mantinha do público ensombrava a sua imagem
para maior impopularidade sempre com as suas ideias autocráticas.
A boa fama do Czar diminuía cada vez mais. Parece que não se dava
verdadeiramente conta disso e acreditava que o poder que tinha era de
direito divino, de tal modo que bastava a sua presença para que todos
os russos entendessem que ele era um imperador incontestável! Quer para
os servos das aldeias, quer para os seus ministros ou para os seus
militares e seus exércitos. Nicolau, que tanto viajou e estudou, ao
contrário de Pedro, o grande, não entendeu as lições do novo mundo para
as mudanças de toda a ordem, políticas, económicas e sociais que se
impunham urgentemente.
Czar Nicolau II
(http://novaonline.nvcc.edu/eli/evans/HIS242/Remarks/WW1CTE.html )
Agora
agrava-se o problema com essa presença de um
charlatão, louco ou impostor, esse monge que muitos acreditavam ser
diabólico, esse Rasputine, tão mal visto perto dos Romanov. Por
insistência da czarina nas capacidades do "médico Rasputine"
, a sua
influência restabeleceu-se na alta sociedade russa e passou a atender
também os cidadãos comuns que almejavam uma consulta. Falava-se que
realizava "pequenos milagres" e promovia algumas curas prodigiosas. Ao
mesmo tempo, Rasputine ganhava fama entre as mais crédulas mulheres,
principalmente da alta sociedade, conquistava a confiança total dos
czares como se fosse um chefe de estado ou um primeiro-ministro.
Mas nem
todos ficavam sob a sua influência, a inveja e despeito do príncipe
Félix Yussupov e de outros líderes russos aumentava. Com toda a
superstição, o povo via-o agora como um demónio invencível, que só
espalharia a a
desgraça sobre todos.
A sua
influência sobre o grupo feminino de senhoras é notória. Movidas quer
pela curiosidade, quer pelo fascínio hipnótico que era capaz de manter
sobre grandes assembleias e chás em que era recebido, como "homem santo"
e ouvido como profeta.
Rasputine e o meio social
(http://www.hrono.ru/biograf/bio_r/rasputin_ge.php)
Era tal o poder de Rasputine que a sua opinião acerca de assuntos do estado era tida em conta. Manifestara já a sua oposição com o facto de a Rússia entrar na grande guerra e profetizava os maiores males para os czares. Um ano antes da morte de Rasputine, em plena guerra, o czar decidiu tomar pessoalmente o comando do exército, deixando a administração pública nas mãos dos ministros e da czarina Alexandra. A situação dramática das tropas, destroçadas e sem mais ânimo, exigia uma intervenção mais direta.
Czar Nicolau II entre as tropas
( http://novaonline.nvcc.edu/eli/evans/HIS242/Remarks/WW1CTE.html )
Esta sua ausência deu infelizmente mais liberdade a Rasputine, que passou a influenciar mais ativamente ainda nas decisões políticas do país. O seu ascendente tornava evidente que as nomeações clericais tinham a sua mão e a vida na corte dependia das suas intrigas, e até se começou a desconfiar de ser um espião alemão. Claro que não levou muito tempo para que as notícias da corrupção do governo e da incompetência do governo imperial se espalhassem. Aumentava o descontentamento e o desagrado popular por se saber que a nefasta figura do monge Rasputine, que tanta influência tinha sobre a czarina Alexandra, se imiscuía fortemente nos negócios do governo, sem que ninguém lhe fizesse frente.
Czarina Alexandra
Sem medir as consequências dos seus atos, parece que o monge louco declarara em público que mandava na Rússia e que a czarina fazia o que ele queria. Pior ainda, Alexandra era de origem austríaca e não russa. Ora se a Áustria era uma das nações inimigas da Rússia, isto levantou mais suspeitas sobre a lealdade da czarina, tanto mais que o seu aliado Rasputine se opunha à guerra. Novos boatos surgiram acerca da honestidade de Alexandra para com o czar. Entretanto, na busca de aliados, anunciava-se, já em 1913, com grande realce na imprensa internacional, o noivado de Tatiana, a segunda filha do czar, com o futuro herdeiro da Roménia. Quando Nicolas retornou ao seu país, encontrou a população faminta e tiranizada e os Romanov sob forte descontentamento geral.
Tatiana ( Segunda filha do Czar Nicolau II)
Já em novembro de 1916, o czar recebera um aviso da Duma para que refletisse sobre o desastre em que o país se estava a tornar. A solução, como acontecia já em tantos países europeus, era dar uma forma constitucional ao governo. A resposta do czar foi a de alguém que não estava com o povo, mas antes se queria manter no velho poder autocrático por se considerar czar por direito divino. Assim o tinha jurado, quando fora coroado, e não faltaria a esse juramento. Nicolau, para além de ignorar a intervenção da Duma, manifestou o seu desagrado e ainda mais isolado ficava. A situação tornava-se muito delicada e, cada vez mais, o "monge louco", sem discernimento e enorme soberba, gabava-se dos seus poderes, só queria o seu bem-estar e aumentar o seu poder político.
Nicolau II e a "Duma"
Nos fins
de 1916, sem conhecimento dos czares, um grupo de conspiradores preparou
a morte do diabólico monge. Um deles era o príncipe Félix Yussupov, que
também era um personagem estranho e que cobiçava o poder de Rasputine.
Um dos relatos deste acontecimento tenebroso foi escrito pelo próprio
grão-duque.
Com um
convite do príncipe Félix para uma visita à sua residência, em São
Petersburgo, perto do rio Neva, Rasputine foi atraído para a cilada e
aceitou. Foram-lhe servidos vários bolos e vinho envenenados com
cianeto. Com o maior espanto dos conspiradores, mostrou-se cada vez mais
prazenteiro e bem disposto e fisicamente não denotava qualquer
perturbação. Já os conspiradores começavam a desesperar. Reuniram-se e
resolveram voltar para a biblioteca onde Rasputine já dava mostras de
impaciência e de querer partir. É então que disparam contra o monge.
Apesar de ferido, ainda estava vivo, mas o médico que chega ao local
declara-o já morto. Horas mais tarde, quando o príncipe Yussupov se
aproximou do corpo, Rasputine abre os olhos, põe-se de pé e tenta
asfixiar o aterrorizado príncipe. Enquanto pede socorro, Rasputine abre
os portões do palácio e foge. Apanham-no e é novamente baleado, cai e
leva uma série de pancadas na cabeça. Atiraram então o corpo amarrado ao
rio Neva. Após muitas buscas, por ordem da czarina, a polícia
encontrou-o já congelado no rio. Atribuiu-se a morte a afogamento e
legalmente por acidente. A
explicação para o cianeto não resultar, diz-se que seria por ter uma
cirrose que impediu o efeito do veneno.
Há
excessivas lendas e fantasias acerca de Rasputine, para qualquer
conclusão segura. Deveria ser um astuto aventureiro sem escrúpulos, um
hábil hipnotizador, mas que nunca deixou a sua brutalidade e vícios da
juventude. A sua bárbara morte levantou muitas especulações e o povo
considerou que o assassinato deste charlatão era uma prova de
descontentamento contra Nicolau II e a sua terrivelmente despótica
governação.
Cada vez
mais, Nicolau II revelava a sua timidez e pouca inteligência, com
carácter fraco que alterava com fortes crises de violência e
agressividade numa espécie de compensação por todas as suas
irresoluções. A sua incompetência aumentava mais por ter a seu lado uma
mulher odiada pela corte e pelo povo russo. Ficou conhecido na história
judaica como o "czar dos pogroms" pois a sua perseguição aos judeus
parecia não ter limites. É estranho como a sua natureza era fraca e
contraditória pois se era fácil de manipular, por outro lado era teimoso
e agressivo. Passou a considerar os judeus culpados por muito do que
acontecia, tornando-os bodes expiatórios o que atraiu sobre si muito
desagrado fora e dentro da própria Rússia, pelo seu cego antissemitismo.
O
romantismo foi também um movimento político e estava ligado aos
nacionalismos que surgiam no mundo. Ambos tinham uma força comum que
estimulava a rasgos de idealismo inesperados. Foi o caso de Lord Byron,
um dos voluntário que queria ir combater para a Grécia, já em 1823, para
a libertar dos turcos. Mais tarde, Antero escreveria à sua Mãe a
informá-la de que, acabados os seus estudos em Coimbra, iria para a
Itália combater ao lado de Garibaldi, (1807-1882), figura que muito
admirava, numa viagem que não chegou a realizar, mas que deve ter
aterrado a pobre senhora, com a notícia tão apaixonadamente confessada.
Talvez, partisse mesmo, mas faltou um companheiro para a loucura ser
completa.
Causa o
maior dos espantos conhecer um pouco que seja da vida heroica de
Garibaldi. Além de aventureiro que ultrapassou em muito o que pode criar
o imaginário, foi um "herói de dois mundos", entre as Américas e a
Europa e tornou-se um símbolo da luta contra todas as opressões e
tiranias. Para o
imperador austríaco, preocupado com os nacionalismos, Garibaldi era um
inimigo influente, um rebelde perigoso que, por onde quer que passasse,
levantava o entusiasmo das populações, se aliava a indesejáveis
sociedades secretas e aumentava a revolta dos descontentes.
"Rissorgimento" italiano
Era a
época do "Rissorgimento italiano", e dos nacionalismos, em nome
de uma liberdade, filha da revolução francesa ,que se espalhavam. Por
essa razão, Garibaldi pode ser visto como um fósforo que lançava fogo
nas florestas secas que ardiam logo em grandes labaredas e sonhos de
liberdade. Não surgiram espontaneamente, mas pode dizer-se que havia no
ar uma nova ideologia do romantismo que na política se revelava no
nacionalista a contrapor-se ao militarismo crescente, ao lento
crescimento de animosidades surdas que as alianças contraídas não
logravam vencer. Com uma condenação à morte pendente no reino da
Sardenha, Garibaldi rumou às Américas.
A
passagem de Garibaldi pela guerra da Secessão americana foi marcada pela
determinação que tinha em acabar com a escravatura (1861) mas
faltou-lhe, na altura, o apoio de Lincoln, a braços com a economia
agrícola sustentada pela mão-de-obra escrava. O espírito de Garibaldi
via bem mais longe e vivia para a liberdade. Por isso não combateu
nos EUA.
Foi uma figura política sempre a favor das causas da justiça
e contra a opressão, de inegável coragem, um guerrilheiro,
condottiero, tornou-se também um lutador na América, com forte
presença no Brasil na guerrilha dos “Farroupilhas” e no Uruguai.
À
Europa chegavam rumores das batalhas e feitos de Garibaldi e, no seu
regresso, tentou a unificação da Itália tão dividida na época.
.
Garibaldi
Hoje a união de locais, durante tantos séculos, rivais e inimigos, é uma utopia que aparece apenas nos momentos dos votos e no idioma com todos os sotaques a dividi-la, como manta de retalhos. Os romanos da antiguidade e os italianos de hoje tornaram-se num cadinho de povos de sucessivas invasões e ainda só pela fé católica há uma unidade espiritual romana. O sonho da libertação de Roma, que Garibaldi sempre acalentou, seria aquela unidade política que faltava para um povo tão dividido apenas unido pela cultura, religião e pela língua. Só em 1870 Roma foi conquistada e politicamente surge a unidade italiana
.
Garibaldi
Onde
está a possibilidade de um rapazinho de Nápoles se assemelhar mais a um
veneziano do que um rapaz açoriano, como aquele surfista encontrado na
praça?
Devemos
ter em mente que há no ar de uma época muitas ideias que agitam os seres
humanos. O nacionalismo aliou-se também com a situação das greves e
tumultos de um proletariado desesperado, atirado para um trabalho
alucinante e despojado da sua vida bem menos dolorosa no campo do que
nas novas cidades. Na verdade, o campesinato tinha a sua indústria bem
integrada nos seus afazeres e a grande revolução industrial é que
separou os dois espaços humanos. Nas
grandes cidades a situação tornava-se insuportável para milhares de
pessoas por causa da vida nas fábricas, com a exploração de tantos seres
humanos, condenados a uma vida breve, devido a um trabalho escravo que
não poupava mulheres e crianças, tantas vezes empregues nas minas e em
trabalhos duríssimos.
A
emigração em massa do velho mundo, por motivos religiosos, no caso dos pogroms dos judeus ou de grande miséria, é mais um das questões desta
época de progresso e crescimento económico. O "Novo Mundo" aparecia como
uma solução para a fome e indigência em diversos pontos da Europa com a
promessa de realizar um sonho de paz que a instabilidade social e
política não permitia em tantos países. Aventura, coragem do desespero,
uma oportunidade que não se queria perder e eis a entrada nos EUA, com
tanta burocracia e delongas que feriam a dignidade e orgulho de
muitos.
Alusão gráfica à "Emigração"
O tempo
não nos apagou dos olhos um quadro que havia na hospitaleira casa de um
bom padre, de vocação de raiz e tão generoso de bens e palavras, que
iluminava as almas de uma pequeníssima freguesia na subida do Pico da
Vara, no local mais alto de toda a ilha. Era uma gravura com a imagem do Titanic. No bojo da cozinha enorme, em um canto mais sombrio, a estampa
trazia a presença do transatlântico bem aprumado com um colorido que
parecia querer chamar os olhos. Vezes sem conta, serviu de lição para
mostrar até onde podia ir o orgulho do ser humano e como era frágil a
vida do homem. O pasmo
de olhar para a gravura que, dada ao olhar infantil, parecia enorme e
real, nunca se diluiu.
Quando o
grande transatlântico fora lançado à água, era tal o sentimento de
orgulho e de segurança, que alguém ousara dizer: "Nem mesmo Deus em
pessoa poderia afundar este navio." No dizer
popular, corria a lenda que aquele naufrágio fora uma prova de que o
homem não pode desafiar a natureza. Um simples icebergue punha fim a
todo o sonho do domínio dos mares.
O
gigantesco Titanic foi inaugurado em 1912 com uma viagem entre
continentes, a manifestar o orgulho da força do homem sobre a natureza.
Era um símbolo do poder sobre os mares, com todo o seu fulgor. A
tragédia, em que acabou a viagem, transformou o orgulho em medo, em
grave derrota e desilusão.
Naufrágio do Titanic ( Gravura)
( Fonte:Willy Stower / Wikimedia Commons)
Seria um
presságio do futuro, todavia também cegueira do poder que levou a
esquecer, com confiança extrema no poder das técnicas, a necessidade
comezinha dos botes salva-vidas e todas as cautelas e precauções para um
acidente. O Titanic foi um símbolo trágico do acabar do sonho e da
ilusão de um progresso sem fim de um mundo positivista e crente numa
ciência sagrada. O mito
da paz e da segurança dos povos afundava-se com esse espantoso navio,
uma maravilha da habilidade náutica, do bom gosto e da riqueza.
Graças
ao cinema, a tragédia atraiu sempre os espetadores. O sociólogo Giddens
admite que o filme, de 1997, reflete "um conjunto particular de ideias e
valores com que as assistências pelo mundo fora conseguiam
identificar-se." Uma das temáticas centrais do filme é a da
possibilidade do amor romântico vencer as diferenças de classes sociais. É de
notar que antes já outras peliculas tinham tratado do tema com êxito bem
mais modesto mas que também atraíra o público. As tragédias exercem um
fascínio sobre as multidões de todos os tempos e a ilusão, que o
imaginário cria, à roda de um perigo domesticado e inofensivo é também
um fator a ter em conta.
O horror
é tanto mais forte quanto mais o público se sente protegido. O belo
horrível que acompanha a tragédia, que os espetadores esperam desde o
início, provoca um prazer que quebra a monotonia de um quotidiano que
não oferece perspetivas à vida nas megacidades programadas até aos
ínfimos pormenores
.Por
outro lado, o "complexo do Titanic" tem sido visto por outros autores,
como Bauman e Jacques Attali, de um outro curioso modo. Afirma Bauman
que nós é que somos esse Titanic. "Todos nós imaginamos que existe um
iceberg esperando por nós, oculto em algum lugar no futuro nebuloso, com
o qual nos chocaremos para afundar ouvindo música" diz Attali por ele
citado.
O futuro
de cada um de nós tem, algures, um icebergue, que nos aguarda
pacientemente.
A obra "O Declínio do Ocidente" [32] só em 1918 apareceu à venda. Oswald Spengler, ( 1880-1936), o seu autor, tinha então 30 anos, mas a obra deve muito à sua juventude pois já antes da guerra estava a preparar o seu trabalho.
O êxito estrondoso não se deve apenas ao período em que foi publicado o seu trabalho. Encerra um sentido muito mais profundo. Trata-se de uma obra de filosofia da história que condensa ideias pessoais e alheias, marcadas por uma capacidade única de cativar o público, assim afirmava o tradutor e filósofo Ortega y Gasset..
Os factos, " a pele da História", não são tratados como os historiadores preferem. O tratamento original,do que Spengler entende por história, é também algo filosófico, original e fascinante. É com interrogações que Spengler fala da existência da história. "História é a forma pela qual a sua imaginação [do historiador] procura compreender a existência viva do universo em relação a sua própria vida, emprestando-lhe assim uma realidade mais profunda. Será o homem capaz de construir essas formas?" [tradução nossa]
Os acontecimentos têm um cunho vital que os insere num contexto mais vasto, ao qual as datas são alheias? As interrogações, que muito seriamente o autor levanta, referem-se a um passado que quase todos os historiadores aceitam sem relutância como reais quando foram fabricados mesmo na época a que se referem. O sentido histórico não existe em todo o lado nem é muito antigo. "A filosofia", disse Galileu numa passagem famosa do seu "Saggiatore", "está escrita na língua matemática no grande livro da natureza".
Ainda estamos à espera do filósofo que responda a estas preguntas: Em que língua está escrita a história? Como lê-la?"Spengler confessa que tinha a obra preparada, bem antes da Grande Guerra, e que a sua organização levou três anos. Em 1912 já decidira o seu título e, com o seu estilo profético, a obra está carregada de exemplificações dos enganos de governantes que se identificaram com exemplos de heróis do passado. Esse fascínio por uma figura histórica, com a qual se querem identificar, muito contribuiu para ações bem nocivas para os povos. Tal facto não é anedótico e tem muito a ver com uma falsa continuidade para conduzir o futuro. A admiração de um governante por um grande herói, seja ele o lendário Alexandre Magno, César ou Carlos Magno, nada de bom pode trazer quando o sentido histórico tentar cimentar o futuro remetendo para glórias do passado.
Spengler não podia deixar de estar fortemente influenciado pela atmosfera desoladora da guerra e seus efeitos e nunca a sua obra podia perder o tom do anúncio de um declínio que se realizava diante dos seus olhos. O ambiente onde se respira cria um cenário para pensar nos factos do passado de certo modo conducentes ao presente.
Fio de Água
( © Levi Malho. Porto )
O problema agrava-se ao ver na história alguma semelhança com a natureza e as suas leis. A descoberta de leis que se pudessem aplicar para sempre aos factos do passado tornaria a história uma ciência de inegável rigor. Porém as causas não são as mesmas quando o historiador investiga e as consequências são as que deseja ver e entre as que acontece escolhe.
Ainda recorrendo a Spengler: "Basta falar de uma data para se saber como se manipulam causas e consequências a partir desses factos. Uns verão a comuna de Paris, outros os pogroms dos judeus na Rússia. (…) Petrarca, que foi o primeiro arqueólogo apaixonado — a arqueologia até é uma expressão do sentimento de que a historia se repete — pensava em Cícero ao pensar em si mesmo; e, não faz muito tempo, Cecil Rodes, o organizador da África inglesa do Sul, ele que possuía na sua biblioteca as antigas biografias dos césares, traduzidas expressamente para si, pensava no imperador Adriano, ao pensar em si mesmo. A desgraça de Carlos XII de Suécia foi que desde muito jovem usou no bolso a Vida de Alexandre, por Curcio Rufo, e quis imitar este conquistador."
Indo mais atrás, é no mito que mergulha a história. Alexandre acabou por se convencer da sua origem divina. Já a forma de pensar na antiguidade se relaciona com as lendas e mitos e até César considerava que a sua ascendência vinha de Vénus, o que hoje nos deixa perplexos mas, pelo menos para César, não era uma ideia absurda. Tal como prudentemente se nota, é muito complexo ter uma noção clara das distâncias e assim com estas distâncias no tempo que nos separam tanto do pensamento na Antiguidade, como também de Spengler.
É impossível reviver esses estados de alma, devido a termos uma outra consciência da realidade. De modo algum, se pode imaginar recriar a mentalidade de outras épocas. A interpretação do observador dos factos passados implica uma dupla subjetividade que não se pode vencer. A obra deste singular autor procurava o que ainda ninguém intentara segundo ele mesmo escreve: "O universo como história, compreendido, intuído, elaborado em oposição ao universo como natureza! Este é um novo aspeto da existência humana, cuja aplicação prática e teórica não foi nunca feita até hoje. E, ainda que talvez pressentido e por vezes suspeitado, nunca se arriscou nada a precisá-la com todas as suas consequências." Colhido possivelmente de Hegel, a noção do devir histórico, Spengler remete para ciclos biológicos a vitalidade dos povos. O paralelismo entre a biologia e a história explica-se pelo contexto da época. De um modo singular, há um certo darwinismo evolucionista que mostra a força das ideias que cada época enaltece.
Com a conferência de Viena, nos inícios do século XIX, que marca a derrocada de Napoleão Bonaparte, surgiram uma série de monarquias dividiam os povos germânicos e não só estes. O sonho de unificação aparece, não pela Casa de Habsburgo da Áustria, mas da Prússia e vem mostrar os frutos ainda verdes da Revolução Francesa.
Em Viena, com as valsas de Strauss por vago pano do fundo, continuava a reinar, cada vez mais solitário e intransigente, o Imperador Francisco José I, enquanto o rei das valsas desaparecia. Enchera de alegria festas e bailes eufóricos, bem simbólicos para saudar a Belle Époque.
Johan Strauss, um dos três músicos Strauss, é o que melhor representa a época confiante, elegante e a euforia da ilusão e do luxo. Agora, o cenário político escurecia cada vez mais. A valsa do belo " Danúbio Azul" era uma fantasia musical que, na geografia europeia, traçava um percurso sinuoso a unir países, tão diferentes que se dilaceravam entre si, por entre lutas e conspirações. Depois da reconquista da Lombardia e da Hungria, o império austríaco mantinha todos os seus largos territórios sob mão de ferro, até ter de fazer cedências com um governo mais generoso para acabar com as lutas internas.
Hungria ( Gravura )
O imperador Francisco José passou por tão grandes infelicidades, que até se dizia que o seu longo reinado era um mal enorme que caia sobre a sua cabeça, depois de todos os golpes que suportou, mantendo sempre o seu caráter austero, disciplinado e reservado, no meio de uma corte requintada. A sua educação foi influenciada por teses de governação autoritária e de direito divino que urdiram esse efeito. Sendo educado para reinar, não veio a demonstrar as boas qualidades que lhe eram exigidas pelas situações. É possível que a noção de autocracia, que tanto marcava as cabeças coroadas, lhe roubasse a lucidez, o que foi uma atitude frequente e fatal nesse século XIX.
A Hungria foi beneficiada, com grave descontentamento dos povos eslavos que se viam preteridos. A Prússia, quando surge Bismarck, passou a ser uma ameaça constante. As tentativas para manter uma falsa unidade entre os países do império que dominava, tornou a longevidade do imperador Francisco José numa questão bem crítica. Com as suas ideias centralizadoras do poder, de uma obstinação cega, centrada em teorias já sem vigor, era um entrave para o governo seguro de tão grande império.
Um novo inimigo ia surgir com toda a subtileza e diplomacia. O imperador passou a ser observado com toda a atenção pelo ambicioso e calculista Bismarck que tinha um papel reservado para esse governante, nos seus planos políticos de imperialismo alemão. A duração do reinado de Francisco José vai do conturbado ano de 1848 a 1916, em plena guerra mundial. Um longo período que durou 68 anos, é o terceiro mais longo da história europeia, depois de Luís XIV da França e de Johann II de Liechtenstein.
A rainha Vitória 1819-1901) o Reino Unido, teve também um longo governo e agora Isabel II tem o seu jubileu o que a coloca ao lado destes longos trajectos políticos, por vezes, bem trágicos ou turbulentos. Podemos mesmo esperar que Isabel ultrapasse os seus antecessores. Todavia, o poder que exerce é muito diminuto e é mais um ícone que os ingleses preservam e alimentam, com grandes benefícios económicos em termos de turismo e atração.
Rainha Vitória
No século XIX, o imperialismo britânico tinha contornos diferentes. A economia atravessava uma época muito favorável com a revolução industrial, um proletariado submisso e escravo e uma expansão enorme das colónias que eram um excelente recurso para as importações e exportações por tão variadas terras. A distância que separava os ingleses das vastas colónias possibilitavam uma paz interna que não podia acontecer no império austro-húngaro.
O paradoxo do imperialismo industrial inglês encontrava-se no modo de tratar o próprio povo inglês, com tamanho desprezo pelo seu sofrimento e miséria, operários famintos, mulheres e crianças em condições desumanas, tal como tratava os povos submetidos e desprezados, quando se reflete sobre o atávico orgulho e racismo britânico diante do resto do mundo.
O imperador Francisco José não podia ver o seu governo sob tão bons auspícios. Casou jovem, ainda nem tinha feito 24 anos, por uma forte paixão, que os românticos chamam "amor à primeira vista" pela prima, Elisabeth da Baviera. A sua mãe, Sofia já tinha o casamento prometido com Helena, a irmã mais velha de Elisabete. A paixão por Sisi, como era tratada por familiares e amigos, depois veio a tornar-se conhecida por Sissi, não foi sensata nem benéfica. A bela imperatriz tornou-se num mito que a tornou um ícone. O casamento realizado, aparentemente com tanto afeto, foi afinal muito tempestuoso.
Família Imperial Austro Húngara
O historiador Ulrich von Otto-Kreckwitz, sobrinho em terceira geração da imperatriz, tem um depoimento pouco conhecido do público:
"Francisco José amou muito essa mulher. Eles tiveram quatro filhos: a primeira morreu cedo, depois veio a duquesa Gisela, o príncipe herdeiro Rudolph e, em seguida, a última duquesa, que sobreviveu a todos".
Sem mostras de desvelo pelos filhos, a sogra, a velha imperatriz Sofia, também sua tia, foi quem mais os educou. Em breve, repetiam-se violentas discussões no palácio. Os temperamentos tão diferentes não podiam conciliar-se. Francisco José não apreciava a música, nem a poesia nem deveria ler muito mais do que relatórios e documentos militares. Estava assoberbado de trabalho e problemas. Sem grande interesse pelos assuntos de Estado, Elisabeth [33] gostava de andar a cavalo, de ler, viajar, do campo e escrevia poesia. Na vida da corte e politicamente a Imperatriz não teve papel de relevo. Apenas mostrou um interesse esporádico pela Hungria e até aprendeu essa língua, mas que depois esfriou. Foi à Itália, com o marido, num pesado roteiro de cidades ocupadas.
A lenda coloca em destaque a ida do Imperador e Elisabeth à ópera de Milão na estreia de Nabuco do compositor Verdi. O imperador exigira que fossem todos os nobres da cidade, mas estes enviaram os seus criados todos vestidos de preto em sinal de luto. [34] Quando soou o canto de lamentações dos hebreus na Babilónia, o público em peso aplaudiu fortemente como forma de protesto e um ataque frontal à coroa. Ainda assim, fala-se que os italianos foram sensíveis para a simpatia e formosura da imperatriz. De uma beleza rara, todos a admiravam e chegou a ser chamada "a princesa mais bonita da Europa".
Sissi
Com uma cultura frágil e uma educação deficiente, pois casou aos 16 anos, teve a surpreendente sorte que a colocou no trono e tornou-se excecionalmente vaidosa. Cuidava constantemente da sua beleza que, de alguma forma, era o seu capital. Sissi sabia bem que dependia do seu aspeto físico elegante e franzino, dos seus cabelos que desciam até aos joelhos, da tez de mármore e da elegância frágil de adolescente que teimava em manter.
As grandes dietas perigosas, os exercícios e todos os meios usados para não engordar, denotam uma anorexia nervosa. Aliás, essa hipótese nem é nova e já foi um caso estudado. Usava máscaras de beleza exóticas, que colocava no rosto. A dieta demonstrava ser a que uma anoréxica segue, com aversão a comidas sólidas, à base de sopa líquidas e frutas. Com tudo isso não é de admirar que, com mais idade, quase no fim da vida, lhe aparecessem doenças devido à desnutrição e depois teve alguns problemas pulmonares.
Exasperava-a a etiqueta e severidade da corte, quando a sua juventude e beleza queriam liberdade e admiração de todos. O seu sobrinho neto, Ulrich von Otto-Kreckwitz, considerava-a como "uma mulher extremamente vaidosa, muito egocêntrica e narcisista."
Beleza sofisticada
Enquanto foi jovem, Sissi, procurou que lhe pintassem muitos retratos e quadros que queria ver publicados. Pretendia assim que a sua beleza ficasse bem documentada. Mas depois, o seu mito era mais complicado de manter. Conseguiu conservar uma aparência de juventude para as multidões porque os seus quadros, depois de fazer trinta anos, passaram a ser retocados e vendidos com datas posteriores, para que ficasse, na memória de todos, eternamente jovem. Não queria que ninguém a visse velha, nem de modo algum os estragos que a velhice trazia à sua antiga e fascinante beleza. Realizou a façanha de manter-se viva na memória popular como eternamente jovem. Não há retratos dela depois do trigésimo aniversário. O lento desgaste que o tempo trouxe à sua beleza era-lhe insuportável. Escondia os seus dentes postiços, o rosto já bem enrugado com véus e discretos chapéus, sem a bela cabeleira que tanto orgulho lhe dera. Depois da trágica morte do seu filho Rodolfo tinha mais razão de ser, para que não a vissem de perto ou na corte e continuou a deambular pelo mundo fora. As suas despesas eram enormes, mas o imperador satisfazia-lhe todos os caprichos.
Logo após o nascimento de Rodolfo, depois de já ter duas filhas, o casamento começou a deteriorar-se. Sabia-se da infidelidade do imperador e também das fugas da corte que Sissi oportunamente lograva, no seu deambular sem objetivo, pelo mundo. Na sua velha e ilustre família, os Wittelsbachs, havia já um longo historial de instabilidade mental e não podemos esquecer o seu primo Luís da Baviera.
Imperadores Austro-Húngaros
É no tumulto dos acontecimentos que o passado mais se afasta de casa. Tornou-se comum ouvir já tão repetidamente o coro dos hebreus "Va pensiero" tornado até já um kitsch de "toque" de telemóvel. Um outro kitsch de êxito estrondoso foi o da trilogia cinematográfica de "Sissi", que nos mostrava uma idílica Baviera e um império austríaco de fantasia. Famílias de sonho, o excêntrico duque Maximiliano, quase sem defeito algum, e uma esposa adorável. É curioso o facto deste romantismo dos anos cinquenta atingir um enorme sucesso europeu que prendeu os próprios alemães e austríacos.
O filão do fim do século, com toda a exuberante alegria da época aparece, com músicas de Strauss e a Belle Époque. Teve continuidade fílmica do género, mas com forte decréscimo de êxito do público. A bela princesa que casa com o rei entusiasmou o público, distante dos acontecimentos e não passava de uma fantasia que a tragédia da vida mancharia de sangue, vaidade, loucura e sofrimento.
Nos anos cinquenta do século XX, a atriz Romy Schneider, apoiada pelos pais que orientavam a sua carreira, contribuiu muito para a lenda e para o mito de Sissi. Nos filmes dirigidos por Ernst Marischka, a linda princesa da Baviera era uma jovem bondosa e bem simples, nada semelhante à realidade. Sisi, que passou a ser conhecida por Sissi depois dos filmes, foi uma esposa triste, sujeita a crises de depressão, muito vaidosa e com dietas incríveis. A sua obscura personalidade pode ser revista no Museu Sissi, existente no Palácio Imperial de Hofburg.
A este mito veio juntar-se outro, o da princesa Diana do Reino Unido, que também era jovem, bela, anoréxica e deambulava pelo mundo sem grandes objetivos, para além de se afastar da casa real e da respetiva família.
A imperatriz Elisabeth morreu tragicamente, ainda nova, aos 61 anos, junto ao lago de Genebra num dos seus muitos passeios e viagens que a afastavam de Viena. Foi assassinada por um tresloucado anarquista, Luigi Lucheni que há muito dizia desejar matar alguém célebre para atingir a notoriedade
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Assassinato da Imperatriz Elisabeth
Elisabeth era mãe do príncipe herdeiro da casa de Habsburgo, Rodolfo, cuja morte em 1889, aos 31 anos, em circunstâncias muito sombrias, lhe terão talvez aumentado a depressão e tristeza. Na altura já tinha mais de 50 anos e, acrescia agora mais um pretexto para se afastar de Viena. Porém, mesmo quando a família se destroçava e a solidão o rodeava cada vez mais, o imperador não alterava a sua disciplina e rigor. O seu isolamento foi progressivo. Nunca foi muito próximo dos filhos. Educado por um mestre militar, teimava que o filho, Rodolfo, também o fosse, e de modo algum, menos austero ou transigente
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Príncipe Rudolfo
O pai governava desde os 18 anos. Nascera em 1830, no palácio de Schönbrunn, em Viena, o mesmo palácio onde veio a falecer. Durante o seu governo foi imperador da Áustria (1848-1916), depois também rei da Hungria (1867-1916), onde foi coroado com a esposa na catedral e, pode dizer-se que ainda foi o último governante da dinastia dos Habsburgo com alguma influência. Restabeleceu a ordem no Império e restaurou o domínio da Áustria na Confederação Germânica (1849-1850), teve de jogar diplomaticamente com a Prússia e depois ver o seu poder e o império desmantelar-se.
Enfrentou a morte do filho, depois da esposa e muitas outras tragédias de família. A grande guerra alcançou-o numa idade em que não podia já ter uma visão adaptada aos acontecimentos. Pode dizer-se que a Áustria não atuava, apenas reagia. Já Bismarck apontara a sua diplomacia para abater o poder austríaco e a primeira grande guerra atingiu o povo deste império, dilacerado por conflitos internos, incapaz de uma ação forte.
Ironias ao isolamento austríaco
A perda do sucessor direto, Rodolfo, ao trono austríaco foi mais um trágico acontecimento, cuja explicação mergulhou nas trevas. O príncipe herdeiro, primeiro educado pela sua avó Sofia, recebeu depois uma educação militarista. Enquanto criança, o pequeno arquiduque assistia a muitas discussões, entre a avó e a mãe, que o devem ter magoado e dificilmente esquecido. Um acidente, de queda de uma árvore, pô-lo muitas horas inconsciente. Depois disso, nunca mais deixou de ter terríveis enxaquecas.
A sua educação era espartana. Chegavam a levantá-lo da cama, a meio da noite, para lhe darem um banho gelado e até teve de marchar no inverno, com neve até aos joelhos. Tinha crises de grande agressividade e teimosia. Na juventude, passou a ter ideias pouco avisadas, liberais e bem revolucionárias, opostas ao pai e ao império.
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Arquiduque Rudolfo
O seu casamento, por conveniência, com uma jovem extremamente nova, a princesa belga Estefânia, fora um desastre e, por entre muitas aventuras, ligara-se a grupos da ala liberal. As consequências políticas das suas ideias preocupavam o pai, também pelas suas amizades e ideias revolucionárias. O seu comportamento era altamente reprovável e começou a tomar alguns sedativos para conseguir suportar as dores de cabeça. Tornou-se cada vez mais instável e encolerizado por ter ficado doente. Não se pode esquecer a sua carga hereditária, quer de antepassados, quer de sua mãe. Todos pertenciam à Casa de Wittelsbachs, cujos membros já manifestaram diversos distúrbios mentais. O peso da hereditariedade foi, neste findar dos impérios, uma das trágicas heranças das casas reais.
O presumível duplo suicídio do arquiduque Rodolfo, juntamente com a baronesa Maria Vetsera, no pavilhão de caça em Mayerling (1889) tornou-se um enigma histórico que o caso amoroso não parece justificar.
Arquiduque Rudolfo e Maria Vetsera
As mais diferentes teses apareceram. A hipótese de assassinato quer por ciúmes da esposa, a princesa belga Estefânia, quer por esbirros franceses ou então duplo suicídio. Também não se pode esquecer que era parente de Luís II da Baviera, cujo comportamento e suposto suicídio, tantas suspeitas levantaram. As teses de assassinato têm mais peso do que o suicídio, pois os vestígios de luta eram visíveis e a jovem baronesa Maria Vetser, que estava com ele, não fora morta a tiro. As suspeitas caem sobre inimigos franceses e até sobre o pai, o próprio imperador Francisco José, aterrado pela vida rebelde e dissoluta do filho que punha em risco o império. A tese de suicídio foi retomada por Peter Peetschener (1960), com base em documentos do historiador Ernst von der Planitz, que se referia a rumores dos dois suicidas terem descoberto que eram irmãos consanguíneos, pois Maria seria filha natural de Francisco José.
O mistério que rodeia Mayerling é bem mais complexo do que um suicídio amoroso. O príncipe Rodolfo era muito instável e, depois de tantos casos amorosos, este foi mais um, derradeira paixão por uma adolescente de 17 anos. A suspeita de que não se tratou de um duplo suicídio, coloca Maria Vetsera como testemunha perigosa de um assassinato que mudou o curso à história. As provas forenses são complexas, como, por exemplo, a jovem não ter levado um tiro na cabeça, mas o crânio apresentar sinais de ter sido agredido por um pesado instrumento. O cadáver do herdeiro da coroa mostrava sinais de feridas nas mãos e no corpo, o que leva a especular acerca de uma forte luta, antes da morte. Sendo esquerdino, a arma que segurava na mão direita era mais uma discrepância que reforçava a tese de assassinato.
As provas nunca serão desvendadas, mas o caso é dos mais misteriosos dessa época. Toda a vida do arquiduque era um turbilhão de aventuras e nada de bom pressagiava a sua conduta. Ao contrário, o seu primo Carlos, (1887-1922) que afinal veio a herdar o trono, manifestava qualidades excecionais. Tanto em cultura como em caráter, Carlos I manifestou tais capacidades que causaram a admiração de todos os que lidaram com ele.
Havia muitos rumores de Rodolfo estar a conspirar contra o pai, para se apoderar do trono e, agentes do ministro Taaffe, foram encarregados de o fazer desaparecer.
Mayerling
A princesa de Bourbon e Parma Zita, última imperatriz da Áustria, já viúva e muito idosa, confirmou muitos rumores existentes à roda deste mistério. Havia fortes suspeitas de que fosse obra de assassinos franceses a mando do presidente Clémenceau, para abafar a conspiração preparada para derrubar o imperador Francisco José e colocar o herdeiro no trono.
O arquiduque, com toda a sua impulsividade habitual, acabara por não aceitar a proposta e terminou por ser morto para abafar o caso. O mistério que rodeia esta tragédia aumenta a curiosidade, mas os historiadores concordam em que nunca se desvendará a verdade.
A indústria do cinema não alcançou grandes êxitos com este assunto, apesar de todos os seus elementos de paixões e tragédia. A pelicula tinha falta de contexto político e da realidade que lhe retiram o interesse histórico. Mesmo quando apostaram em atores famosos, dececionaram as multidões com um certo vazio na trama e ficou a suspeita de que por trás das cortinas dos belos salões se ocultavam segredos, conspirações, ambições e muitos medos.
Se bem que a sua ação autocrata continuasse, Francisco José tinha mais desilusões com o seu irmão Maximiliano, (1832-1867), que o obrigaram a retirá-lo de Milão. Os austríacos foram expulsos da cidade,esta foi anexada ao Reino de Piemonte e dois anos depois, Reino da Itália. A libertação deu-se com uma intervenção militar dos franceses e os piemonteses a que Garibaldi e sua tropa de guerrilha deram um forte contributo.
Milão era um velho centro cultural e, depois da euforia da entrada de Napoleão Bonaparte em cena, com o Congresso de Viena, a Lombardia passou para a Áustria. Os austríacos não eram reformadores, mas antes passaram a ser mal vistos pelos milaneses em grande parte seus inimigos. A violência rebentou no heroico "Cinque Giornate" de 1848, que significa cinco dias de combates de rua contra os estrangeiros que representava esse governo chefiado por Maximiliano. A vida deste arquiduque foi sempre sob o signo da tristeza e da instabilidade.
Maximiliano, segundo consta, seria apenas meio irmão de Francisco José, pois era filho de Sofia, mas o pai era o filho de Napoleão Bonaparte, duque de Reichstadt ,[35] e não do arquiduque Francisco Carlos. Depois de uma juventude no mar, conheceu a princesa Amélia de Bragança, filha de D. Pedro I do Brasil e D. Amélia. Seria com ela que quereria casar-se, mas a princesa faleceu muito cedo na Ilha da Madeira, em 1853.
Sendo D. Pedro, primo de Maximiliano e de origem austríaca, o exemplo deste rei trouxe má influência para o decorrer da vida do arquiduque. As relações foram sempre frias da parte do Brasil, por sua vez, a braços com guerrilhas internas. O casamento com Carlota, filha única do rei Leopoldo I da Bélgica, teve razões de interesse. Endividara-se muito, principalmente pela construção do grandioso castelo "Miramare", em Trieste, o único porto livre do império austríaco nessa altura, nas margens do mar Adriático.
Apesar de muito jovem, a princesa Carlota mostrava ser muito ambiciosa e sair de Milão com um vice rei, detestado representante dos Habsburgo, parecia-lhe um exílio que execrava. Mas o liberalismo de Maximiliano tornara-o suspeito ao imperador seu irmão, que temia a sua influência na Hungria, por isso o rancor do casal voltava-se contra a sua sorte e Carlota acirra o ânimo do marido, dizendo-lhe que valia muito mais do que o irmão.
Castelo "Miramare" - Trieste
Princesa Carlota
Encontram apoio em Eugénia de Montijo, esposa de Napoleão III, que quer favorecer os amigos. Assim Maximiliano cai sob a má influência de Napoleão III e dos planos económicos e expansionistas dos franceses. Foi fácil convencê-lo de que poderia instaurar no México uma monarquia católica. Para Yves Bruley, [36] os europeus esqueciam-se que " esse país tinha um exército e tinha um povo". O ministro Metternich oferece a Maximiliano a coroa da Grécia. Mas, para maior furor e indignação do ambicioso casal, Francisco José afirma que consente na ida para o México, se o irmão renunciasse a todos os direitos de arquiduque da Casa de Habsburgo.
Com todo a desmedida pretensão, a imperatriz Eugénia entusiasma-se com esse plano, porque defendia o autocratismo político e os direitos temporais do Papa. A ideia de uma nova monarquia afigurava-se-lhe mais um país católico, tanto mais que havia o exemplo do Brasil. Para a sua mente pouco culta e de espírito fútil, as investidas europeias na América latina eram as de " civilizar e monarquizar" aqueles Estados, (…) e já via na região lugar para instalar tronos para a numerosa nobreza europeia e seu excesso de príncipes."
A princesa Carlota, com toda a sua frustrada ambição, sonhava com um título que a colocaria a par da imperatriz Elisabeth da Áustria e de Eugénia da França. Os arquiduques de Miramar querem uma desforra por estarem sempre em plano secundário. A princesa Carlota não refletia sobre as consequências de se tornar imperatriz numa terra onde o seu nome nem sequer era conhecido. A ambição e a leviandade só trouxeram a desgraça do Arquiduque, seu marido, já marcado por um anátema de ser sempre inferior a seu irmão.
Princesa Carlota. Imperatriz do México.
Era um sonho que se revelou uma tragédia. A ingenuidade e fraqueza de Maximiliano só podem ter algum sentido quando se pensa que se sentia sempre em segundo lugar face ao seu poderoso irmão. Por outro lado, as suas ideias liberais serviam o jogo de interesses da França, da Inglaterra e de outros. Era excelente para os franceses contarem com aliados nas Américas e até se podia transformar esse país numa espécie de colónia para a exportação e importação de produtos. O imperialismo francês era muito pouco extenso, face aos ingleses, seus inimigos de sempre. A aventura mexicana, de uma estranha imprudência, mostrava o desconhecimento de um povo e a noção de uma superioridade que não tinha nada a ver com entendimento firme sobre a realidade do que era o México. O plebiscito que antecedeu a sua chegada foi encomendado pelos franceses e deu a resposta que eles queriam.
Quaisquer comparações com o que se passava no Brasil, só prejudicavam ainda mais a visão que se podia ter da América latina. Julgavam os franceses, apoiantes de Napoleão III, que a guerra de secessão dos EUA, absorvendo os interesses dos americanos, e as lutas entre liberais e conservadores mexicanos, eram favoráveis ao estabelecimento de uma monarquia com o apoio da Santa Sé, tanto mais que fora uma colónia católica espanhola.
A juventude e a ambição arrastaram Maximiliano para uma farsa, da qual não se apercebeu, com as suas ilusões e seus ideais liberais. Era uma monarquia sustentada por tropas francesas, que previam a descoberta de minas de prata, e promessas da Inglaterra, mais do Papa. Mas Maximiliano, [37] face ao povo, não era mais do que um estranho que chegava, sem conseguir qualquer apoio. Começava a desilusão. A sua inabilidade política desgostou depressa os conservadores e os liberais. Há uma explicação para a indiferença do Brasil para com os acontecimentos do México, pois estava a braços com uma guerra interna, a Guerra do Paraguai (1864-1870).
Palácio do Governo
Não passaram muito mais de três anos e deu-se a sua trágica morte por fuzilamento, aos 34 anos. A imperatriz Carlota, devido à sua louca ambição, foi sempre uma má conselheira de Maximiliano. Mesmo depois de voltar à Europa, para pedir auxílio à iminente tragédia mexicana, ainda acreditava num apoio de Napoleão III, mas breve se desilude. A França está envolvida em polémicas com a sua inimiga Prússia. Desesperada, já em Roma, o Papa mostra-se irredutível, extremamente frio e sem lhe prestar atenção. Na verdade, o Vaticano necessitava dos franceses para se defender dos ataques dos italianos.
Imperatriz Eugénia de Montijo, em 1857
(Hillwood Museum)
( http://pordentrodamodabymarinact.blogspot.pt/2012/03/imperatriz-eugenia-tambem-fez-moda.html )
Chegou a hora da derrocada para Carlota. Tinha apenas 26 anos e todo o seu imenso orgulho é incapaz de suportar a desgraça. Por toda a parte, só vê envenenadores, inimigos, ciladas e perde a razão. Morreu com avançada idade por entre crises de loucura e ilusões de grandeza. Quando os alemães invadem a Bélgica, ainda acredita que os prussianos respeitarão o castelo onde mora, por ser cunhada do imperador austríaco. Maximiliano nos últimos tempos mostrou grande ânimo e não fugiu. Também preferiu morrer a abdicar, num último ato de coragem no que parece ser uma situação limite. Não merece esse título de fantoche tão fácil de atribuir num caso destes, ( Yves Bruley) pois foi iludido e depois traído, acabando por ter um modo digno e corajoso de enfrentar a morte.
Morte de Maximiliano
( Quadro de Jean-Paul Laurens. 1838-1921)
Os mexicanos tinham uma longa história e um povo que devia ser bem interpretado para entender o que mais queiram, face à sua sociedade e política que ali se coadunavai. O primeiro imperador, Agustin Iturbide, conseguiu a formação de um México sem a presença dos reis espanhóis e era o favorito da hierarquia da Igreja mexicana. A personalidade de Iturbide tinha mil atributos para ser um crioulo exemplar, mostrava ser conservador, religioso e dedicado à proteção da propriedade privada e dos privilégios sociais. No entanto, Agustin Iturbide estava insatisfeito, nem era rico, nem tinha uma alta patente militar, considerava muito limitado o seu poder. Como os membros do congresso não chegavam a consenso, Iturbide apresentou a sua renúncia no ano de 1823, e partiu para Itália. Em Abril do ano seguinte, o congresso, após declarar a nulidade da sua administração, declarou Iturbide traidor. Quando este regressou ao México em julho de 1824, foi detido à chegada a Tamaulipas e executado.
Assim Maximiliano representava já o segundo império mexicano falhado e agora nem era crioulo, nem tinha tropas fiéis.
Castelo e Colégio militar no México
Talvez, numa última vontade, quisesse mostrar ao mundo e a todos que, mesmo com a derrocada dos sonhos américo-latinos, não era um cobarde. Os infortúnios do Imperador Maximiliano nunca tiveram êxito na literatura, nem no cinema, apesar de ter todos os ingredientes de tragédia, da ganância, dos valores do povo mexicano e da coragem final do principal implicado e vítima também dos interesses alheios. Apenas os brasileiros realizaram um filme sobre a princesa Carlota, com o nome de "A imperatriz louca".
Mais realista do que esses filmes, acerca da jovem imperatriz Sissi, muito kitsch, em que o imperador Francisco José se reduz a um figurante secundário, de "príncipe encantado", a versão cinematográfica da vida do rei Luís II da Baviera, (1845 -1886) o chamado "rei cisne" ou "rei louco" é mais sóbria e perspicaz. Realizada em 1972, por Luchino Visconti "Ludwik" é também uma homenagem musical a Wagner através do fio da narrativa que se enlaça com outras histórias dentro da história.
Este jovem rei teve uma juventude com mestres e professores empenhados na sua preparação para governar, mas extremamente tímido e sensível, o que lhe dava graves dificuldades de governar com a firmeza que deve ter um rei. A sua vida seguiria uma ordem do destino determinada pelo seu lugar de herdeiro inegável de um pequeno reino, a Baviera, se não tivesse uma personalidade inadequada. Nem por ser um pequeno reino, deixou de ser muito complexo o seu governo, por entre jogos de políticas e alianças que não marcavam pela transparência. A sombra de Bismarck e os seus sonhos de unificação da Alemanha, tornavam a Baviera uma peça, no jogo de interesses que convinha dominar habilmente.
Sissi
Ainda muito jovem, Luís já tinha uma grande paixão pelo teatro e, com laços familiares e interesses comuns, tornou-se na "alma gémea" da sua prima, a princesa Elisabeth. O rei era oito anos mais novo do que a Imperatriz e isso deve ter dado um certo domínio da prima sobre ele, tanto mais que cresceram algum tempo juntos.
Sissi foi, algum modo, a figura feminina que mais conseguia aproximar-se dele e era também nela desde cedo, quem o rei mais confiava. Chegavam a trocar poemas espíritas entre si. Luís II assinava com o nome de "Águia" e a sua prima Sissi com o pseudónimo de "Gaivota". Ambos amavam o campo, a equitação, as montanhas e a beleza natural da Baviera. A adversidade foi uma sombra que pairou sempre sobre Luís II. Desde que se iniciou nos meandros da governação, com os seus adolescentes 18 anos, as suas hesitações, excentricidades, falta de interesse pelos mais importantes assuntos da governação, foram desgostando os que o rodeavam.
Luís II da Baviera
As suas excentricidades, o noivado falhado com a sua prima Sofia, irmã mais nova de Sissi, com quem não chega a casar, as construções dos seus belíssimos castelos, por puro interesse estético, só traziam a ruina da sua fortuna e dos cofres da Baviera. A rutura cada vez maior com o povo e aparente desinteresse pelos problemas sociais e políticos, as suas longas ausências da capital, em passeios pelo interior da Baviera, levaram a que lhe fosse diagnosticada, sem que para tal houvesse provas bem claras, uma doença mental. O golpe que mudara o destino do rei fora o encontro maléfico com o excêntrico e genial músico Richard Wagner.
Tinham passado apenas umas poucas semanas ainda da sua governação em 1857, quando convidou Wagner para a cidade de Munique. Este músico, na época, já estava com 57 anos e arrastava uma reputação péssima. Não podia ter escolhido amigo mais perigoso, nem admiração mais funesta. A partir dessa altura, perde a estima do povo da Baviera e aí ficou subjugado pelo encanto da música, acatando todas as suas sugestões, que não eram as mais sensatas. Wagner trazia consigo a desconfiança da corte e o desagrado dos ministros.
Wagner, Liszt e Luis II
Wagner (1813-1883) era um grande músico, mas tinha um péssimo caráter, onde não faltava loucura e um egoísmo sem limites. Uma série de extravagâncias, polémicas e vida desregrada era o triste cortejo e fama que trazia. Estivera exilado da Alemanha pelas suas ideias políticas e o apoio de Luís II não foi apenas um episódio na sua vida. Apesar da sua famosa ingratidão para com todos, foi a estada em Munique que deu um novo impulso à sua obra de compositor mas, mais uma vez, deixaria ruinas atrás de si.
A corte de Munique assustou-se com a chegada de Wagner. A sua deplorável fama, megalomania, as dívidas que trazia, uma ambição do tamanho da sua vaidade e de um narcisismo incomensurável, fizeram tremer a cidade, famosa pelo seu interesse pelas artes. Wagner vinha com a nova esposa, Cosima, filha de Liszt que, por sua vez, se divorciara de um amigo do compositor para casar com ele e dera um enorme desgosto ao pai. Wagner já estava divorciado de Minna, a esposa traída por loucas e seguidas paixões. Cosima suportava esse passado por muito o amar. Por um dito irónico, Richard e Cosima tiveram um casamento feliz. [38] Ambos adoravam Wagner.
Luís II, levado por uma atração muito forte pela sua música que tanto admirava, acolheu Wagner satisfazendo-lhe todos os dispendiosos caprichos. Pode dizer-se que foi a este rei que Wagner ficou a dever a continuidade da carreira. O seu comportamento, cada vez mais extravagante, egoísta e escandaloso, é que desagradava em extremo ao povo da Baviera. Por fim, Luís II foi obrigado a afastá-lo e à família da corte e de Munique.
Richard Wagner ( Gravura)
Daí em diante, os êxitos de Wagner aumentaram e o seu passado escandaloso era perdoado pelo fascínio da sua música. Depois da sua estadia na Baviera, Wagner teve o êxito maior da sua vida com a construção do seu Teatro Festival, em Bayreuth, ainda em terras da Baviera. O biógrafo, Henry Thomas, quase não se refere ao rei Luís II. Todavia, esse excêntrico e "flamejante Vesúvio humano", como o chamaram ironicamente, deve a este rei a glória e o facto de ter saído das sombras. A glória de Bayreuth tem uma dívida ao reino da Baviera.
Na política, Luís II teve de aceitar os planos de Bismarck e nada podia fazer no seio dos conflitos alemães, mas realmente, tanto a amizade por Wagner, como a sua paixão estética por construir teatros e castelos, sumptuosos e fantásticos, afastavam-no cada vez mais da realidade para um mundo imaginário, onde podia criar com os seus projetos e devaneios um simulacro da aparência. A beleza dos castelos é de uma rara harmonia, aliada a uma visão romântica com fortes influências de raízes medievais. Tratava-se de pura estética pois, nessa altura, esses palácios encantados não tinham qualquer préstimo, para além da sua incomparável beleza.
Scholtz-Neuschwanstern
Castelo de Luís II na Baviera
Com uma personalidade tão complexa e sem sentido do seu papel de governante, não se coadunava com as formalidades e deveres régios, por isso foi um rei impreparado para as intrigas em que o país se encontrava envolvido, procurando desesperadamente apoio e consolo na arte, na música e em amigos, nem sempre escolhendo os melhores, com sonhos de impérios fantásticos e imaginários e a construção de castelos mais semelhantes a contos de fadas. Apesar de tudo, Luís II ainda teve um papel político relevante, mas escolheu ficar do lado da Áustria na luta, mas se optasse pela Prússia estaria estrategicamente mais forte e com diplomacia, evitaria derrotas. Ao lado da Áustria e contra os planos de Bismarck, passaram-se apenas três anos. Depois a Baviera teve de aceitar e submeter-se aos desígnios do Chanceler de ferro. Embora continuasse a ser um reino, dependia agora da Prússia.
De certo modo, entende-se bem as afinidades de Luís II e da sua prima, a imperatriz austríaca, pela familiaridade da infância e proximidade de idades e de locais, visto que o castelo de Possenhofen, da família dos primos, ficava à beira do lago Starnberger onde, mais tarde, Luís II morreu. Por acaso ou não, a imperatriz estava num hotel bem perto do lago onde o rei faleceu. Contava apenas 39 anos de idade e uma vida carregada de perturbações de toda a ordem.
Luís II da Baviera
Os súbditos de Luís II, muito descontentes, já tinham organizaram várias conspirações para o depor. O rei tentara lutar, mas acabou prisioneiro dos seus próprios subordinados. A partir daí, a história é mais confusa. Oficialmente, após um ano em que esteve prisioneiro num castelo, houve um suicidio, ou então afogou-se. Vivia prisioneiro no Castelo de Berg, perto do Lago Starnberger, onde o autorizavam a passear. Sendo um bom nadador, como bem se sabia, era pouco provável um tal acidente. Luís expressara sentimentos suicidas durante suas crises, mas a morte simultânea do Dr. Gudden, seu médico assistente, tornava o problema mais perturbador.
Por isso, a sua morte está envolta de lendas e incoerências. Não passam de histórias, que nunca se conseguiram provar, mas os factos são muito contraditórios. É um caso único de doente que se suicida e mata antes o seu médico. Sabendo tão bem nadar, seria muito estranho que arrastasse consigo o seu médico pessoal para o lago fatal, onde ambos desapareceram.
Paisagem da Baviera
Foi esta a fatídica conclusão para um reinado em que a Baviera deixava de ser independente graças às guerras franco prussianas, depois de ter de aceitar os termos do chanceler Bismarck e o Kaiser Guilherme I. Se bem que pudesse conservar-se um reino, a Baviera tinha de se submeter à Alemanha.
IX - MARCHA PRUSSIANA. NOVAS ALIANÇAS.
Otto von Bismarck (1815-1898) era um prussiano altamente ambicioso, nacionalista e com um profundo pendor militar. Vinha de uma nobre família de proprietários e era muito culto, face a outros da sua condição. Além de viajado, falava bem russo, francês e inglês. Enquanto jovem admirava Shakespeare e Byron. Marcou presença no tempo de Frederico Guilherme, depois com o seu irmão Guilherme I, época que coincide com a sua ascensão e poder político e a sua queda dá-se com Guilherme II, pois a ambição deste não suportava que outro tivesse poder e prestígio que queria para si mesmo.
Bismarck, grande diplomata, astucioso político e militarista, representou o mais vivo espírito do que se diz ser prussiano. Mas como esta noção sofreu tantos conceitos diferentes, será bom analisar um pouco mais profundamente.
Bismark
A capital militar de Prússia a cidade de Potsdam
( O seu traçado revela esse espírito que se diz prussiano.)
No conjunto das ideologias e das mentalidades europeias que ainda existiam no início da grande guerra, será esclarecedor ter uma noção do chamado espírito prussiano. Gunther Bardey, ao estudar o assunto, considerou que este foi alvo de graves difamações em toda a Alemanha. Em 1947, declarava-se em Berlim a liquidação do estado da Prússia. Era como se o conceito de prussiano tivesse de ser apagado e para sempre ignorado. Há conceitos que se discutiam, mas quanto à Prússia foi o completo silêncio.
As reflexões de Bardey [ 39] concluem que a velha Prússia é um estilo de vida e vive no indivíduo, por isso não morre. Ser prussiano é como que um modo de pensar que se manifesta pelo sentido do dever, da ordem e da austeridade. Houve uma ética e valores morais que não se coadunam com o modo de vida dos alemães e do pensamento falsamente democrático dos políticos, que julgavam que se podia destruir pela força um conceito ético. Sem uma análise do que era o espírito prussiano, o único conceito que falsamente abarcava tudo era o seu militarismo.
Ao prestar atenção para aquele conceito de militarismo que é descrito como "prussiano" nota-se que não passa de um título de propaganda e a definição é ambígua sem nunca se explicar bem. Nem vale a pena examinar as propagandas irresponsáveis e as demagogias que foram inseridas no conceito do intitulado "Militarismo Prussiano". Se, porém, alguém entende o militarismo como sendo a autoridade absoluta de uma casta militar, então pode-se responder que jamais houve um domínio absoluto de soldados profissionais, nem na Prússia nem na Alemanha.
O Major General Hans von Seeckt escreveu, em 1929, sobre esse tema do militarismo, o seguinte comentário, possivelmente ainda válido: "A França orgulhosamente treina seu povo como uma nação armada. Não seria isso militarismo? E a América, que tão conscienciosamente hasteia a bandeira da paz, ensina em suas universidades – isso é um facto – a arte da guerra para futuros oficiais, recruta a juventude educada para os corpos de oficiais, e prepara sua indústria para a mobilização. Eu gostaria de chamar isso patriotismo, mas aqui em casa é chamado militarismo."
A Prússia, porém, não representou apenas um Estado, mas também um princípio, uma ética viva. Assim como uma filosofia só pode ser explicada segundo seus princípios, assim também uma ética é justificada pelas virtudes que produz.e pelos mais elevados sentidos de serviço.
Marienburg. Cidade do Sudoeste da Prússia.
( Actual Cidade de Malbork, no Norte da Polónia )
Deve ter havido algum mistério para que um Estado, que não tinha nada a oferecer a não ser os frutos amargos do dever e, mesmo assim um tão grande número de pessoas extremamente hábeis e talentosas se sacrificaram – pessoas de todos os outros países alemães e mesmo de toda a Europa. Tornavam-se prussianos por sua própria vontade, através de sua aceitação do dever de serviço. Eles vieram, de facto, à Prússia para viver uma vida de serviço, pois eles não poderiam viver sem deveres a realizar e um propósito superior diante deles, como o escritor Hermann Hesse expressou.
Quem eram eles, e de onde vieram esses ditos prussianos, entregues ao dever e à honra dos seus princípios? Moltke e Blücher tinham nascido em Mecklemburg, Ernst Moritz Arndt era sueco. Havia saxões, escoceses, e até franceses. E o que moveu os muitos nobres independentes, cujas linhagens eram mais velhas e cujas honras imperiais maiores do que as dos Reis Prussianos, a servir na Prússia? Por gerações, os Duques de Brunswick e Meclemburgo, a nobreza da Turíngia e de Anhalt, escolheram servir a Prússia. Ofereceram as suas vidas, não pelo rei da Prússia, mas pela ética do dever. "
Apenas na Prússia podia ter existido um Kant. Cientista e filósofo com um método e rigor que se sustenta no imperativo do dever e que deu ao desenvolvimento mental dos séculos seguintes uma liberdade e uma revolução que se tornou a base fundamental de nossas conquistas científicas e de princípios de ética de cariz universal. A "Critica da Razão Prática" e o imperativo categórico de Kant deram ao sentido prussiano de dever sua expressão fundamental, e consolidou o conceito de prussianismo, de uma vez por todas. O seu imperativo categórico: " Age somente, segundo uma máxima tal, que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei universal", continha pela primeira vez o conceito de agir em acordo com o puro dever.
Se a "Crítica da razão pura" é um monumento às possibilidades do conhecimento humano, a sua Crítica da razão prática" representa a moral elevada à categoria de universal, com um legislador que pertence ao reino dos fins, mas se submete apenas à sua própria lei. É assim que quando o rei Frederico escreveu: "Não é necessário que eu deva viver, mas é necessário que eu deva cumprir meu dever", a máxima teórica do filósofo foi elevada pelo estadista ao princípio geral do Estado.É possível um certo "tendenciosismo" nas apreciações do espírito prussiano, mas não deixa de caracterizar uma mentalidade que podemos ver não só na Prússia, mas num certo modo de ver e agir na vida que é fortemente combatido por aqueles que acusam Kant de ter trazido o racionalismo para uma ordem que só veio marcar o europeísmo das Luzes. A lei no humano é a sua consciência e, é bem verdade que os mais comezinhos exemplos se prestam a demonstrar que uma moral de princípios será sempre mais forte e serve de guia o que não se dá com a moral de objetivos. É difícil porém aceitar a maldição da razão, quando a vêm assim se a ela devemos as possibilidades da ciência e de um notável progresso. O sonho de um universalismo da consciência do dever só parece ter adversários em quem, ao aceitar o multiculturalismo dialogante, aceita também que, com a derrota da razão, o irracionalismo irrompa. Então, só temos o caminho do absurdo e o "Carpe Diem" que é sempre próprio das épocas de decadência e de sincretismo. O caos ou o cosmos, é o dilema cada vez mais forte…
Depois de uma juventude em que procurou, um pouco desordenadamente, determinar um rumo, Bismarck conseguiu uma carreira, senão invejável, pelo menos indelével na história. A sua origem aristocrata fez com que inicialmente fosse conservador e monárquico. Recebera uma forte preparação, pela educação, para um destino singular, este astucioso e hábil político que se veio a transformar no mediador entre as grandes potências, criador de toda a trama e alianças para elevar Berlim a capital de um grande império. Criou a moeda, o Banco Central alemão, o primeiro sistema de segurança social e queria unir todos os povos da mesma língua num grande e novo país de língua alemã.
Bismark
Bismarck, o chanceler de ferro, no dizer do historiador sueco, [40] Carl Grimberg (1875- 1941) , "conseguiu, depois de diversos revezes, encontrar aquele apoio que precisava em Guilherme I para uma política tão hábil que o tornou um reformista político, apenas à altura de Marx, em todo o século XIX." Tornou-se numa personalidade de tal modo central, que ficou conhecido como o Napoleão da Alemanha, o que não deixa de ser lisonjeiro para Napoleão, ou a designação mais conhecida de ser o "chanceler de ferro".. Talvez pela sua tenacidade e firmeza, bem mais tarde, Margaret Thatcher também tivesse o título de "dama de ferro", que agora tem de novo herdeira na Chanceler Merkel.
A atuação de Bismarck como estadista e político iniciou-se com a Dieta Nacional onde se manifestou da extrema-direita e inimigo da Áustria. Com as suas políticas de alianças, realizava a sua visão de um império à custa da Polónia, da Baviera e depois com uma guerra com a Áustria, de que saiu vencedor, com grande desapontamento de Napoleão III. No seu diário, Bismarck [41] referia-se a este imperador francês de modo bem pouco amável para a sua inteligência e capacidades governativas. Não lhe ficou atrás Antero, que o descreve ironicamente do seguinte modo bem mordaz ...
"o homem da mecha sobre as fontes, o grande supliciado de Napoléon le Petit, o palhaço de Bolonha e de Estrasburgo, o amigo de Baroche, [Nota: Presidente do Conselho de Estado, figura importante do império] o companheiro de conhaque do duque de Morny, o empresário de golpes de Estado, e de imperadores pateados..." [42]
Napoleão III
Bismarck tinha planos grandiosos para os germânicos, mas não se ficou pelos sonhos. Foi um dos raros homens que os conseguiu realizar, para bem e para mal do futuro da Europa. O progresso económico espantoso que conseguiu deu possibilidade da unificação posterior da Alemanha. O expansionismo em África que, até então, pouco interessara aos alemães, finalmente interessava Bismarck. Depois de vencer uma grande resistência, alcançou dos alemães que tentassem estabelecer-se nesse continente.
Apesar de tarde já para ele, neste sentido, no ano de 1884, já no declínio do seu poder, o Togo e o Camarões foram ocupados e declarados Protetorados Alemães. Devido a fortes pressões, em 1897, Portugal cedeu aos alemães os seus direitos sobre a região entre Cabo Frio e o Baixo Cunene. O território alemão ficou próximo da fronteira de Angola e, desse modo, se constituiu a Damaralândia, na costa ocidental, no sul desse nosso território. O nome deveu-se aos povos que lá habitavam e que os europeus intitulavam os "dâmaras". Em Portugal vulgarizou-se o nome "Damaralândia" para designar toda a colónia alemã do sudoeste africano.
De Moçambique, guardamos diversos depoimentos acerca dos graves acontecimentos que se passavam em África, entre eles, o do Dr. Américo Pires de Lima que nos legou um impressionante testemunho no seu livro, [43] "Memórias de um médico" onde afirma que: A história faz-se sobre factos autênticos e não sobre convenções por mais agradáveis que estas sejam. De contrário, não passa de romance (…) É estrito dever de cada um dizer o que sabe e o que viu. É o que agora aqui faço. É possível que alguns vejam nisto manifestações de derrotismo ou de antimilitarismo. Esses serão dos que antepõem as convenções à verdade, na ingénua esperança de que --- verdade escondida é verdade inexistente. Supondo, é claro, que são sinceros, o que nem sempre acontecerá (…).
A revolta deste médico contra a incúria, a indiferença e o abandono que os nossos soldados sofriam em África é visível e comprovada pelos próprios alemães, que testemunharam essa situação. Era lamentável, no que diz respeito a Moçambique, o abandono das tropas e do seu destino por parte do governo. Chegou a tal ponto que, até um alemão, o General von Lettow Worbeck, descrevia, nas suas "Memórias da África Oriental":"O inimigo maior em Moçambique, foi o próprio português com a sua leviandade, irreflexão, desmazelo e bizarria, a sua vara na mão, o seu cego posso, quero e mando, que não velou pela alimentação, saúde e pela assistência das tropas; prevenir e atacar os flagelos que sobre elas incidem letalmente, ouvir e respeitar as vozes da higiene e da medicina. A ordem era não adoecer e quem o fizesse que rebentasse, não tinham camas, nem assistência, nem remédios (…) qual terá sido a receção que estes heróis tiveram no cais de desembarque?"
Alemães em Moçambique
No regresso, após a missão cumprida, escreveu ainda o Dr. Pires de Lima que, lamentavelmente, não havia ninguém para receber essas tropas, nem sequer a Cruz Vermelha para tratar dos pobres doentes, muito ao contrário dos franceses que eram recebidos carinhosamente no seu regresso à pátria. Quanto ao que aconteceu aos infelizes alemães, perdidos ainda nos campos e terras de ninguém, nada tinham a esperar no regresso. Ao regressarem ao que fora o seu orgulhoso país, deparavam-se com uma terra irreconhecível e um povo senão desesperado, pelo menos desalentado e miserável, com o orgulho perdido e sem nada ter para lhes oferecer.
As leis da matemática, ou quaisquer que sejam essas leis, mesmo as estatísticas, não nos revelam melhor o passado, porque este é reescrito guiado por interesses sempre do presente e a documentação, se não forjada, como aconteceu na Grécia ou em Roma, é escolhida por alguém que revela mais os seus interesses, do que as certezas de um passado de sombras. Talvez uma nova ilusão possa surgir para a nova ciência histórica, agora que a documentação é enorme e todos os factos, até mesmo o quotidiano anónimo que não se pode escrever, seja possível de analisar, quando o pó implacável dos tempos tenha caído sobre o que agora acontece e depois se verifique que está na hora de iniciar um novo método da ciência histórica. Spengler tinha levantado a tese da vitalidade da história semelhante a um organismo vivo, mas apesar de tudo, do futuro não se pode escrever nada.
A nova aluvião que temos de documentos de toda a espécie e forma, não poderá ser a promessa de um trabalho completamente novo e original para estudar os acontecimentos e entender o passado?
Poder-se-á dizer que, após a Revolução industrial, se inicia um tempo completamente novo em que se inventa a quotidianidade? O urbanismo e a constante busca de mais uma festa, o desdobramento do mundo em mercadorias em que o homem é mais uma peça, a incapacidade dos grandes impérios se sustentarem e as tentativas dos governantes de manterem vivas as utopias que lhes dão sentido, estão aqui semeadas. As democracias mostram-se incapazes de vencer as tiranias, quer por causa das enormes massas de população, quer por serem nomes sem sentido, quer ainda pelo lado obscuro de esconderem um absolutismo económico e este por sua vez ultrapassar o poder dos estados que não o podem combater.
A globalização tece uma rede para além das fronteiras democráticas e tanto aumenta, como diminui a liberdade. Se a democracia ateniense foi um breve tempo que depois se transformou em lenda e depois em mito, agora todo o apelo a Atenas parece ridículo. Que se pode dizer de uma Mega democracia? Há uma superfície democrática, mas o solo continua minado e a cada dia estalam contradições. Com fúria ou placidez, fere-se a liberdade, ultrapassa-se a tolerância, acordam-se medos e sussurros de novas guerras.
A paz armada era bem precária e a isso se vinham juntar os conflitos espalhados por toda a Europa. A tensão aumentava entre os governantes, o clima era propício a manobras e tratados secretos, o armamento crescente era uma ameaça mais do que se julgava, os nacionalismos ocultavam ideologias dominantes e o mal-estar crescente nos meios políticos, carregados de suspeitas de espionagem e tumultos.
Depois das teorias de Darwin, toda a mentalidade ficou, a bem dizer, evolucionista e não tardou que a ideologia tomasse o lugar do campo científico. Os protestos e as polémicas ficaram-se pela superfície, pois mudava-se um paradigma de mentalidades. O darwinismo foi uma revolução que também se manifestou no social com a extrapolação indevida do campo das teorias da ciência para outras realidades. A obra "A descendência do homem" de 1871, ano de tantos acontecimentos, provocou violentas polémicas e surgia agora a ideia darwinista de " o homem ser um mero acidente da vida neste planeta, produto das contingências desenvolvidas num longo processo evolutivo" .
A noção de seleção natural passou a ser a explicação para tudo. Desde as origens biológicas até à consciência moral e ao devir da história, tudo era explicado por teorias que davam aso a justificar a lei do mais forte ou mais apto, apoiava a competição e superioridade étnica. O utilitarismo pragmático que emanava da filosofia de Stuart Mill marcava o espírito britânico, mais do que as suas lições sobre a tolerância. A moral kantiana desabava face a uma ética dos fins, que é maleável e pode ter diversas interpretações.
Gobineau
A primeira obra acerca das diferenças entre as raças apareceu com Gobineau ( 1816-1888), que se celebrizou com o seu "Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas" (1855), sobre eugenia e racismo. As teses eram sedutoras para apoiar uma ideologia que defendia a opressão da classe dominante e justificasse a pobreza dos miseráveis que enxameavam as fábricas e as minas depois da emigração do campo para as cidades. Os fracos seriam as raças inferiores que não deveriam existir por muito tempo, pois as raças superiores prevaleceriam. Fundamentado no egoísmo, que a biologia justificava, não haveria lugar para contemplações, pois era no homem que a natureza tinha a sua continuidade.
Um aspeto importante do darwinismo social do séc. XIX, é a oposição criada entre o sofrimento e miséria por um lado e a supremacia e orgulho por outro. As desigualdades que a industrialização viera mostrar entre os seres humanos, ajudaram ao triunfo de um darwinismo muito deformado e "cientificamente" adaptado aos seres humanos.
Charles Darwin
No caso do colonialismo, durante séculos afirmou-se a supremacia do homem branco sobre outros povos. As dúvidas acerca de serem mesmo dotados de alma mostra bem a força da mentalidade. Com tal pressuposto ideológico, havia toda a lógica em considerar que esses povos e civilizações só beneficiariam com a presença e a imposição da cultura por seres superiores e trazerem uma nova civilização para as mentes primitivas, que estavam muito longe de conseguir adaptarem-se facilmente a toda uma mudança interna e externa, que os forçaria a imitar uma hierarquia superior.
Na ótica dessa ideologia, o superior é o mais forte e mais sábio e assim deve permanecer. As classes dominantes não tinham o menor interesse em alterar esse "status quo" tão favorável lhes era e aceitavam com naturalidade a invasão e exploração de gentes primitivas, dos seus países e riquezas. Uma classe, até podia ser bem pequena para dominar, mas possuía recursos que lhe davam superioridade aparente sobre um mundo onde, mesmo sem terem direitos, se tornavam donos e senhores de tudo. Em boa parte, a relação entre povos dependia do grau do desenvolvimento cultural dos dois lados. Mas, na maior parte dos casos, era pura opressão sem possibilidades de qualquer diálogo ou entendimento.
Aplicado abusivamente às sociedades humanas, segundo o professor Germano Sacarrão , (1914-1992), zoólogo e ecologista de renome, amigo e tradutor de Edgar Morin, uma personalidade fascinante da nossa cultura, dava uma excelente justificação para a violência, injustiça e opressão.
A deturpação era enorme. São áreas separadas e, mesmo depois da aparição de outras ciências, o darwinismo social e a sociobiologia em que se transformou não tem bases científicas. "Nem a concorrência nos animais toma, em regra, no seio da mesma espécie, aspetos competitivos, no sentido de luta física violenta e assassina, nem as noções de "mais apto" e "menos apto" correspondem às ideias de "mais forte" e "mais fraco " respeitantes ao físico ou à mente".
As classes sociais não corresponderam em tempo algum a realidades, muito embora a sociobiologia de Wilson (1975) tenha cada vez mais representantes, as suas teses estão eivadas de uma séria extrapolação da ciência para a cultura que é um fenómeno puramente humano e dá toda a diferença que evita comparações evolucionistas deterministas e carregadas de ideologia de superioridades sociais. Enquanto o século XIX manifestou um grande expansionismo colonial, a Europa via isso como uma luta entre ambições que levavam a um alargamento conflituoso de muitos interesses entre os países colonialistas.
Deste modo a cobiça grassava, a Itália procurava firmar-se em territórios africanos, os holandeses e alemães cobiçavam as possessões portuguesas e inglesas e, estes últimos mantinham quase sempre a ferro e fogo as possessões asiáticas e o império das Índias, a joia da coroa, como ficou representado. Por causa deste domínio e opressão de tantos povos, não é de estranhar que tropas da Índia, de África, do Canadá e de muitos outros países entrassem numa guerra que não podiam entender.
Tríplice Aliança ( Punch)
A Triple aliança da Alemanha, Áustria e Itália teve sempre um cariz movediço, face ao crescente domínio dos germânicos cada vez mais levados por um expansionismo assustador. Por causa deste domínio e opressão de tantos povos, não é de estranhar que tropas da Índia, de África, do Canadá e de muitos outros países entrassem depois numa guerra que não podiam entender.
Com a política de alianças, tentava-se para manter um certo equilíbrio entre os países europeus. No meio, a servir de fiel da balança estava o império austro-húngaro e todas as suas etnias. No fundo, todos dependiam de todos e a economia só funcionava assim. Qualquer desenvolvimento de uma das grandes potências, que não se adaptasse ao conjunto da Europa unida, iria pôr em risco a harmonia e podia causar um desencadear de conflitos de que ninguém tinha a noção de como iria findar.
Parlamento Húngaro
Mapa étnico Austro-Húngaro
Com o acirrar de ânimos, as desconfianças mútuas e a sede de poder da Prússia, a guerra franco prussiana era inevitável. O próprio Bismarck teria dito em 1866 " O imperador dos franceses vai forçar-nos à guerra. Está consciente de ter perdido muito do seu prestígio, mais do que se pode permitir. (..) Segundo os meus cálculos, esta crise produzir-se-á dentro de dois anos. Evidentemente que devemos estar prontos, já o estamos. Venceremos e o resultado será diametralmente oposto às esperanças de Napoleão." [45]
O pretexto para a guerra foi a sucessão ao trono de Espanha conduzida secretamente e sem o conhecimento da França, quase até à relutante aceitação da coroa pelo príncipe Leopoldo Hohenzollren após uma série de intrigas e jogos diplomáticos. É importante salientar que esta foi uma guerra que despoletou ódios e acumulou desejos de vingança, de desforra, bem como um imperialismo, bem perigoso, que Bismarck conseguiu para a Alemanha. Nas palavras de [46] Erich Eycke (1878–1964 ) estão patentes estes mesmos perigos.
"De todos os conflitos do século XIX, nenhum exerceu uma influência tão grande, nenhum teve consequências tão pesadas. Os rancores e os ódios semeados pela guerra franco-alemã de 1870-71 ultrapassaram as previsões mais negras dos pessimistas mais encarniçados… Deram origem a duas guerras mundiais e ninguém pode dizer quando a Europa e o mundo encontrarão essa paz que foi enterrada a 13 de Julho de 1870. "
Caricactura do "estado de confusão" pré- Guerra
Napoleão III saiu-se muito mal das suas habilidades políticas. Na verdade, o nome de batismo era Carlos Luís Napoleão Bonaparte (1808 -1873), e envolveu-se em muitas rebeliões até que foi eleito Presidente da República, após a revolta de 1848, um dos marcos fundamentais da política mundial para Karl Marx.
Embora seja uma represente da faceta fútil e alegre da Belle Époque, com a divulgação das crinolinas e todo o colorido do vestuário feminino da época do romantismo, também teve um papel na política. Foi regente da França em ausências de Napoleão III. Os seus estudos e a sua admiração por Maria Antonieta são bem reveladores do quanto mal inteirada andava acerca dos problemas reais da sociedade.
Passou depois a Imperador, por um golpe de estado que preparou e idealizara há muito tempo atrás. Teve o apoio e a simpatia dos conservadores, dos financeiros e, fundamentalmente, da parte de uma burguesia enriquecida. O seu casamento com a espanhola Eugénia de Montijo trouxe para a França uma imperatriz que se tornou autoritária e com sonhos de grandeza, tal como o imperador.
Eugénia e as suas "damas"
Seguia o marido na ilusão de um imperialismo que, nos primeiros tempos, foi bem sucedido. Os conservadores e burgueses temiam as ideias socialistas e outras ideias revolucionárias que pairavam no ar. Napoleão e Eugénia puderam gozar algum tempo o poder, mas que nunca foi seguro. Apenas durou enquanto as obras e reformas traziam vantagens e eram favoráveis aos franceses. Com algumas obras relevantes, uma política interna favorável a diversos interesses, ou ainda o canal do Suez e a intervenção na Guerra do ópio na China, foi o que conseguiu durar o seu poder, numa época em que o romantismo e os ideais mais opostos se enfrentavam.
Novos acordos com países como Portugal, Japão, Estados Unidos, Brasil e Espanha, mostravam que a política dos franceses, movida pelo receio do pangermanismo, era sentida por outros povos, receosos desse poder crescente. O grande desenvolvimento interno e as fortes ambições expansionistas dos alemães tornavam-se uma ameaça mundial.
Ao passar a defender a política das nacionalidades, Napoleão III tornou-se adversário de Bismarck, sempre muito atento e veio favorecer a sua diplomacia ofensiva. Segundo parece, Napoleão III não deu o devido valor à política de Bismarck e foi ludibriado pelo famoso 'Telegrama de Ems', do rei da Prússia ao embaixador francês que, manipulado com a maior habilidade por Bismarck, em vez de pôr fim à crise, feria o orgulho dos franceses e provocava a guerra franco-prussiana (1870 - 1871), que trouxe a ruína do Segundo Império.
De acordo com Sebastian Haffner, pseudónimo do historiador Raimund Pretzel, este telegrama foi "a maior falsificação da História" Foi enviado pelo rei da Prússia ao embaixador francês e o seu conteúdo foi alterado. Para este escritor, "os alemães consideram que falsificações, mentiras, extorsão, assassinatos, traições são fenómenos normais e aceitáveis na política, enquanto que na vida privada são desprezíveis," deste modo, o telegrama podia ser usado para os fins políticos desejados por Bismarck, mesmo que fosse uma cilada sem que isso, para ele, não passasse de diplomacia, que não tem nada a ver com a moral.
Captura de Napoleão III
Depois da confrangedora derrota em Sedan, Napoleão foi capturado pelos exércitos prussianos e assinou a capitulação da França. Após isso a Assembleia Nacional proclamou a sua deposição, foi proclamada a Terceira República Francesa. Após ser preso, Napoleão III foi exilado. Bismarck levou á derrota aos franceses e causou o maior ressentimento no seu orgulho ferido. A proclamação do I Reich no palácio de Versalhes, com um tratado que tanto humilhava o povo vencido, foi tão grande, que a revolta estalou. O povo não quis reconhecer a derrota e a Comuna de Paris, junta civis e militares, partidários de Garibaldi, marinheiros, escritores, até mulheres e crianças, e toma foros de uma primeira esperança para os comunistas que reivindicam, como se sabe, esse episódio como um primeiro governo do proletariado.
Por uma tomada de consciência de toda a tragédia que a sua política de imperialismo trazia, parece que Bismarck se deu conta das consequências terríveis e funestas para tantos povos, pois teria dito numa hora de arrependimento: " Sem mim, não teriam ocorrido três grandes guerras, milhares de pessoas não teriam nelas perdido a vida, milhares de pais, de irmãos, de irmãs e de viúvas não teriam conhecido o luto". [47]
Paris em revolta. A Comuna.
Bismark
( http://www.born-today.com/Today/04-01.htm )
Por outro lado, o Império Austro-húngaro não conseguia manter a paz interna. A instabilidade era permanente, com a sua manta de retalhos étnicos a fervilhar pelos diversos nacionalismos e tentativas de acabar com a opressão externa.
Se, no ano marcante de 1848, a Prússia afastou a Áustria da possibilidade desta dominar a Alemanha, vale a pena enumerar os povos sob o domínio deste vasto império. Conteríamos então checos, eslovacos, polacos, rutenos, ucranianos, romenos, sérvios, croatas, eslovenos e italianos. Com uma população com cerca de 52 milhões sob o mesmo teto, o imperador Francisco José conseguia para a Áustria um desenvolvimento económico veloz, que só parou com a grande guerra. Politicamente, porém, já no ano de 1910, algures, ocultava-se um barril de pólvora , só não se podia saber onde estava o rastilho.
Caricactura
Entretanto, sedento de poder, o Kaiser Guilherme II, (1859 - 1941) afastou Bismarck do poder em 1890, o que muito feriu o Chanceler, após todos os seus esforços e diplomacia que duraram 19 anos. Sem dúvida que Bismarck ainda teve tempo para escrever a relatar tudo o que viveu. As suas memórias são do homem e do político, assim as quis designar. Deve ter sentido uma grande amargura por toda a ingratidão daquele governante que ele levara ao triunfo e até ser designado Kaiser de uma Alemanha unida. Recordar a vitória de 1871, quando Guilherme II foi aclamado em Versalhes, mesmo no seio da nação odiada, devia dar-lhe muito mais desgostos do que alegrias.
O Kaiser e o Czar
A gratidão é sempre uma virtude que só existe no coração dos grandes. Não foi em vão que Séneca a declarou ser a expressão da mais elevada virtude. Só para as raras almas que são realmente magnânimas, afirmava por seu lado Aristóteles, a gratidão era possível e mesmo assim, só entre iguais.
Há que reparar porém que Guilherme II estava cada vez mais dedicado a um armamento e não era em vão que isso acontecia. A partir de 1880, a Prússia era cada vez mais uma grande potência, com uma fase de expansão económica e colonial que se pode dizer, dá crescentes suspeitas e receios tanto à Inglaterra e ao seu império, às colónias portuguesas e também à sua inimiga França.
Em 1882, o acordo militar designado por Tripla Aliança entre a Alemanha, a Itália e o império Austro-Húngaro garantiam um apoio entre si, no caso de ataque. A Itália recusou qualquer ataque no caso do Reino Unido entrar no acordo. Este vinha já no rumo da Liga dos Três Imperadores, uma das hábeis políticas de Bismarck para assegurar o equilíbrio de forças. Assim se impedia a aproximação da França à Rússia e aumentava o isolamento francês. Só que a Rússia tinha já uma aliança com a França, a que se veio juntar em 1907 o Reino Unido formando a "Tripla Entente". Após a morte da rainha Vitória iniciava-se a era Eduardina, que pouco durou, pois o rei Eduardo morre em 1910. Por causa da sua índole ficou conhecido pelo "pacificador". A Itália guiou-se por uma política que se entende melhor quando se olha para a complexidade deste país, das invasões que teve, da falta de unidade interna que só muito tardiamente conseguiu, comparativamente com os outros povos.
Pacifismo. Rei Eduardo V.
Estava-se em pleno verão de 1914, nas vésperas do grande conflito, quando Guilherme II recebeu, com a maior cordialidade e simpatia os seus primos, os arquiduques austríacos, Fernando e esposa, em Konopischt, pouco tempo antes da partida do casal para a Sérvia, numa fatídica e desaconselhada visita a Sarajevo.
No último dia de julho, Guilherme II encontrava-se já em Inglaterra, para participar numa regata. Lado a lado, as populações, alemãs e inglesas pareciam irradiar uma segurança e paz invejáveis. O próprio Kaiser ia mesmo entrar na corrida das regatas, no seu iate. Governava agora o seu primo Jorge V, o que tornava complexas as relações entre os estados, pois a animosidade entre os países crescia. Mas estava alegre e conversava ainda na baía de Kiel, quando lhe entregaram um telegrama. Depois de o ler, uma nuvem negra acabou com os desportos e divertimentos. Era a notícia do assassinato dos futuros imperadores da Áustria. As festas foram canceladas. Muito sombriamente, Guilherme II voltava para Potsdam.
Este Kaiser acabara de completar os 29 quando começou a governar e desejava chefiar pessoalmente toda a Alemanha, todavia ia faltar-lhe uma boa argúcia e firmeza políticas para enfrentar as tragédias que se iam desenrolar.
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Rei Jorge V de Inglaterra
Keiser Guilherme II
( Vestido como o Rei Frederico, o Grande )
Com o seu belo porte altivo, ar severo nos olhos profundos, todos os sonhos de grandeza que o levavam a imaginar-se uma repetição de Frederico, o grande, excelente estratega e hábil diplomata, que ainda estava na memória dos prussianos. Os seus discursos, mais do que os seus atos, transmitiam uma impressão rude de tirano que ameaçava a paz. Deixou um vazio entre a teoria e a prática, pois nos discursos era de enorme dureza e chegara a dizer com uma soberba que depois se revelou bem negativa:
"À semelhança dos Hunos, que há mil anos, sob a liderança de Átila, ganharam reputação pelo modo virtuoso como vivem na tradição histórica, também o nome da Alemanha se tornou conhecido de tal forma na China que nenhum chinês se atreverá jamais a olhar com desprezo para um alemão" . A sua citação dos ferozes hunos, que ficaram bem conhecidos pela sua crueldade e devastação, ao ponto de se dizer que, por onde eles passavam, a erva não votava a crescer, foi muito infeliz, com uma rudeza cruel e pouco hábil.
Desconfiava dos ingleses, se bem que se entendesse cordialmente com sua avó, a rainha Vitória. Os parentescos entre as famílias reais europeias eram um foco de alianças e de desentendimentos ocultos. Através do grupo que se reunia à volta da rainha Vitória, a maior parte das casas reais estavam unidas, sem esquecer que a própria Vitória era de origem alemã. Da Rússia à Espanha, as casas mais importantes tinham laços de parentesco, se bem que nem sempre com resultados pacíficos.
O único país que se manteve sem familiares dessas casas reais, foi a Sérvia, país que durante séculos sofreu o domínio dos Otomanos. Só depois teve uma monarquia constitucional liderada pela família Karađorđević, até ficar sob o domínio austríaco. Guilherme II não deixava transparecer a sua animosidade contra a Inglaterra e nada à superfície mostrava o tumulto das águas profundas. Sob seu governo, a Alemanha deu início à "política internacional" que buscava recuperar o terreno perdido na corrida imperialista das grandes potências.
Cena da Corte Vitoriana
Curiosamente, há muita diferença entre esta guerra e todas as anteriores. Uma delas é a propaganda, os panfletos e o jornalismo tomam, pela primeira vez, um lugar importante e mobilizam populações inteiras. Há um movimento dos povos que não está alheio a esta inovação. O público seguia com grande interesse os acontecimentos sociais e políticos. Os franceses não esqueciam a perda da Alsácia e da Lorena e a vontade de recuperação daquelas províncias dava-lhes mais ânimo. Em todos os países, os nacionalistas viam na guerra, que seria breve, o verdadeiro caminho para a paz.
As surpresas desta guerra foram uma perfeita negação dos juízos antecipados que goraram todas as expectativas. Os conhecimentos dos factos, por parte dos governantes, demonstram que ninguém tinha noção das proporções dos múltiplos conflitos que iam desde os países balcânicos e suas guerras até ao nosso Portugal, também mergulhado em crises após o regicídio e implantação da república. Ao rebentar do confronto, a reação foi perfeitamente inesperada. Grimberg, apoiado nessa expetativa, escreve: "Os ocidentais contavam que os alemães democratas, os meridionais, se aproveitassem da ocasião para deitar abaixo a hegemonia da Prússia, no seio do império; contavam ainda que o grande partido Social-democrata, um terço das vozes do Reichstag, se rebelasse contra o regime imperial. " .
Os alemães tinham a ilusão de poder vencer a França e chegar a Paris em pouco tempo, com movimentos ofensivos rápidos. Assim, a primeira fase intitulou-se a guerra de movimentos
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O Kaiser e os seus generais, entre eles, Moltke, Ludendorff e Hindenburg
Na política nacional, Guilherme II adotou uma linha conservadora, pois não conseguiu forte apoio da classe trabalhadora e alicerçou-se mais junto da abastada burguesia. No início da guerra, apesar da desunião partidária, dos interesses que estavam em jogo, as forças do Reichstag, os que odiavam o imperialismo em vez de aceitarem ordens, iniciariam uma guerra interna destruidora do império. Para reunir consenso e não olhar às fortes divisões, as palavras do Kaiser foram solenes e conciliatórias de modo a não haver divisões. Esperava-se que, com o início da guerra, as lutas internas de partidos e diferentes grupos, o império se dilacerasse. Mas é o contrário que acontece. Grimberg cita com admiração a frase do Kaiser que foi muito diplomata ao exclamar: Não distingo partidos, apenas vejo alemães!
O entusiasmo aumenta e os alemães partem para a guerra convencidos que vão defender-se e ao seu país. [48] À medida que a guerra se desenrolava, o Kaiser foi perdendo prestígio e controle dos acontecimentos, bem como perdia a capacidade de acompanhar as estratégias dos seus generais. Quando a guerra terminou, as suas palavras deixavam de ser ouvidas e Guilherme II teve de abdicar. Os tumultos decorrentes da falta de alimentos, da fadiga do devastador conflito e da agitação política da esquerda, eram excessivos para os poder gerir diplomaticamente. Enquanto o novo governo busca acordos de paz com os aliados, Guilherme II abdica e foge para o exílio, nos Países Baixos. Aí morreu, amargurado e triste, em Dron, já em plena segunda guerra mundial.
O início tão rápido da guerra deixou siderado o comum dos cidadãos europeus embalados na nova esperança do progresso e da paz que as ciências trariam no bolso, como rebuçados para inocentes crianças.
Depois dos acontecimentos de 1889 em Mayerling, com a morte do herdeiro ao trono, a vida do arquiduque Francisco Fernando (1863-1914) mudara drasticamente. Sendo extraordinariamente rico, nem por isso seu tio, o imperador, deixara de o controlar desde que passara a ser o presumível herdeiro. A paixão por uma condessa checa, Sofia, mostrou ser de uma grande imprudência. Não passava de uma modesta dama de companhia na corte da arquiduquesa Isabel. Esta imaginava que Francisco Fernando cortejasse uma das suas numerosas filhas, Isabel. Quando a verdade foi descoberta, rebentou um grande escândalo e a condessa foi expulsa. Francisco Fernando casa imediatamente, o que mostra integridade moral, mas do ponto de vista político foi tremendamente imprudente para um futuro imperador com tão graves responsabilidades. O imperador recusou-se terminantemente a reconhecer tal casamento, que ficou por ser monogâmico. Goravam-se assim todas as espectativas de alianças, já imaginadas em casas imperiais da Europa. A teimosia do imperador criou um grande embaraço: por um lado, o imperador não autorizava essa união e, por outro, o arquiduque recusava-se aceitar um outro casamento. Nem a intervenção do Papa, do czar da Rússia ou Guilherme da Alemanha conseguiram uma reconciliação entre tio e sobrinho.
Mais tarde, Francisco José apenas concedeu a Sofia o título de duquesa de Hohenberg, mas foi sempre preterida na corte e o imperador não aceitava que os filhos do sobrinho pudessem depois estar na linha da sucessão. As discussões entre tio e sobrinho denotavam fortes divergências e chegavam a ser muito violentas nos primeiros tempos.
Arquiduque Francisco Fernando
( Cf. Epistemowikia Revista «Hiperenciclopédica» de Divulgación del Saber. Segunda Época, Año VI Vol. 5, Núm. 4: de octubre a diciembre 2011 )
Segundo o historiador alemão Michael Freund, Francisco Fernando seria um homem de pouca energia, "escuro na aparência e nas emoções, que irradiava uma aura de estranheza e lançava uma sombra da violência e negligência" na sociedade austríaca. Todavia bem sabia que todas as decisões do imperador iriam depois refletir-se no seu governo e isso não podia ser aceite de bom grado. Porém, a uma certa altura, o sobrinho do Imperador colocou-se completamente à parte da vida política. Esteve 26 anos num papel cada vez mais secundário, o que levou o tio a ter mais confiança nele, em escolhas militares e para assistir a manobras e manifestações militares. Explica-se isso pela falta de forças do imperador e necessidade de apoio para as suas numerosas tarefas.
A situação não era porém das mais serenas pois, apesar de ser inteligente e culto, bem mais do que o imperador, não conseguia alcançar as boas graças na Corte, nem junto do povo. Faltava-lhe a amabilidade e a boa disposição do Imperador que tanto sabia já cativar o povo. A corte de Viena estava longe de ser um local pacífico, com os interesses familiares a imiscuírem-se na política e na aproximação do poder.
Francisco Fernando da Áustria. Cena familiar.
A situação não era porém muito tranquila, pois, apesar de ser inteligente e culto, bem mais do que o imperador, não conseguia ter captar a simpatia e o agrado do povo. Se lhe faltava a amabilidade e a boa disposição, o temperamento autoritário e violento eram evidentes. Se bem que depois do casamento e com mais idade tornara-se mais dissimulado e escondia sob a calma aparente uma crueldade e prepotência que no início muito se esbarraram com as atitudes do tio. No meio da agitação dos nacionalismos, Francisco Fernando tinha planos federalistas, dentro de um certo conservadorismo.
As divisões dentro do império eram demasiado profundas para se conjeturar qual seria a política que realmente iria seguir. O império era uma incógnita nas suas mãos. O apoio que parece que desejava encontrar na Rússia ver-se-ia depois que era um engano. Muitos eram os conspiradores, com intervenção até no âmbito internacional e a polícia secreta imperial estava sempre de sobreaviso.
Minutos antes do assassinato
Após o assassinato em Sarajevo, dos futuros herdeiros da coroa austríaca, a 28 de junho de 1914 por Gavrilo Princip, um estudante servo-bósnio, de 19 anos, possivelmente militante de um grupo extremista, "Mão Negra", descobriu-se que o atentado estava já planeado há muito. Contribuiu para o êxito do atentado as notícias que os jornais divulgavam, até com o seu itinerário. Toda a viagem tinha um risco enorme e antes do assassinato já outras tentativas se tinham gorado nessa manhã conturbada. Uma bomba atingira por engano os convidados da comitiva. A prudência seria avisada, pois a situação era demasiado tensa. Com a sua índole autoritária e violenta, o arquiduque reagiu mal. Mostrou toda a sua exasperação e cólera no discurso que dirigia às autoridades. "Então os senhores recebem seus convidados com bombas?" [49]
Após o assassinato de Sarajevo
Cerca de vinte pessoas tinham ficado feridas no atentado e os arquiduques queriam ir visitar, por solidariedade, os feridos no hospital. Por um erro fatal do motorista, o carro perdeu-se no caminho para o palácio, onde estavam hospedados e, ao passar numa rua secundária, o assassino avistou o automóvel e, rapidamente, disparou contra Francisco Fernando e a arquiduquesa, se bem que tentasse, em vez dela, atingir o ministro.
Agora o presumível herdeiro era o arquiduque Carlos que mostrava ser de caráter e educação muito superiores ao seu tio assassinado. Os filhos de Francisco Fernando, por disposição terminante do velho imperador, não podiam herdar o trono. Era a vingança de Francisco José contra o sobrinho a quem nunca perdoou a desobediência. Casado com a princesa Zita de Parma, iriam ser os últimos imperadores, por muito pouco tempo e após a morte do infeliz imperador octogenário imperador a quem a fatalidade pareceu sempre perseguir.
Imperador Francisco José
A Rússia estaria envolvida na conspiração pois o próprio czar e seus ministros mostraram-se a favor do desaparecimento do herdeiro austríaco num encontro com o rei da Roménia, Carlos I. Contrariando os austríacos, o primeiro ministro da Hungria, Tisza opunha-se à invasão da Sérvia pela Áustria, defendendo uma resolução pacífica e chegou a declarar que não assumiria nenhuma responsabilidade com um conflito armado contra a Sérvia, enquanto não fosse provado seu envolvimento no atentado de Sarajevo.
Tudo conspirava para que o imperador Francisco José não se pudesse manter, sem reagir face aos trágicos acontecimentos. Já antes os nacionalistas sérvios conspiravam contra o governo austríaco , uma série de tentativas de assassinato contra autoridades austro-húngaras eram um mau presságio para essa fatal visita do casal de herdeiros e sobrinhos do imperador.
Será possível pensar-se que a Rússia não ia reagir e que o conflito não se alargaria aos outros estados? Na verdade, as populações podiam não se aperceber do lado militarista e da corrida aos armamentos, mas a sucessão veloz dos acontecimentos roubou qualquer ilusão quando se entendeu melhor a extensão da guerra e das novas armas terríficas. Nas primeiras investidas dos austríacos, com entusiasmo do exército, a Sérvia alcançou várias vitórias significativas que davam ânimo ao povo, mas no final foi subjugada pelas forças dos alemães, austríacos e búlgaros. As perdas de vidas foram assustadoras. Mais de metade da população masculina desapareceu nesta guerra.
X - AS PORTAS DO INFERNO
Declaração Guerra à Sérvia
Estandartes "Aliados"
A sucessão de acontecimentos é aterradoramente rápida. A 28 de julho, o império austro-húngaro declara guerra à Servia. Seguidamente e sem mais delongas, no dia seguinte, a Rússia declara guerra contra os austríacos. No primeiro de Agosto é a vez de a Alemanha decretar guerra à Rússia.
Passados apenas dois dias é a vez da Alemanha declarar também guerra à França e no dia seguinte chega a ocasião da Inglaterra anunciar guerra à Alemanha, pois esta invadira já a Bélgica. A paz desaparecia num castelo de cartas que se desmoronava. Para quem notasse a fragilidade das alianças, a ganância e os imperialismos latentes, esta era uma ocasião propícia a todos os expansionismos. Face ao que parecia uma excelente oportunidade, caem por terra as coligações, os tratados e a paz que, apesar de tudo, se esperava voltar muito em breve.
Descrever a guerra em factos, em batalhas, em avanços e recuos, é um tratado militar que se veste de brocado vermelho e entra nos salões de conferências mais nos gabinetes e repartições militares, é a guerra dos generais, dos reis e governantes. São todos esses que preparam os planos, as estratégias e não enfrentaram nem sequer os treinos mais violentos da preparação, nem o horror das tragédias. Também não sofriam com a partida de maridos, irmãos, filhos, ou netos… Não sofriam por ver jovens, quase crianças, jovens saudáveis e belos, serem escolhidos para a ceifa da morte. Nenhum rei perde uma guerra nem a ganha. A verdade é que o povo é que mais sente, milhares e milhares de pessoas sofrem e morrem, ficam estropiadas, enlouquecem ou suicidam-se. Depois vem a fome, as epidemias, a falta de forças, a lenta degradação dos povos.
Conde Alfred Schlieffen
( Reservado e inteligente, entendia bem a situação europeia )
Os militares alemães tinham delineado uma estratégia que já vinha de longe e era da responsabilidade do conde Alfred von Schlieffen. Este militar berlinense, (1833-1913) depois da guerra franco-prussiana e da unificação da Alemanha, ocupou lugares de chefia militar e foi marechal-de-campo, estratega militar e chefe do estado-maior de 1891 a 1905. Schlieffen aparentava fragilidade, com os seus modos frios e severos. Toda a sua vida foi dedicada ao exército. Centralizava a sua vida nas campanhas com tamanha intensidade que uma vez um ajudante seu, no final de uma noite inteira a galopar pelo leste da Prússia, chamou sua atenção para a beleza do Rio Pregel, que brilhava esplendorosamente ao nascer do sol. O general lançou um olhar breve e duro e respondeu: "Um obstáculo pouco importante". [50]
Schlieffen, refletindo sobre as nuvens negras que se aglomeravam no horizonte da Europa, com toda a sua experiência bélica anterior, engendrou um novo plano de estratégia militar e deixou, em 1905, em forma de testamento, o chamado Plano Schlieffen, se bem que só falecesse oito anos mais tarde. Nesse plano dava indicações de como vencer qualquer guerra contra a França, que bem sabia quanto estava ferida nos seus brios pela perda das suas províncias e pelo desastre de 1871.
Teatro de Guerra
O plano Schlieffen tinha por objetivo derrotar a Terceira República francesa e, depois disso, avançar para o Império Russo e derrotá-lo. Parecia uma estratégia muito inteligente mas que dependia de ações disciplinadas e bem controladas para não dar tempo ao inimigo de reagir. A velocidade do ataque e a sua surpresa eram essências nesta estratégia.
Já se delineara uma manobra, o mais rápido possível, de entrada pelos Países Baixos e atingir de novo a capital francesa, repetindo a vitória de Sedan. Este extraordinário plano seria tão veloz que derrotaria a França em 40 dias. Deste modo, antes da guerra, havia necessidade de informações do que planeavam os países que podiam ser inimigos.
Pacto Franco - Japonês
Os militares deviam estar atentos aos riscos de espionagem, por isso, o caso do capitão Dreyfus foi um assunto tão trágico. A espionagem era uma arma perigosa, mas era um meio de tentar saber, ou mesmo antecipar os planos do inimigo. Para os alemães, a ofensiva devia ser antes da resposta da Rússia, pois era sabido que esta tinha uma aliança com a França. Para além do mais, o imperialismo russo era uma realidade que não podia ser esquecida, pois o passado dava provas claras disso. Era pela rapidez dos movimentos das tropas alemãs que se poderia evitar a tempo a entrada da Rússia. Goraram-se os planos.
Estudo dos planos: Hindenburg, Guilherme II e Ludendorff
Logo que o império austro-húngaro declarou guerra à Servia, a Rússia surgiu imediatamente em cena, quando se esperava que levasse, seis semanas, no mínimo, a organizar o exército. Não possuía um armamento adequado, apesar de ter muita tropa e cavalaria. Os historiadores insistem muito em clarificar que a Rússia entrou na guerra levada por um pan-eslavismo, mais do que por apoio à Sérvia. Durante muito tempo o Império austro-húngaro mantivera o equilíbrio entre as potências europeias. A declaração de guerra à Sérvia rompeu com toda a estabilidade na Europa inteira.
Enquanto a Áustria travava combates com os sérvios, de súbito, a Alemanha fica com duas frentes de combate, tal como anteriormente Schlieffen tanto temera. Também não estava prevista a rápida intervenção da Inglaterra com a mobilização das suas tropas vindas de todos lados do seu império.
Intensificação dos combates
Com a declaração de guerra à Sérvia, a Rússia aparece, com um plano muito ambicioso, aparentemente em defesa dos agredidos. O czar, apesar das viagens e da excelente educação, mesmo com a sua personalidade titubeante e pouco preparada para enfrentar os ministros, mostrou sempre ser um autocrata convicto. O imperialismo parecia-lhe de uma lógica correta. Porém, essas mudanças e crises no interior e exterior da Rússia tornaram-no vítima dos seus próprios erros e temores. As situações que enfrentava, no eclodir da grande guerra, necessitavam de um governo firme e inteligente, capaz de reunir à sua volta os intelectuais e representantes do povo tão oprimido.
Curiosamente, a impressão do embaixador inglês Sir George Buchanan acerca do czar era muito favorável, segundo Grimberg. Mas tal impressão não se coaduna com outras opiniões. Durante os oito anos permaneceu na Rússia, até 1918, Buchanan via no czar um homem afável, de grande cultura, metódico e cumpridor do seu dever.
A provável vitória da Rússia nesta guerra talvez fosse vista com alguma ingenuidade. Mas também podia haver uma inteligente manobra política com uma mobilização de tropas em massa. Se a Alemanha estava, devido à guerra, unida toda em volta do seu Kaiser, a estratégia de um inimigo comum exterior, podia criar alguma estabilidade interna, o que muito carecia o império, devido às revoltas e conflitos, acompanhados de novas ideias que punham em risco a coroa. Apesar disso, a situação não era muito favorável.
Luta sem limite
Os russos não pareciam a par do desenvolvimento das novas armas que aniquilariam qualquer cavalaria. Quanto ao conhecimento dos problemas internos, o czar alheava-se muito das transformações ocorridas com o progresso, bem assim como nunca teve a noção de estar num novo século e com novas formas de governo. A sua figura tornou-se trágica, diante dos factos demasiado complexos para alguém, tão preso ao poder e desconhecedor do seu próprio povo. A dinastia dos Romanov ameaçava já chegar ao fim…
Para o intransigentemente e hábil historiador de esquerda, [51] Eric Hobsbawm "o século vinte foi o mais assassino na história". Por entre todos os horrores e múltiplas guerras, coloca um período que vai de 1914 a 1945, na sua ótica "como uma única guerra de 30 anos" apenas com um intervalo nos anos vinte. Claro que a explosão pasmosa da ciência e das técnicas também alterou a forma do conflito, o avião, o submarino, os tanques de guerra, a rapidez das comunicações, as novas e aterradoras armas fizeram a sua aparição. Assistiu-se a uma mudança de estilos de vida, que atingiu as massas, com a indústria cultural e a dita democracia cultural, que se irá manifestar no período entre as duas guerras mundiais.
O reconhecimento da obscuridade do devir e das gerações obriga a considerar que o progresso só avança, muito mais rapidamente, por causa dos tempos de luta. Foi um salto no futuro, o que começou no século XX. O saber enciclopédico encontra relações entre os acontecimentos. As justificações encontradas são o fio que o historiador escolhe mas o mistério está na vontade, no agitar das multidões e para que lado pende a fortuna. Parece que se fala muito ao acaso ou à sorte, mas numa batalha e mais ainda numa guerra, são tantas as variáveis a considerar que depois haverá muitos que escapam ao olhar mais atento. Não se pode esquecer que o bom senso nos diz que só vemos o que queremos ver e a realidade nunca é a mesma para diferentes povos, quanto mais para uma só pessoa. Facto incontestável depois que aconteceu, foi o assassinato dos arquiduques de Áustria na sua visita à Sérvia e a declaração de guerra do imperador da Áustria, Francisco José. Todavia, até mesmo esse caso, a qualquer momento podia ter sido evitado.
Até então os conflitos europeus tinham-se resolvido, embora se tivessem agravado, mas os impérios conseguiam conter as revoltas e os grupos políticos. A Comuna de Paris e a guerra franco-prussiana são fatores que muito contribuíram para o descontentamento dos franceses. O episódio da Comuna teve ecos por toda a Europa e deixou uma França absolutamente estarrecida. Foi o que Eric Hobsbawm [52] considerou um caso " breve e brutal ----- e pouco habitual para a época- ---que desencadeou um terror cego no sector respeitável da sociedade, refletia já um problema fundamental da política da sociedade burguesa: o da sua democratização."[ tradução nossa]
De que lado se pode olhar este terrífico conflito sem vencedores nem vencidos e milhões de mortos? Os factos são sempre interpretados e nunca se pode ser neutro. Uma análise das ideias que circulam em determinadas épocas, ajudam a mostrar que são mais poderosas do que se possa pensar e mesmo a nossa perspetiva já mais distante não deixa de ser suspeita.
Pode-se falar de desaparição de três impérios por causa desta guerra. Tanto o Império alemão como o Austro-húngaro, ou Turco-otomano, que formariam as "Potências Centrais", ficaram destruídos. Já o império dos czares, que lutara na guerra, ao lado da Tríplice Entente, a contas com as lutas internas, sairá da guerra, como dizia Lenine, por causa de "uma paz dura mas necessária".
Na sua "História da Primeira Guerra Mundial " Wilson Churchill escrevia que os alemães tinham tomado uma decisão no ano de 1917 que seria uma mancha na sua política, tinham enviado para a Rússia a sua arma mais letal. Na frente ocidental eles tinham, desde o princípio, feito uso dos mais terríveis meios ofensivos que dispunham, agora foi com um sentimento de pavor que voltaram conta a Rússia a mais sinistra das suas armas. Enviavam Lenine num vagão selado, como um bacilo de peste. No ano de 1917, os alemães, vendo a dureza da luta travada em duas frentes, tinham facilitado a passagem para a Rússia da sua arma mais letal, Lenine.
Lenine
Lenine nasceu perto de São Petersburgo, cidade que um dia vira a ter o seu nome, Leninegrado, em sua honra, mas isso durou pouco tempo até regressar ao seu nome inicial. Quando nasceu ficou com o nome de Vladimir Ilyich Ulyanov. O seu pai era um alto funcionário do Estado e inspetor de escolas que vivia bem para a época. Sendo extremamente religioso e culto, mostrou vontade de dar boa educação aos seis filhos. Não há dúvida de que a influência do seu irmão mais velho Alexandre, um revolucionário, pesou muito na sua revolta contra o regime autocrático da Rússia. Este seu irmão foi enforcado, aos 21 anos, por uma tentativa frustrada de assassinato do czar Alexandre III, e a sua irmã Ana presa e deportada.
Lenine aos 17 anos já estava na Universidade. Foi um estudante de Direito, inteligente, que gostava de jogar xadrez, sendo grande apreciador da leitura de obras de toda a espécie, desde o poeta Alexander Pushkin, aos escritores Ivan Turgenev, Leo Tolstoi ou Nikolai Nekrasov e também lia muitas obras dos escritores mais revolucionários, Marx e Engels .
Devido à sua ação revolucionária foi deportado para a Sibéria por conspirar contra o czar. Aliás, sendo irmão de um revolucionário, esteve sempre vigiado pela polícia. Participava ativamente em reuniões conspiratórias e, numa delas, em São Petersburgo, entre os militantes, Lenine conheceu Nádeja Krupskaia, (1869-1939), revolucionária, escritora e sua conselheira, com quem veio a casar. Era de origem nobre, embora pobre. A mãe trabalhara como doméstica, depois de acabar os seus estudos. Nádeja continuou o trabalho da mãe, mas sem deixar de estudar.O escritor Edmund Wilson, no seu livro "Rumo à Estação Finlândia" escreveu acerca dela: "No início dos anos 1890, ensinava geografia em escolas dominicais para operários. Uma vez descobriu que uma de suas turmas era um grupo de estudos de Marx. Leu Marx também, e tornou-se marxista. Nas fotos que a mostram quando jovem, com blusas de colarinho alto e mangas largas da época, Krupskaia parece um tanto masculina, os cabelos lisos escovados para trás, os olhos apertados com uma expressão de desdém, um nariz voluntarioso e uma boca com lábios carnudos, porém carrancuda". Tornar-se-ia numa colaboradora de Lenine e acompanhou- no exílio e depois tornou-se sua secretária sempre com enorme admiração e fervor pela causa.
Com todas as suas viagens pela Europa, Lenine tornava-se cada vez mais capaz de entender o estado em que se encontrava o seu país e da possibilidade de pôr em prática os ideais de Marx e Engels, que iriam levar a que também escrevesse acerca de filosofia política.
Nadesda Krupskaia
Já antes Lenine e Krupskaia tinham vivido no exílio, na Sibéria. A essa época, passados muitos anos após a morte de Lenine, ela escreveu: "Como renasce vivo diante de meus olhos, aquele tempo de primitiva integridade e alegria de viver. Tudo parecia primitivo: a natureza, os cogumelos, a caça, o afetuoso círculo de amigos íntimos (…) passeios, canções, certa alegria ingénua comum. Em casa: a mãe, a economia doméstica primitiva, a nossa vida, o trabalho em comum, as mesmas impressões e reações". Tiveram de se separar, pois o desterro de Lenine acabava mais cedo que o exílio da esposa. Depois Krupskaia iria ter a Munique, para se encontrar com Lenine.
Foi assim que Lenine conseguiu passar pelos territórios alemães numa travessia arriscada. Tratava-se de uma aposta aventureira de levar esse rebelde a agitar o povo e com a sua ação doutrinária e todos os seus discursos, alcançaria muito mais do que o fariam cem divisões: o abandono da luta pela Rússia, paz separada que permitiria às tropas do czar voltarem-se contra os ocidentais. Precisarão de menos de um ano para ganhar a aposta arriscada. Porque para Lenine, a revolução só podia triunfar à custa da desistência militar. Os folhetos, apelos á revolta, iam muito mais seguramente dizimar o exército que ainda não era vermelho, agindo sobre o seu moral, do que as divisões de Ludendorff. Foi por não ter compreendido isto que Kerenski veio a perder o poder. Depois que Lenine e sua esposa Krupskaia conheceram seus companheiros exilados em Berna, um grupo de eventualmente 30 pessoas, embarcaram num comboio que os levou a Zurique. De lá, viajaram por diversos lugares até onde havia um comboio especial já à sua espera.
Note-se que foram acompanhados por dois oficiais do Exército alemão. Isso manifesta que, da parte dos germânicos, realmente houve uma estratégia de destabilização da Rússia com a presença de Lenine, Os exilados viajaram através de Frankfurt e Berlim até que, numa balsa, chegaram a Trelleborg. Quando relia as cartas de Lenine, passados muitos anos, a mulher dele ainda as recordava com a maior admiração e imaginava vê-lo diante de si, tão grande como vira em vida: por um lado, com o seu extraordinário espírito sóbrio, a sua apreciação clara da necessidade de uma luta implacável e, por outro lado, o facto de que, para ele, não existiam concessões ou hesitações que pudessem ser toleradas naqueles momentos de luta. Parece que Lenine prestava uma atenção contínua para o movimento das massas, para a organização das grandes multidões e uma nova maneira de ver a melhoria imediata das condições dos proletários.
Através da consulta das memórias de Krupskaia, pode saber-se muitos pormenores acerca de Lenine e nota-se a enorme admiração da esposa. Esta, na perigosa viagem de regresso à pátria, observara pela janela como estava a Alemanha em guerra. "Ficou profundamente comovida por ver a devastação geral e a falta de homens adultos. Os exilados debaixo de forte emoção, só puderam ver as mulheres, adolescentes e crianças nas estações, nos campos, e nas ruas das cidades".
Já ao chegar à Suécia, os exilados partiram de comboio para Estocolmo e daí para a Rússia. Se bem que ignorasse como seria a sua chegada e dos seus companheiros, Lenine estava expectante. A esposa escreveu ainda que, em Beloostrov, ao serem recebidos por muitos camaradas, mulheres trabalhadoras e os dirigentes, entraram todos juntos com os companheiros e Lenine ignorava de tal modo como seria recebido que perguntou se seriam presos quando chegassem. Os camaradas sorriram. [53] Era uma total surpresa o que os aguardava.
Ao desembarcar em São Petersburgo, Lenine teve o espanto de ser recebido ao som da Marselhesa, por uma multidão de trabalhadores, marinheiros e soldados, levando bandeiras vermelhas. Era um sinal prometedor e um ritual na Rússia revolucionária. Lenine foi formalmente recebido por Nikolay Chkheidze, o presidente menchevique do Soviete de Petrogrado. Lenine discursou emocionadamente, diante da multidão:
Discurso de Lenine
"A guerra imperialista é o início da guerra civil em toda a Europa... A revolução mundial socialista já amanheceu... Alemanha está a ferver... Qualquer dia, o conjunto do capitalismo europeu pode falhar. ..Marinheiros, camaradas, temos que lutar por uma revolução socialista, a lutar até que o proletariado tenha a vitória completa! Viva a revolução socialista no mundo!"
Foi assim que Lenine conseguiu atravessar os territórios alemães num golpe arriscado. Tratava-se de um gesto bem arrojado, mas com uma intenção bem definida. A sua ação doutrinária e todos os seus discursos iriam minar uma Rússia que já estava à beira de uma guerra civil. Este apoio a Lenine foi censurado por muito tempo. Falou-se em traição e acusações de Lenine ser um agente alemão.
O que Lenine fizesse era muito mais do que fariam cem divisões alemãs: esperava-se deste modo o abandono da luta pela Rússia, uma paz separada que permitiria às tropas do czar não combater mais os ocidentais. Precisarão de menos de um ano para ganhar a arriscada estratégia. A vitória de Lenine só se podia dar com uma revolução contando com a desistência militar, para chegar ao triunfo. Os folhetos e panfletos com apelos à revolta iriam muito mais seguramente, dizimar o exército que ainda era o branco, agindo sobre o seu moral com um maior impacto do que as divisões de Ludendorff.
Entretanto, parece que Kerenski, que era um revolucionário moderado não pareceu perceber o perigo que corria. Talvez porque não era tão radical, e porque não queria acompanhar um movimento revolucionário que atingiria extremos terríveis. Por isso, veio a perder o poder. Lenine surpreendeu-se com a sua receção tão otimista e, em breve, o seu papel era decisivo. É verdade que ainda teve mais um exílio na Finlândia, em 1917, mas este será um ano decisivo de mudanças para a história da Rússia.
É neste entretempo traiçoeiro que os EUA entram na guerra, enquanto os russos se viam obrigados a sair. Chegam à Europa mais de um milhão de soldados bem equipados e bem armados, ainda nada cansados e prontos para a luta. O seu país estava longe e não sofria as devastações que lavraram na França e especialmente fustigavam a Alemanha. A guerra torna-se mais definida no seu resultado. Realmente, o facto mais favorável para os americanos era o beneficio do conflito estar do outro lado do Atlântico e o seu país não ser invadido, nem ameaçado. Só os mares eram um risco grande que corriam, devido aos ataques dos submarinos alemães.
O mesmo não acontecia com Portugal e as suas colónias que foram fortemente ameaçadas. A África, embora não entrasse diretamente no conflito, tornou-se palco de guerra por razões expansionistas. Tanto a Itália como a Alemanha procuraram conquistar territórios enquanto os portugueses continuavam num lento e quase estagnado estado de colonização. Quando os alemães começaram a usar submarinos na guerra, a neutralidade dos Estados Unidos ficou abalada, pois essa nova ameaça nos mares dificultava as trocas comerciais com a Inglaterra e a França . Todavia, os próprios alemães temiam a entrada dos americanos na guerra, tanto mais que quando esta ameaça se começou a desenhar com mais força, tentaram terminar com toda a resistência dos aliados. Enquanto os alemães tivessem lutado nos Balcãs, sem invadir a Bélgica e ameaçando o Atlântico norte, os americanos tinham uma opinião neutral acerca do conflito.
Entretanto os alemães afundaram o Lusitânia, um dos maiores navios do mundo, em 1915, onde perecem 120 cidadãos americanos, para grande desolação dos americanos, mas só em 1917 o presidente Wilson deixou de adiar mais a entrada na guerra.
Naufrágio do "Lusitânia"
Segundo algumas fontes foi a interceção e descodificação pelos ingleses do telegrama "Zimmermann" , um telegrama codificado enviado pelo ministro do exterior do Império, cujo nome era Arthur Zimmermann, em 16 de janeiro de 1917, para o embaixador alemão no México, que os americanos não hesitaram mais. Tratava-se de propor uma aliança muito aliciante para o México, com recuperação de alguns territórios ao mesmo tempo que informavam que iam iniciar uma guerra submarina sem tréguas, o que de facto aconteceu.
Começava a fase do Bloqueio Económico e a entrada dos americanos na guerra. O presidente Wilson hesitara muito tempo na entrada do seu país na guerra, embora simpatizasse com a causa dos aliados. Até então tentara não entrar no confronto que já estendia por toda a Europa, alguns, como a Bélgica invadida, apenas para que os alemães pudessem atingir mais depressa a França.
Os seus ideais humanitários não se ajustavam à entrada numa guerra. Afirmava que "para combater as pessoas têm de se tornar brutais, impiedosas. Uma inexorável brutalidade vai endurecer cada fibra da nossa vida nacional, contaminar o Congresso, os tribunais, o agente de polícia e o homem da rua. Por todo o lado, ou quase, a guerra determinará a vida social, punirá todos os desvios".
Lideranças "Aliadas"
Intervenção dos EUA
O seu ideal de ordem social incluía porém um forte racismo e a neutralidade face á Grande Guerra é paradoxal pois teve uma forte intervenção militar na América latina. Interveio na Nicarágua, no México, com duras lutas e uma expedição punitiva falhada para acabar com o famoso Pancho Villa, grande inimigo dos americanos, e ainda no Panamá e Haiti.
O Presidente declara guerra à Alemanha em 6 de abril de 1917, e à Áustria-Hungria em 7 de Dezembro do mesmo ano. O curso da história alterava-se. A distância territorial do conflito quis que pouco mudasse a vida dos americanos no seu território. Não sofreram os danos da guerra que devastaram a Europa e a obrigaram no final a aceitar os "catorze pontos" de Wilson que destruíram o espírito de luta dos alemães, ao mesmo tempo que eram francamente utópicos para os franceses e serviam de boa propaganda com um novo espírito de colaboração de todos os Estados a partir do direito internacional.
Foi quando Guilherme II declara, em Fevereiro de 1917, que vai iniciar uma guerra total com submarinos, sem qualquer respeito pelos direitos dos países neutros e pelos seus navios, os Estados Unidos que se vêm atacados, não hesitam mais e entram na guerra. Era uma viragem no rumo da guerra, pois a Rússia, a braços com os seus graves problemas internos, saía da luta com um tratado desastroso, enquanto do outro lado do Atlântico chegavam milhares de soldados bem preparados e equipados para o combate.
Se os alemães conseguiram afundar grandes unidades de navios, a sua ação decresceu, pois não tinham capacidade de construção desses submarinos de que necessitavam cada vez mais.
O mais extraordinário comandante de submarinos alemães foi Lothar de la Perière (1886–1941) e foi mesmo quem mais se notabilizou em todas as guerras. Com 14 patrulhas num U-35, afundou 189 navios mercantes e 2 barcos de guerra. No final da guerra, ainda afundou mais navios mercantes e serviu na segunda guerra. Paradoxalmente, a sua morte foi causada por um acidente ao aterrar um avião.
Nada tão cruel se imaginava, poucos anos atrás.
Lothar de La Perière
Em 1914, o Almirante inglês, William Henderson, confessava com uma inocência que só se coadunava com o modelo ético e que desapareceu no furor das guerras, não poder acreditar no uso bárbaro da guerra submarina: "Mesmo que um submarino possa funcionar por milagre, nunca será usado. Nenhum país no mundo jamais usaria uma forma tão cruel e mesquinho de instrumento de guerra".
A vida a bordo desses pequenos esquifes de mortos vivos, era quase insuportável. "os oficiais e os marinheiros dos submarinos passavam por terríveis provações psicológicas (…) e os ingleses descobriam todos os dias novos meios de defesa: o fio de aço nas águas estreitas, vastas áreas minadas". Os submarinos alemães eram um perigo, mas os infelizes que os tripulavam não tinham grandes possibilidades de voltar a ver o céu.
Poucos anos depois, em Abril de 1917, face ao desgaste da guerra submarina, aparece todo o desânimo na desolada exclamação do almirante William Sims, da Marinha dos EUA: Estamos a perder a guerra! E, a bem da verdade, foi a guerra submarina que mais aproximou os alemães da vitória.
A guerra é uma continuidade da política e muda como um camaleão assim o disse [54] Carl von Clausewitz (1780-1830) que deve ser recordado com toda a razão por ter sido mesmo um maiores filósofos e historiadores militares de todos os tempos. É com surpresa que se pode ler o que dele escreve um professor de estratégia militar americano, Chris Bassford: Clausewitz: "é a pedra angular teórica de todos os militares dos EUA " e é ensinado até nas escolas superiores. Considera que os rivais genuínos de Clausewitz são muito poucos, só o chinês Sun Tzu e Tucídides vêm à mente.
Carl von Clausewitz
Até agora parece que não foi superado na arte da estratégia bélica. A sua obra " Da Guerra" Vom Kriege " [55] tornou-se um clássico de sempre, pois abarca o desejo de paz e felicidade para todos ao mesmo tempo que apresenta as suas teses bélicas. Lenine gravou algumas das suas frases, Estaline respeitava-o, Lawrence da Arábia também, e se é por vezes esquecido, logo aparece de novo, pois há uma necessidade de ver que a "guerra é a continuação da diplomacia por outros meios" - quando se quer evitar uma guerra precisa-se de saber como se pode evitar e a como se deve agir.
Era um verdadeiro prussiano, se isto pode ser dito tendo em conta toda a especificidade de um determinado modo de pensar e agir, nascido em Burg, perto de Magdeburgo, filho de um militar do exercito de Frederico, o Grande, não admira que seguisse a carreira militar. Antes de ser professor, esteve prisioneiro dos franceses, na época napoleónica. Não admira portanto tenha por base o estudo da loucura de Napoleão em invadir a Rússia, sem perceção do que era aquele país e as lições duradouras que daí pode escrever. O povo alemão, quando Clausewitz viveu e refletia sobre a guerra e mil assuntos relacionados, desde a filosofia à história e a questões éticas, assuntos muito do seu interesse, estava muito dividido quanto à França.
Se havia uma forte oposição por um lado, por outro lado pensadores tais como Hegel ou Goethe admiravam Napoleão e viam nele um libertador. A intenção de Clausewitz, ao combater ao lado dos russos, pode parecer paradoxal, mas tinha por fundamento libertar o seu país dos invasores franceses. Supunha mesmo que o czar estaria na disposição de ajudar a Alemanha. Para além de militar, foi diretor da Escola Militar de Berlim e, nos últimos treze anos de sua vida, dedicou-se à elaboração da sua obra magna que abarcava a história, ética, filosofia da guerra e se tornou uma referência na primeira e na segunda guerra mundiais. Só após a sua morte súbita devido à cólera, a sua esposa entregou o manuscrito para a imprensa.
Para além de grande capacidade organizativa, há nas obras uma preparação e treino dos militares, da defesa e ataque com a maior mestria, com reflexão ética de índole filosófica acerca da guerra e da paz. A sua frase ficou célebre: "A guerra é a continuação da diplomacia por outros meios".
Clausewitz [56] considerava fundamental que a guerra estivesse sempre submetida à política. Não se poderia vencer nenhuma guerra sem compreender os objetivos e a disponibilidade de meios¸ ou sem o cálculo racional das capacidades e das oportunidades, ou o estabelecimento dos limites éticos ao uso da força - sempre submetida aos objetivos políticos. Queria ser uma análise da guerra através de todos os tempos. A sua própria vivência da guerra e o seu saber e cultura histórica possibilitaram que escrevesse com o rigor da análise lógica toda a estratégia fundamental para todas as nações. Crendo na superioridade da defesa, a sua ideia sintetiza-se na noção de que o melhor ataque é uma ótima defesa. Esta seria o elemento dissuasor pois isso permitiria a guerra de desgaste do inimigo até escolher o momento correto para o contra-ataque.
General Clausewitz
Clausewitz [57] procurava elucidar a conduta dos Estados nas guerras de modo a que trouxessem benefícios para a conclusão de uma reforma democrática internacional. Defendia a tese de que se tinha de entender os princípios, forças e tendências que orientam a guerra, compreender as funções da violência nos relacionamentos entre os Estados e compreender depois o seu uso lógico e bem-sucedido. Não aceitava que os militares não se interessassem por teorias e só se limitassem a obedecer.
No meio das suas hipóteses, acreditava que o conceito absoluto de guerra é sempre modificado pelas forças do mundo real. Clausewitz [58] queria uma paz, de um modo defensivo, o que muito se pode verificar nas estratégias usadas na grande guerra:
"Se a defesa é a forma mais forte da guerra, ainda tem um objeto negativo, segue-se que ele deve ser usado apenas enquanto fraqueza obriga, e ser abandonada tão logo se somos fortes o suficiente para perseguir um objeto positivo. Quando se tem usado medidas defensivas com sucesso, um equilíbrio mais favorável de resistência geralmente é criado, assim o curso natural na guerra é começar defensivamente e terminar no ataque "
Análise trinitária da natureza da guerra, de Michel Handel
(Paixão e odio, Governo e Generais e exércitos).
As ilusões de que depois das guerras viriam tempos de uma paz duradoura eram tão vivas nas vésperas das guerras napoleónicas quanto nas das Primeira e Segunda Guerra Mundiais. É estranho como o homem comum se deixa envolver sem razões lógicas, mas muito emotivas, num conflito do qual pouco sabe e tanto se entusiasma. Com a frase "O dever chama-me" quantos jovens sadios e lúcidos não abandonam as famílias, empregos e o seu destino, por uma causa alheia onde não passarão de uma pequeníssima peça facilmente descartável numa máquina implacável e trágica? A ironia de todas as guerras é que para ela são escolhidos os mais aptos, saudáveis e plenos de vida e enviam-se para a morte, para a loucura ou para mutilação, gente que é o sangue vivo de uma nação.
No dia de declaração da grande guerra, a bela e misteriosa bailarina, Mata-Hari, suposta espia de origem holandesa, tomava uma refeição com o Chefe da polícia alemã, em Berlim, depois de um estrondoso êxito de estreia no grande casino berlinense.
Mata-Hari
Mata-Hari, cujo verdadeiro nome era Marguerite Gertrude Zelle (1876-1917) suscitara a maior admiração e escândalo desde que aparecera em 1903 em Paris.
Era uma aventureira que arriscara tudo numa jogada para atrair as atenções do público. Preparou as lendas que a envolveram e viveu rodeada de um certo mistério que ela própria alimentava. A sua personalidade, quando era extremamente jovem, fora posta à prova e revelou-se de enorme complexidade e depois excessivamente confiante na sua beleza e capacidade de fascinar tudo e todos. Desejava ser vista como oriental e, de facto, era filha de pai javanês e mãe holandesa. Uma ambição desmedida seria uma das suas características e os meios para se tornar famosa foram aqueles que mais perto de si encontrava. Casou com um capitão, Rodolfo Mac Leod, e inicialmente parecia muito feliz, até frequentara a alta aristocracia de Amesterdão [59] segundo Jean-Jacques Rivière. Em breve, porém, o capitão revelou que tinha um péssimo caráter mas, sem mais recursos, teve de o acompanhar para o Extremo Oriente. Aí, em circunstâncias misteriosas, um dos seus filhos foi morto por envenenamento. O marido, com o seu temperamento terrível, passou a beber cada vez mais e a culpá-la por aquela morte. No seu regresso à Holanda, separou-se dele, pois cada dia se tornava cada vez mais insuportável e agressivo.
É então que começa a imaginar um modo de fazer sucesso. O nome Mata Hari foi inventado por ela e significava "Os olhos da Aurora".
Mata-Hari
Na realidade, o seu conhecimento das danças, que dizia serem orientais, não correspondia à verdade e pode dizer-se quase nulo. As lições de dança que recebeu foram já em Paris quando lá chegou. O certo é que o embuste de ser uma exótica e bela bailarina, nascida na Índia, que trazia grande novidade para a Europa acerca de danças orientais, teve redundante êxito. Com arrojo enorme, apenas carregada de sonhos e de cinco malas, instalou-se num dos melhores hotéis da cidade.
Catálogo de Moda ( 1904)
Estava-se então no ano de 1903, a Belle Époque mostrava a sua faceta de vida louca, grandes fortunas e paixões, de entusiasmo e admiração por todo o progresso e novidade. Era uma época assim que até conseguiu a admiração de todos pelas suas danças pseudo Orientais que no fundo ela inventava. Chegou a dançar ao som de músicas de Gluck, "A dança da Princesa e da Flor Mágica" [60] e era admirada por compositores célebres, Massenet e Puccini, que lhe enviavam cartas entusiasmadas.
"A dança era um poema e os gestos as palavras, ou versos". Era assim que se expressava para explicar os seus bailados aos seus admiradores. A sua fulgurante carreira de dançarina deu-lhe possivelmente uma noção exagerada do fascínio e poder que tinha sobre os homens. Apareceu com grande êxito em muitas capitais da Europa e até no Cairo. Em 1906 dança em Monte Carlo, apresentando o ballet do "Roi Lahore". Conhece um oficial alemão muito rico e apaixonou-se por ele. Abandona a dança e segue-o para Berlim e depois para diversos locais. Passa a conviver com diversos membros do Estado Maior alemão, depois de estar na Silésia, e parece que terá sido então que teria sido contratada pelos serviços secretos. Mas a dúvida permanece.
Tinha 38 anos no início da guerra e uma reputação de bailarina que já não tinha a mesma celebridade e grande sedução dos tempos dourados de Paris. Apesar disso tem sucesso em Berlim. Todavia, volta à Holanda, onde passa algum tempo. Já de regresso à França, ofereceu os seus serviços de ajuda aos militares enfermos que se encontravam em Vittel. [61] Aí, num hospital militar, encontra um ferido, o capitão russo Vadim de Massloff. Uma paixão decisiva, pois lhe retira muito da sua lucidez face ao xadrez perigoso em que se movia.
No final, até parece ter uma ingénua confiança inabalável na sua capacidade de convencer tudo e todos e passar incólume no meio dos conflitos e interesses dos países. Não se dava bem conta de que não passava de mais uma peça num jogo bem perigoso com interesses e ambições muito mais poderosos e tenebrosos do que os seus. Nada parece ser muito certo acerca dos serviços de espionagem que terá levado a cabo.
Mal vista em Inglaterra, pois há muito que os ingleses suspeitam das suas atividades desde a época da Silésia e é quando está em Londres que aumentam as suspeitas de espionagem. Ladoux, chefe da espionagem francesa, é quem parece que a contrata para espiar os alemães, o que ela que aceita prontamente. Mas nem recebe a alta soma prometida, nem lhe dão qualquer missão. As informações que passa não têm interesse que valessem a pena. Entretanto Mata Hari já está a viver em Madrid.
Mata-Hari
Os factos ocorridos na capital madrilena, nos fins de 1916 e inícios de 1917, são dos mais obscuros da sua misteriosa vida. Sabe-se que os alemães tinham feito lá um forte centro de espionagem. Contatou aí um capitão von Kalle e dá notícia disso a Ladoux, mas as dúvidas da sua lealdade à França aumentam. Ficou então sob vigia, sem o saber. O sangue frio ou a certeza de que estava acima das suspeitas dão-lhe uma segurança que não era já real. Em Espanha, afirma estar a cumprir uma ação de espionagem para os franceses.. Deseja regressar à sua terra natal, a Holanda mas, em vez disso, teve de ficar retida em Paris. Foi então acusada e presa por espiar contra a França. A bela espia era conhecida pelo nome do código, dado pelos alemães, de H 21, o que nunca se confirmou e ela também não o negou. Insistiu sempre em estar na contra espionagem a favor dos franceses. Durante os interrogatórios mostrou não esconder o facto de conhecer importantes contatos alemães, mas levantou sempre a hipótese firme de ser uma agente dupla ao serviço da França. Formalmente acusada de espionagem pelos serviços secretos franceses, como agente dupla contra a França, é julgada, considerada culpada, e condenada à morte.
Esse julgamento é contraditório e pelo menos duas testemunhas abonatórias não compareceram. Mata Hari esteve sempre confiante, apenas se comoveu quando o seu advogado desatou a chorar. Nessa altura deve ter sofrido um forte golpe na sua confiança, que até em tão não a abandonara. A acusação adensou-se quando foi dito que 50 mil soldados tinham morrido por sua culpa, com as informações vitais dadas ao inimigo.
Nunca se pôde ter certeza se era mesmo uma espia alemã e a sua morte em 1917 revela uma coragem e sangue frio impressionantes. Nem deixou que lhe vendassem os olhos, antes dos tiros fatais.
Execução de "Mata-Hari" ( 1917 )
O seu papel de espia ficou sempre em dúvida, tal a ambiguidade da sua vida. Tanto se notabilizou junto do ministro francês da guerra, como o chefe da polícia de Berlim. As grandes somas que recebeu dos seus apaixonados, da França, da Alemanha, da Bélgica e até da Rússia, eram tão espantosas como rapidamente dissipadas, com falta de discernimento, arruinando banqueiros e milionários. As suas viagens que a levaram a tantos países europeus, da Inglaterra a Espanha, da Bélgica, à Alemanha, levantam questões que se misturam com lendas e sombras de modo a alimentar o mito que se criou à sua volta.
Não era francesa, as raízes que a podiam ligar à Holanda eram fracas, estivera no extremo oriente e movia-se em ambientes bem perigosos numa Europa dividida, em que cada palavra, gesto ou ação tinham de ser muito cuidadosos, pois os espiões e as desconfianças ocultavam-se em cada canto. Com tão acidentado trajeto de vida, entre paixões, admiração e suspeitas, tornou-se uma personagem lendária da cultura popular. Tornou-se célebre por ser a heroína de diversos romances e filmes de Hollywood, uma lenda de "mulher fatal", que esconde tragédias e ódios, ganância e traições no aterrador conflito em que a Europa, cada vez mais dividida, se afundava.
Enquanto a espionagem era um dos meios de tentar saber o que o inimigo planeava, a guerra na frente continuava a devastar as tropas de ambos os lados sem se poder decidir qual o rumo dos acontecimentos. Ainda no ano de 1916, caso fosse possível capturar a região de Verdun e seus fortes, o exército germânico teria obtido não apenas um trunfo logístico mas também teria desferido um duro golpe no enfraquecimento do ânimo francês, reeditando o pesadelo de uma virtual captura de Paris no fatídico ano de 1870. As ruínas do que restou dos locais são uma prova da intensidade da luta e das perdas sofridas de ambos os lados, sem falar nos civis mortos.
A iniciativa foi, na maior parte, germânica, com intenso fogo de artilharia, como de costume nessa guerra, mas fundamentalmente com vigorosas tentativas de avanço da infantaria, sempre com perdas impressionantes. Um grande contingente de combatentes do Kaiser foi inicialmente concentrado e empregue na ofensiva. Julgava-se que isso ia constituir uma surpresa para os franceses, prevendo-se uma captura rápida do complexo de fortalezas. A denodada resistência das tropas francesas, inicialmente em número muito inferior, foi no entanto decisiva. Com isso deu-se tempo suficiente para a chegada de um contingente suplementar em número comparável ao da ofensiva alemã.
Equilibradas as forças, boa parte das intenções alemãs já estava frustrada, mas os generais insistiram na tentativa de êxito. Algumas fortalezas ainda chegaram a ser capturadas, sempre com perdas de muitas vidas, mas logo para eram rapidamente recuperadas pelos franceses.
Cidade Bombardeada - Grande Guerra
(http://www.histoire-fr.com/troisieme_republique_premiere_guerre_mondiale_4.htm)
Entretanto, os jornais espalhavam as notícias da batalha. Gerava-se intensa apreensão em Paris e no resto da França onde o eco das batalhas desanimava a população. A chegada constante de novos dados do que se passava na frente mantinha uma permanente ansiedade na população principalmente em Paris, Londres e nas cidades germânicas.
O presidente Clemenceau, no início estava tão pouco preparado para uma guerra que, depois do atentado de Sarajevo, ainda escrevia no seu diário que o imperador Francisco José era uma garantia da paz na Europa. Também os telegramas entre o czar e o Kaiser denotavam uma amizade que só podia ser hipocrisia diplomática de ambas as partes. Quanto ao lado dos franceses, passado o entusiasmo e romantismo inicial, a frieza dos acontecimentos da guerra que parecia afinal nunca mais acabar, e a sua tremenda crueldade surgia com todo o realismo.
O exército francês estava muito mal preparado e não previra o ataque fulminante da Alemanha que contava mesmo com a surpresa para alcançar a vitória. O general Foch ainda esperava passar o Verão na sua residência na Bretanha, após as festas de 14 de Julho!
General Foch
A sua visão das possibilidades das novas armas era muito limitada e, chegou a dizer, em tom de ironia e de fé nas velhas formas de combate, nem mais nem menos que : "Os aviões são brinquedos interessantes, mas sem nenhum valor militar".
Uma nova "Arma". O Avião.
Nesta guerra iria ser tudo muito diferente do que o general Foch imaginava neste início de confrontos. O avião passou a ter uma crescente relevância no decidir das lutas. A cavalaria e infantaria perderiam de modo trágico toda a força que tiveram ainda na guerra de 1870 diante de novos meios de combate.
O avião de caça iniciaria a sua tarefa fatal. As tecnologias cada vez mais avançadas e eficazes vieram demonstrar um poder que nunca mais parou de aumentar. A função aeronáutica não se limitou a abater os aviões adversários, servia de observação e tinha cada vez mais o poder de ajudar os combates em terra. Se surgiram figuras imortalizadas do lado dos ingleses, franceses e americanos, a maior lenda na aviação militar foi o famoso Barão Vermelho, que contou cerca de 80 vitórias no seu triplano de cor vermelha que lhe deu o nome.
Aviação Militar - Grande Guerra
Manfred von Richthofen pertencia à mais velha nobreza alemã. Era natural da Silésia e seu pai, um prussiano militarista, pertencia aos mais altos comandos militares. A sua educação iniciou-se muito cedo e, sem o consultar, o pai inscreveu-o na Escola para Cadetes com apenas 11 anos. Desde os 5 anos que já estudava. Os seus dois irmãos mais novos, Lotar e Otto Bolko, também combateram na guerra e a irmã foi enfermeira dos feridos em combate. Richthofen revelou sempre os melhores dotes, em equitação, caça e em todos os treinos a que foi submetido. O jovem prussiano, disciplinado, corajoso e inteligente, fora um grande caçador nas propriedades dos pais e agora ia ser um caçador famoso nos céus da Europa.
No seu diário descortina-se, por trás de uma linguagem simples, valores morais muito elevados, grande sentido estético e amor à natureza. A fraternidade e o respeito pela dignidade humana, apesar do militarismo e de estar na frente do combate, distinguem a sua personalidade. Aliado a um bom sentido de humor, não há resquícios de um combatente feroz. Pelos feitos de aviação realizados, tornou-se único, numa lenda e com tal fama, que até era admirado pelos seus inimigos. Foi ele o primeiro a estrear um triplano "Fokker" na frente da batalha, no Outono de 1916.
Manfred von Richthofen
A sua ação e intrepidez tornaram-no um forte incentivo para a luta dos alemães que viam nele a coragem personificada. Antes de morrer, ainda conseguiu escrever um livro "O lutador vermelho" 1917, "Der rote Kampfflieger", cuja edição se esgotou até na América.
Barão Vermelho
(http://historiaespetacular.blogspot.pt/2012/01/o-barao-vermelho.html)
Nada como um herói para exaltar a fantasia e elevar o moral das tropas. Com as mais altas condecorações tornou-se numa lenda que durou até aos nossos dias. Mesmo que a sua agressividade fosse extrema e tivesse passado de caçador das florestas para a de seres humanos, o seu sangue frio e arrogância eram firmes. A aviação, para quem gostava tanto da caça, ao transformar-se em arma que consegue abater um alvo, similar a si mesmo, no caso de um ser humano que se torna unido na vida e na morte a uma máquina, face a um outro combatente igual a si mesmo, atinge uma situação que deixa de parecer ação de guerra e muito mais um verdadeiro desafio levado ao seu máximo limite.
Abater ou ser abatido. Até que ponto tal ação se coloca entre o desporto e a guerra? Será o último desafio de um guerreiro na sua completa solidão, em que toda a lógica se resume a ataque e defesa, numa estratégia de caça, mas muito além dela.
Sem ser um desporto de caça nem um jogo, a guerra nos ares toma uma dimensão mais elevada e não mostra aquele horror e degradação das trincheiras.
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Manfred Von Richthofen
( http://historiaespetacular.blogspot.pt/2012/01/o-barao-vermelho.htm)
Parece que o Barão Vermelho, com o seu avião, propositadamente pintado da cor do sangue e da morte, era um militar que levou a guerra ao seu limite, sem sujar as mãos na terra, sem sentir o cheiro pútrido e de morte na frente, nem o combate sujo de milhares de homens na lama, comandados por chefes invisíveis, que não vêm nem sentem sofrimento, torna-o um caso raro.
No caso do jovem Richthofen, por breves anos, a luta era mais do que uma arte, uma questão de perícia e de sangue frio. Tornava-se num desafio pessoal, um duelo de vida ou de morte, cuja embriaguez, mais do que a caça, não pensa na presa, mas na capacidade de vencer as estratégias e ciladas do inimigo, com uma estranha lealdade numa competição de morte. O respeito que o inimigo lhe merecia manifestava-se por enviar cumprimentos aos seus adversários, quando os sabia feridos num hospital.
A honestidade e a igualdade de oportunidades aumentam o desafio que o jovem prussiano devia ver cada vez mais como algo peculiar, sem ter nada a ver com o derramar de sangue, a dor e corpos despedaçados nos campos de batalha. Para ser verdadeiramente um guerreiro dos ares, não tocava no chão nem sentia o odor e as terríveis condições das trincheiras. Aí os seres humanos não lutavam mais. Apenas tentavam uma sobrevivência para além do possível em condições que já não eram de humanos. Mas o ar era o contrário da terra.
Bem distante e em contraste o jovem francês, Raymond Naegelen, a combater na região de Champagne descreve: "O odor fétido penetra na garganta logo que chegamos à entrada da nossa nova trincheira, à direita dos Éparges. Chove torrencialmente e protegemo-nos com o que há. As lonas e tendas de campanha encostadas aos muros da trincheira. Ao amanhecer do dia seguinte, constatamos estarrecidos que nossas trincheiras estavam construídas sobre um montão de cadáveres e que as lonas que nossos predecessores haviam colocado estavam para ocultar da vista os corpos e restos humanos que ali estavam".
É um perfeito contraste com a luta que se trava nos céus, na maior solidão, juntando a máquina e o homem numa só peça para viver ou morrer juntos.
Aviação e novas Estratégias
A guerra na terra era a antítese de um cavaleiro nos ares que ainda podia ser digno e humano ao cumprimentar ou saudar um inimigo. Richthofen procedeu assim diversas vezes, com grande humanidade para com os vencidos. Pode dizer-se que eram ainda os valores humanísticos e profundamente civilizados que se manifestavam de uma Europa culta e requintada. No leste de África, o Coronel Paul von Lettow-Vorbeck, com uma delicadeza de maneiras que destoava com a habilidade militar, após a humilhação da derrota dos ingleses em Tanga, no início de Novembro de 1914, reuniu-se, sob uma bandeira branca, com os chefes do inimigo derrotado para trocar opiniões acerca da ação e para compartilhar uma bebida.
Aviação no campo de batalha
O que se seguiu fechava para sempre as portas à grandeza do espírito e à cortesia e só restaria a carnificina impiedosa a que milhões foram arrastados e ainda mais na Segunda Guerra, em que os civis foram também grandes vítimas.
A primeira vez que o seu caça foi abatido, ficou apenas gravemente ferido, mas conseguiu recuperar. Porém, nunca mais foi o mesmo. Devido às múltiplas operações aos estilhaços que ficaram no crânio, passou a sofrer horríveis dores de cabeça e alterações de humor que nunca tivera. Durante o seu restabelecimento, ainda viajou muito a incutir coragem, de que tanto precisavam, às tropas alemãs que muito o estimavam. Todavia, já tinha a perceção de que a guerra estava perdida e andava extremamente acabrunhado. Por fim, foi abatido, por ironia da sorte, mesmo no fim da guerra, e cai em campo inimigo.
Talvez por isso tudo, e por um respeito que só os heróis merecem, os aliados, mesmo sendo um inimigo alemão que caíra no território onde os australianos lutavam, prestaram-lhe todas as honras militares no seu enterro pois o seu exemplo único na aviação de todos os tempos assim merecia
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Manfred von Richthofen
Enquanto a aviação era cada vez mais uma arma que a técnica muito aperfeiçoava, tanto para reconhecimentos para ataques, uma outra forma de aparelho voador, herdeiro da barcarola de Bartolomeu de Gusmão era experimentada com grande empenho pelo Conde alemão Ferdinand von Zeppelin. Com o nome do seu inventor, surgirá o dirigível para passageiros que conseguiu construir, depois de muitos esforços e de passar mesmo pela falência. Felizmente, no Verão de 1900, o seu voo inaugural foi um êxito que o trouxe para a celebridade e, já em 1908, acabou com todas as suas dívidas. Numa viagem de 12 horas, conseguira passar os Alpes, sem qualquer escala. Agora até o governo lhe pedia os serviços. Quando começou a primeira guerra mundial, já existia a Companhia Zeppelin e não faltaram oportunidades para tornar esse dirigível, uma arma terrível. Ao lado dos aviões, os dirigíveis alemães chegaram a bombardear regiões da França e da Inglaterra.
Zeppelin em Berlim.
Estes dirigíveis tornaram-se numa das suas glórias e um meio de manter elevado o orgulho do povo germânico, que muito carecia dele, face à situação de penúria e de carência de tudo, em que as cidades e aldeias cada vez estavam mais afundadas e sem a presença de gente válida para trabalhar.
Esta foi a última guerra onde os heróis aparecem com uma dignidade que nunca mais se reencontrou. Nem o respeito pelo inimigo, nem a aposta no código de honra mereceram depois o mesmo trato. Com a carnificina da cavalaria e infantaria, face às máquinas de ferro e de aço, aos meios químicos e desumanos empregues, de uma era que corria para sempre as cortinas de um cenário que perdeu o próprio sentido do humano. Havia a crença no velho mito napoleónico de que, a força moral das tropas é que era o essencial, porém também isso iria cair por terra. A impreparação do exército francês patenteou-se logo no início, porque não estava equipado e não se fazia ideia da falta da artilharia pesada. Os alemães podiam atacar sem réplicas dos franceses.
Depois de se perceber melhor como era a vida na frente, talvez isso explique a impressionante adesão popular à causa da manutenção de Verdun e a grande disposição dos militares em se encaminharem para lá. Os franceses ainda empregaram com sucesso uma estratégia de revezar constantemente as tropas, de forma que uma quantidade muito maior de militares chegou a tomar parte da batalha ao mesmo tempo que seu desgaste pudesse ser menor. Do lado alemão, as mesmas tropas mantiveram-se sem alteração tentando resistir, o que se revelou impossível, até que, extenuadas, recuaram e entrincheiraram-se em posição mais estratégica.
Verdun revelou-se não ser apenas uma batalha. Os ingleses iam entrar na guerra, nesses inícios do Verão chegavam os destacamentos dos voluntários e a estratégia era abrir uma nova brecha nas forças alemãs. Assim, pesou fortemente a eclosão da batalha do Somme, onde a ofensiva franco-britânica obrigou os alemães a abandonarem o ímpeto sobre Verdun. Foi a primeira vitória com grande peso positivo moral para os franceses.
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Campo de Batalha
General Helmuth Moltke, o "Velho".
O General Helmuth Johann von Moltke (1800-1891),depois conhecido por "Elder", "o velho" para o distinguir do sobrinho, denominado "o novo", era senhor de uma longa preparação estratégica e discípulo de Carl von Clausewitz. Planeou e chefiou a guerra franco prussiana e seria uma referência para as estratégias da Grande Guerra. No seu testamento (1890) o general Moltke, o velho, escrevera que "uma guerra entre duas frentes [Impérios centrais contra a França e as Rússia] seria fatal para o Império alemão." Os seus estudos centram-se sobre as marchas e logística de um exército, temas como a alimentação dos exércitos concentrados no mesmo local, a separação das tropas para marchar e sua convergência durante a batalha, o aumento da flexibilidade, com tropas separadas, mas submetidas às instruções de um comandante. Para Moltke era fundamental haver diversas escolhas e consequências logo no planeamento.
Alguns dos seus pensamentos ficaram célebres pelo bom senso que encerram: "Nenhum plano de batalha sobrevive ao contato com o inimigo"
Como se pode ver, a mesma ideia de Clausewitz para a necessidade de ter a mais vasta multiplicidade de variáveis face a qualquer combate era fundamental. Sem ter tomado em conta a extrema mobilidade que os exércitos pudessem ter, a guerra não tinha bom rumo. O seu plano visava mais a defesa do território em relação à França do que um ataque. A estratégia militar compreendia diversas etapas. Primeiro o plano de mobilização, seguindo-se a concentração, depois o transporte e o plano de operações. Assim, a preparação para a guerra era feita com antecedência, atentando aos mínimos pormenores, e esse planeamento precisava ser constantemente atualizado para atender às modificações indicadas pela política de segurança nacional. Ainda, de acordo com Moltke, o velho, a Alemanha devia apoiar-se nas suas fortificações da fronteira ocidental e também na linha do Reno. Atacaria também a Rússia para acabar rapidamente com o confronto, isolando a França.
Já o novo chefe de Estado-maior, Schlieffen apresentava um plano diferente, tão radical como o primeiro, mas que sacrificaria a Prússia ocidental, com um ataque frontal à França, atravessando a Bélgica e uma forte oposição na fronteira francesa. Um cerco bem montado à França desbarataria totalmente o exército francês. Só então se atacaria a Rússia pois se contava que esta seria lenta nos seus movimentos.
De algum modo, parece que o plano de Schlieffen não foi seguido ponto por ponto pelo sobrinho de Moltke, o jovem. É possível que o seduzisse mais a estratégia do seu tio e também não queria abandonar esse local da Prússia oriental, tão cheio de recordações históricas. De modo algum queria sacrificar a Prússia oriental tal como o exigia o plano de Schlieffen. A marcha de um corpo de exército, com todos os meios exigidos, obrigava ao seu aquartelamento em grandes áreas, assim o exército não podia marchar reunido. Pertence a Moltke o lema da tática de "marchar separados, mas combater unidos" para os corpos de exército. A efetivação dessa norma seria facilitada pelo uso intensivo das estradas de ferro, que entretanto estavam construídas.
O plano de Helmuth von Moltke, "o velho" era também do conhecimento dos franceses e ingleses, mas os alemães tentaram um golpe muito arriscado, avançando num ataque a Metz.Grimberg considerou tal manobra "ousada mas imprudente" mas, o certo é que os exércitos alemães, através da Bélgica, entravam em território francês e repeliam vigorosamente as defesas de franceses e expedicionários. Nos fins de Agosto de 1914, Moltke, o novo, tinha quase por certa a vitória, o que era um triunfo para o tio e para o sobrinho que o admirava e tentou tudo para adaptar as táticas da sua estratégia. Toda a sua vida, Moltke, o novo, teve algum desconforto e um certo receio de aplicar as estratégias de seu tio, pois sempre o considerou um homem muito superior a si mesmo. Depois as novas armas que surgiam obrigavam a constantes mudanças de táticas, porém tentou tudo para empregar de melhor forma as teorias que aprendera. Mostrou ser implacável com o inimigo, causando grandes carnificinas mesmo aos civis. Mandava fuzilar civis suspeitos de ajudar o inimigo. Foi responsável pelo incêndio da grande biblioteca de Lovaina.
O General Helmuth Johann von Moltke, o "Novo"
(1847-1916)
( http://www.art-printsnedomanskystudio/generalhelmuthvonmoltketh.html
)
Mas eis que os russos entram em cena e atacam a Prússia oriental. A situação agrava-se muito para os alemães com as duas frentes, ao mesmo tempo, tão temidas já antes nos planos traçados. Moltke foi obrigado a alterar o plano original, quando já estava no caminho de Paris, e conseguia ganhos das suas tropas. Avança então sobre Antuérpia retirando tropas da frente.
Apesar da forte resistência encontrada, o importante porto caiu em Outubro. O próprio Wilson Churchill, com os fuzileiros navais britânicos, tentou pelo mar resistir à força germânica. O desgaste das tropas de Moltke era grande e, perdida a sua estratégia de chegar a território francês. Agora a superioridade inicial prussiana ficava ameaçada pelos reforços belgas e pela chegada do corpo expedicionário britânico que desembarcou na região. Os alemães, que contavam com 80 divisões, teriam que enfrentar o inimigo agora muito mais poderoso. Ressalve-se a coragem dos soldados belgas que se envolveram no conflito por que foram invadidos, sem haver sequer conhecimento disso. Foi uma estratégia para mais depressa atingirem a França e que causou grandes perdas de vidas entre civis indefesos e soldados que se juntaram aos aliados. Depois de desarmarem as tentativas de ataque dos franceses, em Mulhouse e na Lorena, as tropas alemãs ocuparam toda a região que vai das proximidades de Paris a Verdun. Caíram sob seu controle quase todas as minas de carvão, os recursos siderúrgicos e as grandes fábricas do Noroeste francês. Os mortos eram em número cada vez maior pois as tropas alemãs mostravam-se duríssimas com todos os que consideravam inimigos.
Há uma séria controvérsia acerca do que se seguiu. As ordens de Moltke foram nessa altura uma surpresa para todos. Envia para a frente um oficial com a autorização de recuarem, se vissem que isso era necessário. Um volte face alterou repentinamente o avanço das tropas alemãs. Pode ter sido um grande erro de comunicações entre as tropas do primeiro Exército e do segundo Exército pois, não sendo indispensável o seu recuo, ia permitir que os franceses detivessem o ataque sobre sua capital.
Entretanto, do lado dos franceses, o general Joffre (1852-1931) não quisera acreditar que a derrota estava próxima. Agora, estando em terreno conhecido, Joffre quer cercar os alemães. Começa um frente a frente nas trincheiras, perto de Paris, na cidade de Verdun e no Marne.
Na altura, estava como governador militar de Paris, o General Joseph Galliéni (1849-1916), que se apercebeu da falha dos alemães e imediatamente solicitou reforços de emergência para o General Joffre
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General Gallieni
( http://www.greatwardifferent.com/Great_War/Portraits/Gallieni.htm )
Joseph Simon Galliéni tinha um passado brilhante. Estudara em escolas famosas, primeiro em La Flèche, onde estivera Descartes, e mais tarde na academia militar de Saint-Cyr, passando ainda pelo duro tempo da guerra franco-prussiana. Estivera em diversas colónias francesas da Martinica, veio para governador do Sudão francês, onde habilmente conseguiu acabar com uma revolta da população local. Partiu para a Indochina francesa até ser enviado agora para Madagáscar onde, de novo, alcança mais um grande êxito pois controlou outra revolta, dessa vez da monarquia local. Aí a sua imagem cresceu por ser tido como um governante exemplar. 1914, Galliéni já estava reformado mas, perante o perigo que a França corria, foi chamado para coadjuvar na defesa de Paris nessa primeira batalha do Marne.
Por seu lado, Joffre já era conhecido, por ter também combatido na guerra de 1870-1871, e prestado antes excelentes serviços em expedições em diversas colónias. Agora chegava a hora de Joseph Jacques Cesaire Joffre mostrar toda a sua capacidade de estratégia e de grande general. Na altura, já passara dos 60 anos, e nas fotos pode ver-se o seu ar bem aprumado, um olhar jovial e curioso, que escondia uma certa rebeldia dominada pela disciplina militar.
General Joffre
Ao lado dos severos retratos dos militares da altura, que se sabiam fotografados para a posteridade, e por isso guardam um ar severo e mesmo imponente, Joffre gravou um rosto atento e jovial, com uns olhos azuis bem observadores, em contrastes com tantas outras fotos de rostos reservados e severos que, habitualmente, se podem ver na maior parte das posturas da época.
Nascera nos Pirenéus no ainda recuado ano de 1852. Esteve no liceu Carlos Magno de Paris, e concorreu à Escola politécnica de engenharia. Era muito jovem ainda quando tomou parte na guerra franco prussiana e foi promovido a capitão. O general Joffre teve muitas oportunidades de testar as teorias da guerra nos combates, e a sua promoção a capitão prova, que soube responder bem, ao batismo de sangue. Quando era ainda muito jovem, entre os seus 18 e 19 anos, a França passava pela agonia da desastrosa guerra de 1870. Depois, a maior parte da sua vida, passou-a nas colónias.
Esteve em Tonquim e no Sudão, em Madagáscar, tal como aconteceu com Galliéni, e em Tombuctu, assegurando as bases do domínio francês, o que lhe valeu mais uma promoção. Sendo já Coronel em 1897, partiu em missão para Madagáscar. Fala-se do seu passado de franco-mação o que lhe valido para ser preferido ao General Paul Marie Pau pois este tinha fortes convicções religiosas.
Há um certo tom de desdém, na forma como se referem, alguns biógrafos, às suas origens modestas. Mas isso não evitou que tivesse uma força moral que o coloca na linha quase extinta do perfil dos napoleónicos, do elevado moral e do dever. O moral das tropas era, para Napoleão, o essencial. Joffre era um general original em extremo, paradoxal, e orgulhoso, que combinava com um espírito muito subtil, manifesto durante toda a guerra e no seu final. Nesta ofensiva, que se chamou a primeira batalha do Marne e duraria longos quatro dias de Setembro de 1914, o desespero tornou os franceses mais valentes pois, os inimigos já podiam avistar ao longe a sua torre Eiffel.
A estratégia usada, por não ter dado atenção à entrada do inimigo pelas Ardenas foi um grave risco. Mas logo foi chamado à razão. Há uma tese que atribui o maior crédito para a vitória ao general Galliéni, porém a sua morte prematura não deixa que tal se possa confirmar. O certo é que a calma que Joffre conseguia manter era fundamental num lance tão arriscado, quando tudo parecia já perdido. Nesta ofensiva, até os táxis de Paris, foram requisitados. Grimberg sustenta que foram, esses "motoristas de Paris", que ganharam a primeira batalha do Marne. Os franceses não conseguiram esquecer o desastre dos seus exércitos em Verdun, a batalha mais longa e mais mortal de toda a história, e do desastre da "ofensiva de Somme".
Também é muito discutida a atitude de poder irredutível e intolerante de Joffre diante dos civis. Por outro lado, não teve a firmeza indispensável em algumas das suas responsabilidades. Depois da batalha, logo em seguida, pediu a sua demissão e manteve-se, até ao fim da guerra, na retaguarda, sempre com a boa áurea que a batalha do Marne lhe deu, mesmo que tivesse um historial de derrotas durante 1915
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Madame Joffre
( Muito ridicularizada pelos ingleses, pelas suas pretensões a "Generalíssima" )
A ação deste general ficou sempre marcada por polémicas e é muito contraditório o que dele se diz. Na sua retirada, veio substituí-lo o General Nivelle. Mas já em Verdun, só a fama que trazia do Marne evitaram a demissão, como sucedeu a outros, com menos sorte e talvez menos culpa. Todavia, as opiniões divergem e "o general silencioso" como o chamaram foi responsável por um empenho incessante no treino e preparação militar dos franceses e dele disse um dos nomes conhecidos da França "O General Joffre não foi apenas um grande general, mas também um grande homem."
Na altura, vivia-se em França uma tentativa de algum otimismo, o ministro Aristides Briand, (1872-1932) que já tivera onze cargos governamentais, vai tentar descobrir o que se passava com os comandos alemães na busca de uma negociação de paz. Tratava-se de um hábil político bretão, era um grande orador e com bom espírito prático, Conseguira, noutras vezes, resolver problemas com greves e sindicatos. Este inteligente e antigo dirigente do partido socialista, fora colega de liceu do escritor Júlio Verne, que dele traçou um retrato lisonjeiro, e o descreve, como um dos seus personagens, inteligente e audacioso. Agora, a situação cada vez se complica mais. Aparecem as greves e o desapontamento crescente dos militares numa guerra de contornos tão incertos. Os sindicatos faziam ouvir a sua voz e, o ministro Briand, consegue conter algumas das suas ações. Infelizmente, a boa vontade dos alemães desvanece-se e a ação diplomática de Briand não consegue quaisquer tréguas.
O desânimo aumentava em França. Entretanto, também a ofensiva de Nivelle (1856-1924) com quem Briand contava, usou a sua tática desastradamente hostil e não teve êxito algum. As irrealistas ideias de Nivelle tiveram um efeito desastroso. O seu exército começou a desmoronar. Teve de ser substituído por Henri-Philippe Pétain em Maio 1917 e passou o resto de sua carreira na África do Norte. Seguiram-se motins das tropas desesperadas e, face às horríveis trincheiras e às barragens onde tinha de rastejar, para as quais os soldados iriam em unidades inteiras, tomaram o caminho de posições mais seguras. Havia quem acusasse as tropas de espalharem o pânico em todo o país e quem acusasse a imprensa radical e os sindicatos de corromperem o moral dos "poilux". [62]
Vida nas trincheiras
( http://www.brasilescola.com/historiag/a-vida-nas-trincheiras.htm )
Surpreendentemente, os alemães nunca se aperceberam da perda do "élan" que animara os franceses. Possivelmente, os altos comandos estavam demasiado ocupados com a luta contra os britânicos e ignoraram o que acontecia no Aisne. [63]
Nivelle foi substituído pelo general Phillipp Pétain de origem católica, nascido em 1856, natural de Pas de Calais no Cauchy-a-la-Tour. E por ironia da História morreria na prisão em 1951, em Fort-de Pierre de Levée, após um julgamento que só a História pode sentenciar.
O Marechal Pétain, como passou a ser conhecido mais tarde, era um grande amigo de escritos históricos que o seu tio abade, combatente das tropas napoleónicas, escrevia e lia. Ajudava à missa e era muito religioso, mas nem por isso a guerra franco prussiana deixou de o interessar e querer ser militar. Entrou para a famosa escola militar de Saint Cyr, que ainda hoje mantem a tradição e onde estivera Napoleão, figura que ele admirava. A sua ação, na primeira grande guerra foi importantíssima e controversa. Os seus métodos como professor eram opostos aos do general Foch e, por várias vezes, se insurgiu contra táticas de guerra como a de que a defesa é sempre melhor. A grande guerra veio dar-lhe razão.
Quando Pétain entrou em cena, parecia que o caos se ia instalar entre as tropas, com insurreições e rebeldia. Este usou de meios extremos e castigou os amotinados, com uma frieza assustadora, mas exemplar. Foram fuzilados 50 revoltados, outros 350 condenados à morte tiveram a pena comutada em prisão, pelo presidente da república, e muitos outros foram presos. Após isso, Pétain mudou logo a sua dura atitude e passou então a uma ação apaziguadora dos ânimos franceses, com maior bom senso. Aumentou a capacidade de combate, autorizou mais visitas a casa, melhorou as condições de vida e a alimentação dos soldados na frente e restringindo-se a operações defensivas. Antes já liderara a ofensiva "Artois", na Primavera de 1915 e a ofensiva de Champanhe em Outubro.
A sua reputação era das melhores. Pétain terminou a guerra considerado "sem dúvida, o estratega mais adequado para a guerra na defensiva de qualquer exército (…) e um dos maiores heróis militares da França", passou a ser marechal da França, em Metz pelo próprio presidente Raymond Poincaré em 1918. Pertenceu também à Academia das Ciências. A sua fama de leviandades amorosas arrastou-se por toda a vida porém, só casou bem tarde, já passados dos 60 anos, com uma senhora dos seus múltiplos e anteriores casos amorosos, Eugène Hardon. Após o papel que desempenhou na Segunda Guerra, foi como que um "bode expiatório" de todos os que colaboraram, a bem ou a mal com os nazis. Os franceses evitam até falar do seu nome e retiraram mesmo todas referências que havia, até de monumentos e ruas com o seu nome.
General Pétain
( http://www.greatwardifferent.com/Great_War/Portraits/Petain.htm )
Isso não foi bastante. Será sempre uma figura incontornável para o desenrolar, tanto da primeira, como da segunda Guerra Mundial. Verdun era um ponto de passagem já muito antigo. As fortificações da vetusta cidade de Verdun datavam já do período da Gália romana e era uma cidade histórica com um longo passado de acontecimentos bélicos.
Pétain e Joffre
( http://pierreswesternfront.punt.nl/?id=414025&r=1&tbl_archief= )
Pela segunda vez, neste enorme conflito, Verdun era cenário de guerra contra os alemães. Em 1781, estes saíram vencedores e agora, mais uma vez, por lá entravam os exércitos germânicos. Devido à sua situação estratégica, os franceses já esperavam que se os alemães entrassem pela Renânia, Verdun seria um baluarte fulcral a defender, que mais não fosse, por uma questão de manter elevado o ânimo dos franceses e desmoralizar as tropas inimigas. A vitória dos alemães seria um trágico prenúncio de derrota total. Criaram por isso fortes defesas e colocaram forte dispositivo de artilharia. Aí, o general Pétain manifestou toda a força da sua estratégia. Foi nessa longa e horrenda batalha que ficou célebre a sentença de Pétain "Não passarão!", [64] a demonstrar a determinação e ânimo dos soldados.
A partir do ano de 1916, especialmente durante a longa batalha de Verdun, o gás venenoso entrou em teatro de guerra, em definitivo, como uma arma terrível. Quase desde o início, a paisagem da guerra das trincheiras foi toldada pela presença sistemática dos vapores do gás de mostarda que, utilizado por ambos os lados, passou a ser o manto sombrio e enfumaçado que cobria os soldados em seus últimos momentos de vida. Tamanha foi sua presença nas batalhas que no ano final da guerra, em 1918, um quarto dos obuses lançados pela artilharia eram de gás venenoso, o gás mostarda!
O gás de "mostarda"
( http://www.deadlybirds.com.br/deadlybirds_blg/2009/03/armas-quimicas-na-grande-guerra/ )
Houve uma horrenda estreia de um novo gás, muito mais tenebroso, nos seus efeitos, do que o cloro – tratava-se do que depois se iria chamar o terrível "gás mostarda" (dicloroetilsulfeto). Com a sua cor amarelada, mostrou-se capaz de devastar as linhas adversárias, mesmo no meio das tropas equipadas com máscaras. Em contato direto com qualquer parte da pele da vítima, os resultados são devastadores. Levanta bolhas amareladas, atacando em seguida os olhos e as vias respiratórias. Além disso, tinha a capacidade de permanecer no ar, com efeitos, durante um tempo mais longo do que os outros, como o gás lacrimogéneo e o de cloro.
Porém, o risco da mudança da direção do vento nunca podia proteger a parte ofensiva e os soldados das trincheiras, que experimentaram esse veneno, referem-se a esse grave problema dos próprios atacantes serem atacados.
Nuvens de Gás
Posições militares em Verdun
( http://pierreswesternfront.punt.nl/?id=414025&r=1&tbl_archief=& )
Refeitos do impacto das primeiras derrotas, os alemães passam agora a ficar sob comando do General Paul Hindenburg, (1847-1934) que,
curiosamente, era ainda descendente de Martinho Lutero e de sua mulher Catarina. Nasceu na Prússia e, após uma longa carreira no exército prussiano, foi para a reserva em 1911. Logo no início da Guerra, ao ser chamado, mostrou grande brio e despertou a admiração quando, já com 66 anos, saiu vitorioso em Tannemberg, em 1914. Depois de ganhar grande prestígio com as suas estratégias, a partir de 1916, passou a ser Chefe maior do Estado e, com o general Erich Ludendorff, tornou-se cada vez mais estimado pelos alemães, até a sua figura quase apagar a do Kaiser, pois segundo os rumores de então, a capacidade de governar deste era pouco evidente.
Hindenburg fora já um combatente da guerra franco prussiana e estava reformado, quando o chamaram para a mais alta chefia militar alemã. A ele se deve não só a linha que recebeu o seu nome, Hindenburg, que os aliados só conseguiram ultrapassar em 1918, como também a vitória sobre os russos.
General Paul Hindenburg
As potências europeias tinham uma ideia errada da revolução que sucedia na Rússia. Partiam da comparação com a Revolução Francesa e dos seus lemas de liberdade, igualdade e fraternidade. Também os russos sentiriam aquele entusiasmo francês de liberdade para si e para os outros. Assim, os Impérios centrais tinham muito a temer. A ordem que reinava na Rússia tinha mão de ferro e, aqueles que desejavam partir para a guerra, prontos pelo seu czar, eram a massa do povo e dos que não estavam exilados na Sibéria, ou fora do país, sem falar revoltosos e partidos secretos.
A ideia que os russos tinham desta guerra era semelhante à dos outros povos. Uma guerra rápida, que traria uma paz salutar para todos, seguir-se-iam as reformas, que já tardavam, e o governo constitucional teria de impor-se. Ao contrário de tudo isto, a participação da Rússia na grande guerra trouxe os piores resultados para a situação interna tão revoltada e economicamente bem fraca.
Tropas Russas
Quando o Império Austro-húngaro declarou guerra à Servia, numa reação a que se pode dizer ter sido obrigado, os russos, com mais coragem do que meios, avançaram. Após alguns sucessos iniciais contra a Áustria-Hungria em 1914, as insuficiências russas, particularmente a falta de equipamentos e as armas que usavam estarem já há muito ultrapassadas, com a cavalaria, que seria horrivelmente despedaçada, em todas as frentes, tudo isso tornava a sua vitória sem possibilidades de avanços.
Alegoria à posição da Áustria
Ora, em 1915, a Alemanha teve de passar a outros planos e, então, a situação das tropas russas agravou-se radicalmente. As forças alemãs, muito melhor armadas com metralhadoras e artilharia pesada, revelaram-se terrivelmente eficazes contra as forças mal equipadas da Rússia. No final de 1916, a Rússia havia perdido entre 1.6 e 1.8 milhões de soldados em combates, a que se juntavam mais de dois milhões de soldados feitos prisioneiros e um milhão de desaparecidos
A devastação da Grande Guerra
( http://www.greatwardifferent.com/Great_War/02.htm )
O moral dos militares russos estava completamente devastado. Começam a surgir tumultos e revoltas em 1916 e as informações são de que se rendiam ao inimigo. Com uma tropa faminta, com os pés em sangue, por falta de sapatos, de equipamento, até de munições e armas, era a desolação total.
Milhares e milhares de Tropas russas capturadas após a batalha de Tannemberg.
(In . 'Illustrated War News'. )
Logo no primeiro ano da guerra, o segundo Exército Russo sob comando do General Samsonov, foi cercado e batido em Tannemberg. Segundo consta, o infeliz general Alexandre Samsonov, perdido nas florestas que rodeavam os lagos, suicidou-se com um tiro na cabeça por sentir-se incapaz de relatar a dimensão do desastre ao czar Nicolau II.
Uma das versões é que seu corpo foi encontrado pelos alemães, que lhe fizeram um funeral militar. Uma outra, é o seu corpo nunca foi encontrado. O primeiro Exército Russo, chefiado pelo General Rennenkampf, foi destroçado na Batalha dos Lagos Mansurianos em Setembro do mesmo ano.
General Samsonov
A Sérvia, que havia resistido às primeiras ofensivas dos austríacos e dos russos, no segundo semestre de 1914, sofria uma derrota face aos alemães e búlgaros no ano seguinte. O desastre da Sérvia provocou a saída da população pelas montanhas da Albânia, sob terríveis condições. Os poucos sérvios que sobreviveram à fome, ao frio e ao gelo, foram recolhidos pela esquadra inglesa e transportados para a Grécia.
Tropas Sérvias
A oportunidade da Rússia vencer a guerra no Oriente estava definitivamente perdida. No ano seguinte, em 1915, os exércitos austro-alemães entram na Polónia ocupam a capital Varsóvia em Agosto. Entretanto, as contínuas derrotas do Exército russo terminam por levar o Czar Nicolau II a assumir o comando geral do Exército. Mas a crise era muito mais ampla do que a simples troca de comandos, ineficientes, ou incompetentes.
A Rússia tinha uma estrutura político-administrativa e industrial completamente afastada dos acontecimentos, que se deram na Inglaterra, com a Revolução industrial, as novas fábricas e toda a alteração fabril que se seguiu, quase ao mesmo tempo, em outros países. Em vez disso, mesmo que o Czar não cuidava de modernizar o país que, cada vez mais, ameaçava um desastre completo. O descontentamento geral não era entendido como um risco muito grande, que se iria juntar à entrada numa guerra com intuito expansionistas iniciais, mas agora não se podia prever que resultados traria.
O perigo não estava apenas além das fronteiras, mas no interior do país. Mesmo que regressassem vitoriosos, as ideias que trariam e a situação do seu próprio país eram sérios problemas que o czar devia estudar com os seus melhores conselheiros, sem se fechar no poder autocrático.
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Paisagem de Moscovo
Uma das falsas esperanças dos chefes militares russos, que se revelou muito ingénua e antiquada, foi a de contar que, com o seu quase inesgotável potencial humano, a vitória tornava-se possivelmente ganha. Foi a última guerra em que a cavalaria teve um papel. Mas, também isso, acabaria em dolorosa tragédia, Seria a morte dos homens e a carnificina dos inocentes e belos animais. Embora não ignorassem a sua inferioridades técnica para enfrentar as forças alemãs, contavam superar a qualidade pela quantidade, lançando sobre a Prússia Oriental verdadeiras "marés humanas" que, se não mesmo que não derrotassem ao alemães, dariam, ao menos, mais tempo aos aliados para os atacar. Tal noção revelou-se logo errada, quando a cavalaria e a infantaria mostraram toda a sua fraqueza face às novas e terríficas armas e técnicas usadas pela primeira vez nesta guerra.
Os russos partiam com um entusiasmo sem sentido razoável. Em breve ficariam desmoralizados e a desilusão total e tremenda manifestava-se no desânimo das tropas. Iniciaram a luta ainda a imaginarem que se realizaria o velho sonho do imperialismo russo com a tomada de Constantinopla, depois de vencerem nos Balcãs. A ideia de usar a cavalaria e a infantaria era ainda muito bem aceite. Mas, em 1898, um financeiro polaco Ivan Bloch [65] já chamara a atenção para os resultados que as novas armas teriam na infantaria, na necessidade que iria existir de abrir trincheiras e para as terríveis chacinas que iriam acontecer. Bloch avisadamente, alertara para os terríveis efeitos que as novas armas, cada vez mais poderosas fariam sobre a infantaria, obrigando esta a refugiar-se em trincheiras, sem poderem resistir, ou então sujeita a terríveis massacres.
Tal advertência de nada serviu, nem para estadistas, nem para militares. Pouco antes do início da guerra, a cavalaria era um dos meios que mais se exaltava. Com um incorreto otimismo, a grande maioria dos especialistas calculava que o conflito duraria uns meses no máximo, e troçava-se dos que prognosticavam que iria durar mais de um ano. Quando a guerra teve seu início, quase todos os generais guiavam-se por estratégias e teorias que nada teriam a ver com a tragédia que se seguiu.
Campo de Batalha pós derrota Russa
( http://novaonline.nvcc.edu/eli/evans/HIS242/Remarks/WW1CTE.htmlT )
Num esforço quase fantástico, os russos tentaram uma grande ofensiva na região da Galícia. a chamada Ofensiva Brusilov, nome do valoroso militar que chefiou as tropas e desenhou a estratégia, e em que entraram com uma confiança enorme e moral elevado.
Tropas Russas
A operação de Brusilov era fundamentalmente forçar a Alemanha a diminuir a opressão da Frente Ocidental e transferir forças consideráveis para a Frente Oriental. O certo é que conseguiu destroçar uma parte do exército austro-húngaro, que teve perdas enormes, aproximadamente 1,5 milhão de homens, incluindo 400.000 prisioneiros dos russos. Depois disso, os exércitos austro-húngaros nunca mais se habilitaram a quaisquer ofensivos sozinhos. Só atacavam com a ajuda dos exércitos alemães. As baixas sofridas pelos russos, apesar de vencedores, também foram consideráveis, e chegaram a cerca de um milhão de mortos e feridos.
Assim, embora não seja esta uma das mais faladas batalhas, a Ofensiva Brusilov pode ser vista como uma das mais mortais da história mundial, nem sequer apenas desta grande guerra. Além disso, o sucesso inicial da ofensiva convencia agora a Romênia, que se declarara neutral em 1914, a entrar na guerra ao lado da Entente, mesmo com todas as consequências desastrosas que esta decisão acarretou .
A promessa de obter os territórios da Transilvânia, onde grande parte da população era romena, resultou na entrada na guerra ao lado da Entente, mas os resultados foram ruinosos pois as forças alemães ocuparam Bucareste, em Dezembro de 1916. A Ofensiva Brusilov foi o ponto alto do esforço russo durante a Primeira Guerra Mundial, e uma rara manifestação de boa chefia e planeamento por parte do exército imperial russo. A operação também ficou marcada por uma considerável apuramento da qualidade das táticas russas. Alexei Brusilov usou pequenas unidades especializadas de soldados para atacar pontos fracos das linhas austro-húngaras e, assim, abrir pontos fracos por onde o resto do exército russo pudesse avançar.
Estas "táticas de choque" eram completamente diferentes dos ataques de "ondas de homens" que prevaleciam até aquele momento no exército russo e em muitos outros ao redor do mundo, incluindo os da Áustria-Hungria e da Alemanha. Apesar de se mostrar bem sucedida, a tática não foi utilizada em todo seu potencial pelos russos. Mais tarde, foram os exércitos alemães que imitaram esta tática.
A partir daí, o exército russo começou a se deteriorar, e causou o esfacelamento da política e da economia, levando ao desgaste fatal do poder dos Romanov. Também deve-se levar em consideração que, apesar de conseguirem que os alemães e austro-húngaros se vissem forçados a recuar, pelo menos 58.016 soldados russos desertaram. Esta foi mais uma das premonições de que as coisas iriam piorar para a Rússia e melhorar, por algum tempo, para os Impérios Centrais.
Porém, após derrotar alguns exércitos austríacos, a ofensiva russa não pode continuar porque lhe faltava apoio logístico, nem possuía reservas para aproveitar as vantagens iniciais. Depois das campanhas de Brusilov, inicia-se a um progressivo desânimo e desmoralização das tropas russas.
Tropas russas de cossacos recebendo alimentos Revista Serões
Derrocada Russa
Em 1917, os austro-alemães empurram vigorosamente o Exército russo para suas fronteiras naturais. Os Estados bálticos caem sob seu controle. Agora, até São Petersburgo ficava ao alcance das tropas alemãs. Em Março de 1917, depois de grandes manifestações de massa acompanhadas de ondas de greve, o regime de Nicolau II é deposto. É a Revolução de Outubro que se anuncia.
Foi ainda Alexander Kerenski (1881-1970), um dos revolucionários moderados, à frente do novo Governo Provisório, que tentou algumas infrutíferas investidas contra os alemães, mas foi por fim deposto pelo golpe de estado bolchevique. A Rússia retirava-se da guerra pelo Tratado de Brest Litovsk, e Lenine é obrigado a fazer enormes concessões territoriais em Março de 1918). [66]
Quando os apaniguados de Lenine ocupam o poder, acabaram as relações diplomáticas com os aliados do czar. Rompendo com o sigilo dos acordos anteriores com a Entente, ficou descoberto que a política russa tinha a intenção de partilha da Turquia, entre outros territórios. Assim se desmascaravam os interesses ocultos de uma guerra que parecia defender muito mais o expansionismo do que a libertação dos povos.
Retirada dos Russos da Guerra
Se a primeira batalha do Marne se deu entre 6 e 12 de Setembro de 1914, com a ofensiva das forças do exército francês e pelas forças expedicionárias britânicas, contra os avanços sucessivos das tropas alemãs, foi o general francês Joseph Joffre, que conseguiu travar o avanço em massa do exército alemão, a poucos quilómetros já da capital e foi de grande efeito para o moral dos franceses. Estes acontecimentos tiveram um duplo significado: não só França se salvou de uma derrota, como obrigou a alterar as regras da guerra. Os planos foram todos revistos e os Altos Comandos deram-se conta da impossibilidade de continuar com a guerra de movimentos devido às excessivas baixas sofridas.
Com o fracasso da ofensiva alemã, Moltke teve de retirar-se face ao avanço da infantaria motorizada e cedeu seu lugar ao General Erich von Falkenhayn que fora ministro de guerra. Os alemães no entanto, não puderam contar muito com as suas tropas que combateram no oriente e que regressavam. Mesmo com sua deslocação maciça para a frente ocidental, teriam agora também que se contar com as recém-chegadas tropas americanas com uma capacidade de soldados em forma e em bom número, bem preparadas para o combate.
General Falkenhayn
A Itália, durante a grande guerra, teve um comportamento de múltiplos ajustes, ao sabor dos interesses e dos acontecimentos. Inicialmente comprometida com alianças com Potências Centrais, procura adotar uma posição neutra. No entanto, havia já um acordo entre a Itália e os Balcãs. Ora os italianos tinham assinado também um acordo secreto com a Inglaterra dados os seus interesses coloniais. Assim, em Maio de 1915, os italianos resolvem declarar guerra aos seus antigos aliados, os austríacos.
Luigi Cadorna (1850-1928), Chefe do Estado-Maior da Itália desde o início da guerra em Agosto de 1914, foi quem comandou o exército na fronteira austro-italiana. Seguiu a estratégia de assegurar uma linha defensiva no Trentino, enquanto começava uma constante série de ataques convencionais da infantaria ao longo do rio Isonzo - porém com grande desgaste das tropas italianas e sem resultados proveitosos. As estratégias do general Cadorna não tinham em conta a evolução das novas táticas de guerra, descurando o necessário apoio da artilharia, que já se usavam na frente das batalhas. Depois da derrota, em vez de reconhecer o seu erro, culpou as suas tropas de cobardia e passividade e foi feroz na aplicação da pena de morte militar. Autorizou a execução de centenas de militares e demitiu, por alegada incompetência, centenas de oficiais italianos.
A ofensiva italiana era de combate aos austríacos na região do rio Isonzo. De Junho de 1915 a Setembro de 1916, travaram ao todo onze batalhas e avançaram somente uns poucos quilómetros, ao mesmo tempo que sofriam perdas terríveis. Em Outubro de 1917, os Impérios Centrais, numa operação conjugada, derrotam os italianos na Batalha de Caporetto, que demorou duríssimos dias, no território que hoje é a Eslovênia, e que foi assinalado como o maior desastre militar da Itália.
Após tal batalha, o termo "Caporetto" ganhou em italiano, um sentido desastre. É o escritor americano, Ernest Hemingway, que, no seu romance "A Farewell to Arms" descreveu essa crudelíssima batalha, que causou perdas enormes para os italianos. No ano seguinte, a Itália retoma a ofensiva, recuperando parte do território perdido.
Ernest Hemingway
General L. Cardena
A humilhante derrota da Itália no Caporetto, nos fins do mês de Outubro de 1917, levou Luigi Cardena a ficar num plano muito mais secundário, especialmente porque Vittorio Orlando foi nomeado primeiro-ministro e o afastou. Sem nunca assumir as culpas, em 1919, um inquérito comprovou o que Cardena não queria admitir. Por causa disso, este chefe italiano, que ia estar presente no armistício, renunciou ao cargo e regressou para a Itália.
Derrota dos Italianos - "Il Caporetto"
( http://www.worldwar1.com/itafront/caporetto.htm )
As tropas italianas não tiveram um grande alcance territorial nas suas campanhas. As suas batalhas foram mais contra os austríacos, do que contra os alemães. Estes últimos facilmente os derrotaram mercê da sua estratégia mais avançada.
Foto de Zepelim
( http://www.airshipsonline.com/airships/LZ127_Graf_Zeppelin/index.html )
A segunda batalha do Marne não tem nada a ver com os combates anteriores. A ofensiva alemã apostava tudo nesta operação mas, após os êxitos iniciais, os alemães não conseguiam quebrar as defesas das linhas inimigas. Foi então que o comandante Supremo dos aliados, Ferdinand Foch, lançou um contra-ataque decisivo em 18 de Julho 1918. As forças francesas, incluindo a infantaria americana, sob comando francês, e mais oito enormes divisões do exército americano, e uma força de tanques, atacaram os alemães desprevenidos. Já em Maio, Foch iniciara uma vigilância apertada às fragilidades da ofensiva alemã e preparava a intervenção cuidadosamente.
Ao ser nomeado em Outubro, responsável pela coordenação das atividades dos exércitos do norte francês, e em ligação com as forças britânicas, o general ganhou mais visibilidade. Esta nomeação tornava-se-lhe fundamental. Joffre também quis nomear Foch como seu sucessor "em caso de acidente", para se certificar de que o trabalho não seria dado a Galliéni, com o qual tinha divergências e grandes rivalidades, mas o governo francês não concordaria com isso.
Quando os alemães atacaram em 13 de Outubro, por pouco não conseguiu romper as linhas inglesas e francesas. Tentaram novamente no final do mês durante a primeira batalha de Ipres, desta vez sofrendo terríveis baixas. Outra vez Foch conseguiu coordenar uma defesa e vencer contra todas as probabilidades. Mas com as baixas sofridas não agradou muito o seu desempenho nessa altura. Já em 1915, com as suas responsabilidades limitadas, de novo conduziu a ofensiva Artois de pouco resultado e, em 1916, a parte francesa da Batalha do Somme. Foi fortemente criticado pela sua estratégia, por causa das muitas mortes sofridas pelos exércitos aliados, durante essas primeiras grandes batalhas e, em Dezembro de 1916 foi removido do comando, pelo general Joffre, e enviados para comando em Itália. Passados poucos dias, Joffre era também demitido por descontentamento das chefias militares. O otimismo com que a França enfrentava agora a guerra era aparente. O mal-estar dos gabinetes chegava até aos campos da luta. Nivelle foi o novo general que pareceu dar mais ânimo a todos.
Duraram pouco as esperanças em Nivelle. A sua ofensiva começou a ter cada vez mais críticas. A Rússia, a leste, estava em plena revolução e não se podia contar com o seu apoio.
Os americanos tinham acabado de entrar na guerra e ignorava-se o que poderia ser a sua ação.
Soldados Americanos
O facto da ofensiva planeada não ser secreta piorava muito a situação. Os soldados, que os alemães conseguiram capturar, já em Fevereiro, tinham informado que se preparava uma grande ofensiva contra eles. Julga-se que os aliados tinham bom conhecimento acerca da extensão e a capacidade do inimigo. A partir de Julho de 1918, os aliados conseguiram levar os alemães a recuarem. Seguir-se-iam outras tentativas de avanço pelo exército alemão, mas sem êxito. O exército, que derrotou os alemães na batalha do Marne, era composto por soldados americanos, franceses, britânicos e italianos. Teria de haver movimentos concertados e com objetivos combinados.
O maior problema para o general Foch era precisamente ter de lidar com quatro comandantes de nacionalidades diferentes, cada um com as suas ideias próprias e sem nenhuma autoridade real para lhes dar ordens. Todavia, conseguiram lutar com as forças combinadas e superaram os problemas de língua, cultura, doutrina e estilos de guerra. É óbvio que o novo apoio dos soldados dos Estados Unidos foi determinante para deter os avanços dos alemães.
Tropas Americanas
( http://www.gutenberg.org/files/33119/33119-h/33119-h.htm)
Floyd Gibbons, ao referir-se aos soldados americanos enviados para a frente dizia: "Nunca vi homens atacar e ir em direção a morte, com tanta força de espírito." [67] Os americanos, acabados de entrar na guerra foram cruciais na vitória sobre os alemães pois eles estavam descansados devido a entrada tardia do seu país no conflito ao invés do exausto exército inimigo, que agora estava em grande desvantagem numérica. As tropas italianas tiveram pesadas baixas mas os britânicos foram em seu auxílio atacando o vale do Ardre na batalha na planície de Tardenois.
Os alemães ordenaram uma retirada em 20 de Julho e tiveram de recuar ainda mais até suas posições originais do começo daquele ano, antes de a ofensiva começar. Foi então que reforçaram seus flancos e 22 de Julho. Ludendorff ordenou que uma linha fosse feita e mantida de Ourcq até Marfaux. Esta linha era a sua defesa e a sua estratégia, onde manteve firme as tropas. Nessa altura, o povo e os governantes puseram toda a esperança neste general, pela sua grande inteligência e determinação enquanto Paul Hindenburg, pela sua autoridade natural se impunha facilmente pelo sentido da disciplina.
Preocupações de Guerra
( http://ibhistoryreview.wikispaces.com/Paul+von+Hindenburg )
Ludendorff teve uma carreira meteórica, mas pelas suas memórias, que depois escreveu, pode-se saber que não se considerava o responsável pela guerra e também não teve a sorte de ser ele a lançar a ofensiva a leste. Todos o tinham como um excelente estratega. Porém, os grandes dotes militares de Ludendorff não podiam ter bons resultados, nas condições em que o exército e o povo já se encontravam, com tudo a desmoronar-se no interior do império, a morrer à míngua. A ideia de partirem pelo mar, para acudir às carências do povo alemão, era de Ludendorff. Só que era impossível quebrar o cerrado bloqueio que os aliados criaram aos portos alemães.
Por seu lado, o futuro presidente da Alemanha, Hindenburg, escreveu em "Mein Leben" [A minha vida], em 1920, a explicar que :"As potências do Entendimento" viam que as suas forças militares eram incapazes de continuar a impor a sua vontade tirânica e a sua estratégia ficava muda, perante um adversário de ferro. Se, da luta frente a frente, nada resulta, um ataque pelas costas, talvez triunfe, um ataque pela retaguarda. Que as crianças e as mulheres morram de fome, isto aniquila o moral do marido e do pai que se encontram na frente, senão imediatamente, pelo menos pelo decorrer do tempo. Se o inimigo nos bombardeia com obuses americanos, porque não havemos de afundar os seus transportes? Temos meios para o fazer. O direito? Onde e quando pensa o inimigo no direito? Esta é a pergunta que, na frente, os nossos soldados fazem(...) ". [68]
Presidente Hindenburg
( http://www.emersonkent.com/picture_archive/paul_von_hindenburg.htm )
General Mangin
( http://www.greatwardifferent.com/Great_War/French_Magazines/Le_Miroir_01.htmm )
No início do conflito, os ingleses tinham visto, sem grande valor, o submarino, embora possuíssem um número superior ao dos alemães. Estes reagiram só tardiamente, pois tinham a sua limitada força submarina colocada na Escócia e no Báltico para controlar a movimentação russa. Se bem que os ingleses fossem pioneiros na guerra submarina, os alemães conseguiram tornar-se um perigo crescente até ao bloqueio do mar do Norte. Se os aliados usavam o subterfúgio de navios mercantes com bandeira neutra para levarem armamento defensivo, logo que era abordado por um navio alemão, imediatamente este era logo afundado. Também havia o recurso ao sistema de comboios que assim diminuía as perdas dos aliados. Face a tudo isto, o que escreve Hindenburg tem a sua razão de ser. O seu país sofria um bloqueio de abastecimento que fazia cada vez mais ficarem na maior carência de tudo, cercados e sem poder receber ajuda do exterior.
Os comandantes aliados continuaram a enviar suas tropas contra os ninhos de metralhadoras alemãs ganhando algumas centenas de metros a um custo altíssimo. No dia 27 de Julho, alemães recuaram mas ainda lutavam em várias frentes. Em 1 de agosto, as divisões francesas e britânicas do Décimo Exército do general Mangin, que era um forte apoio aos aliados e com um passado bélico fortíssimo, avançaram mais de oito quilômetros. Entretanto, o general Mangin consegue capturar 17 mil prisoneiros. O contra-ataque aliado cedeu em 6 de Agosto, quando forças alemãs bem entrincheiradas resistiram a tudo. Os alemães pagaram caro o seu êxito, pois Mangin não deu tréguas a Ludendorff. Este francês mostrou sempre ser tão violento e ambicioso que nem sempre podia ser bem visto.
General Mangin
( http://www.greatwardifferent.com/Great_War/French_Magazines/Le_Miroir_01.htm )
Depois da guerra, Clémenceau, prudentemente, afastou-o de cena. A sua visão lúcida levava-o a dizer "A guerra é um assunto sério demais para ser deixado na mão de militares". A sua pretensão de criar uma república francesa independente nas margens do Reno era muito perigosa.
Clémenceau
( http://herdeirodeaecio.blogspot.pt/2010/05/um-grande-europeu.htmlBlerancourt - Musée national de la coopération franco-américaine )
Foch teve mais sorte do que Nivelle, no desfecho dos acontecimentos. Mais tarde, recebeu o título de Comandante Supremo dos exércitos aliados com o título de Generalíssimo. No dia do armistício, foi eleito para a Academia das ciências. Dez dias depois, ele foi eleito por unanimidade para a Academia Francesa. Em 30 de Novembro de 1918, recebeu também a mais alta condecoração da Ordem Portuguesa da Torre e Espada.
A causa de todas essas nomeações, deve-se a esta segunda Batalha do Marne, que foi um grande sucesso. Os aliados fizeram 29 367 prisioneiros, capturaram 793 armas e 3,000 metralhadoras mas o grosso do exército do alemão sobreviveu. A Alemanha sofreu, apenas neste confronto, um total de 168 mil baixas desde 15 de Julho. A frente ocidental foi reduzida para 45 km, e o êxito moral no Marne assegurou o fim das ofensivas e vitórias alemãs dando aos Aliados uma vantagem para iniciar as operações finais que traria um fim a essa guerra.
O local "Le Chemin des Dames", durante a guerra, foi palco de várias contendas. A primeira foi ganha pelos alemães, bem como a segunda; pois o local se transformou em "terra de ninguém" com metralhadoras e bombardeios esporádicos, do ano de 1915 a 1917, e em Janeiro de 1915, já os alemães tinham derrotado o único local ainda na posse dos franceses, Tratava-se da "Caverna do Dragão", a terceira e nestas três, os franceses, não conseguiram levar a melhor. Já no ano de 1918, apesar do exército francês ter sido surpreendido pela ofensiva alemã no "Chemin des Dames", a luta é renhida, tentando repelir os alemães Os franceses, comandados por Nivelle, têm algumas posições estratégicas conquistadas e consideráveis forças alemãs destruídas, mas estão longe de alcançar os objetivos da ofensiva.
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General Nivelle
A guarda imperial prussiana ataca denodadamente os inimigos, mas a batalha não se decidia para nenhum dos lados. Até parece que se repetia o inferno de Verdun. Sucedem-se os motins nas fileiras, 68 divisões, 136 regimentos e 23 batalhões, enquanto outros desertam. Sem água e com um sol tórrido de verão, por entre cadáveres já apodrecidos, as tropas do Senegal e do Boto defendiam-se com granadas de mão. Unidades americanas e escocesas tentam deter os alemães, enquanto a aviação bombardeia os inimigos. O Serviço de Saúde colocou vários hospitais na frente para os feridos, mas logo no primeiro dia manifestaram ser ineficazes, por causa do afluxo dos soldados atingidos.
A chamada terra de ninguém em Chemin des Dames
Por fim, o conjunto dos exércitos aliados, agora sob o comando de Foch, consegue fazer recuar os alemães, contra essa desesperada e enorme ofensiva da Primavera e inícios de Verão de 1918. Nessa altura, ficou célebre entre os franceses, a frase célebre: "Vou lutar na frente de Paris, vou lutar em Paris, vou lutar trás de Paris", que não se sabe bem se é de Foch ou do presidente Clémenceau, mas mostra a firmeza dos franceses para manter os exércitos aliados unidos, mesmo com o enorme perigo de perder a cidade de Paris.
De facto, a desastrosa derrota alemã colocou um fim aos planos de Luderndorff e foi a primeira de uma série de vitórias decisivas para os Aliados. A ofensiva Aisne-Marne, em que Mangin mostrara toda a sua agressividade, marcou o início dos Cem Dias, ou seja, a série de ataques dos aliados, que iam terminar com a guerra.
Soldados alemães no Aisne contra as forças de Mangin
O ataque da Itália ainda tornou mais debilitada a situação dos alemães e austríacos e o isolamento da Alemanha crescia. O imperador Francisco José não tinha força para suster uma situação, cada vez mais complexa. A sua morte em 1916, levou ao trono o seu sobrinho neto, o arquiduque Carlos, que fora nomeado por ele e cuja educação ficara a seu cargo já que a vida desregrada do pai, Otão, manifestamente desaconselhava, e era vista com suspeição pelo Imperador. Na verdade, a figura disciplinada e aparentemente austera do velho imperador destoava no meio de uma nobreza dissoluta com uma série de escândalos pouco abonatórios face a todo o protocolo e formalidades de uma corte tradicionalista.
Imperador Carlos I - Austria
( http://www.30giorni.it/articoli__1122_l6.htm )
Depois da morte do seu tio-avô, aos 86 anos, após um reinado de 65, Carlos I governou muito pouco tempo, o que levou o escritor Anatole France a lamentar que assim desaparecesse uma esperança de paz: "O imperador Carlos é o único homem apropriado para sair da guerra numa posição de chefia. É um santo e é uma pena que ninguém o ouça. Deseja sinceramente a paz, ao invés do mundo inteiro. Perdemos uma maravilhosa esperança."
A sua personalidade despertou a admiração de muitos e criou à sua volta uma fama de santidade que não se apagou facilmente. Quis a sorte que, a 27 de Outubro de 1918, Carlos I [69] aceitasse as disposições impostas pelos Estados Unidos e partiu para um exílio atribulado. Depois de um tão longo império, seguia-se um brevíssimo tempo de governo, apesar disso, as capacidades que o novo imperador manifestavam podiam ter contribuído para uma diplomacia inteligente e uma política de renegação.
Guilherme II da Prússia acusara-o de grande inexperiência e fraqueza, muito embora tivesse uma primorosa educação. Mas a oposição entre estes dois governos já tinha um passado longo e Guilherma II cada vez estava mais ressentido e amargo. É óbvio que eram dois espíritos opostos. O pacifismo de um colidia com o militarismo ambicioso do outro. Na verdade, parece mais que foram os acontecimentos tão complexos que tinha de enfrentar, mais do que a sua falta de discernimento político, que apressaram a queda de um império já tão dividido, com povos tão diferentes e há muito tempo revoltados.
Assim, a implantação da República Austríaca surge em 1919 e caminhava para rumos fatais. Entretanto, a Suíça era um país que se dizia neutral, e por isso, esta família real, o imperador Carlos I, a sua esposa Zita e os seus filhos, aí se refugiaram, mas depois de dois atentados falhados, refugiaram-se na Abadia Tihani, seguiram para um porto no rio Danúbio e, depois de várias viagens, em busca de paz, acabaram por chegar ao seu último exílio, na ilha da Madeira, em 1921. No ano seguinte, com a sua saúde fortemente abalada, acabou por falecer, na ilha que a imperatriz Sissi, sua tia-avó, já visitara. Tinha apenas pouco mais de trinta anos.
O exílio ainda estava muito longe de acabar para a imperatriz. As suas atribulações não terminavam. Depois de ser acolhida pelo rei Afonso XIII de Espanha, com os seus sete filhos e ainda grávida do último, que iria nascer em terras de Espanha, em Cádis, não ficou aí, mais tarde, em 1929, a fim de prosseguirem os seus estudos, os jovens príncipes e sua mãe partiram para a Bélgica.
Com a escalada nazi, em 1940, escaparam por pouco a um bombardeamento e tornaram-se refugiados políticos. Foram para a França, depois para Nova Iorque e por fim para o Quebeque, vivendo com muitas dificuldades. Depois da segunda guerra a imperatriz voltou para a Europa e só veio a falecer junto do seu filho mais velho Otto, em 1989. Assim terminava a glória e o poder da Casa de Habsburgo.
Imperatriz Zita da Austria
XI - ATÉ AO FIM. OUTROS NATAIS
No primeiro Natal da grande guerra um acontecimento marca a irracionalidade dos governantes e a humanidade dos combatentes. Este insólito caso, que não é oficial, pode servir de utopia da paz no âmago dos combates, manifestamente bem contrária ao espírito bélico dos "senhores da guerra". Separados pela "terra de ninguém", os exércitos ingleses e alemães, colocados na Frente Oeste, chegaram à véspera de Natal.
A tradição alemã levou a que os soldados acendessem velas em árvores, ao mesmo tempo que cantavam os seus cânticos de Natal.
A surpresa dos ingleses foi indizível e ficaram apenas observar os movimentos do inimigo. Depois, aos cânticos alemães juntaram-se os cânticos ingleses e às vozes dos soldados alemães que gritaram votos de Feliz Natal em inglês, vieram juntar-se o coro dos outros soldados. As tropas dos dois lados inimigos uniam num feliz paradoxo.
As tropas recebendo notícias de casa pelo Natal
Eram os votos de Feliz Natal para "Tommy", nome dado ao comum dos soldados ingleses, assim como "Fritz" que era o mais vulgar entre os soldados alemães. A terra de ninguém foi o local de encontro pacífico com trocas de prendas. Surgia uma paz que nada tinha a ver com as ordens superiores e não foi tomada em consideração, mas antes provocou irritação dos altos comandos. Poucas horas antes, aqueles homens combatiam entre si e agora eram uma só gente em tréguas e a desejar paz.
O comovente testemunho de Edward Hulse, um combatente inglês de 25 anos, descreve no diário de guerra do seu batalhão: "Nós iniciamos conversações com os alemães, que estavam ansiosos para conseguir um armistício durante o Natal. Um batedor chamado F. Murker foi ao encontro de uma patrulha alemã e recebeu uma garrafa de uísque e alguns cigarros e uma mensagem foi enviada por ele, dizendo que, se nós não atirássemos neles, eles não atirariam em nós". [70]
Assim, num breve oásis, as armas ficaram silenciosas aquela noite. Através das cartas dos combatentes aos familiares e amigos facilmente o acontecimento chegou aos jornais dos dois países.
Ainda um inglês John Ferguson escrevia: "Que visão – pequenos grupos de alemães e ingleses extendendo-se por quase toda a extensão de nossa frente! Tarde na noite, nós podíamos ouvir risos e ver fósforos acesos, um alemão a acender um cigarro para um escocês e vice-versa, trocando cigarros e lembranças. Quando eles não podiam falar a língua, eles tentavam fazer-se entender através de gestos (…). Nós riamos e conversávamos com homens que, só umas poucas horas antes, estávamos tentando matar!"
Entre todos os episódios de tréguas e de paz, no meio da guerra, este foi um exemplo espontâneo e inesquecível. de todos. Apesar disso, este episódio de grande humanismo e fraternidade entre homens que se juntavam para além dos interesses de todos os senhores da guerra, não é aceite como verídico por todos os historiadores. Assim, apenas se menciona, pois este gesto pacifista tem tal alcance, que merece ser relatado e, como dizem os italianos, "Si non é vero é bene trovato".
Feliz Natal ?!
Ao iniciar-se a "Guerra das Trincheiras", um tempo de morte varre a Europa num vendaval infernal, fétido e duríssimo. Os exércitos, os homens moviam-se ao sabor de estratégias dos gabinetes que ignoram sempre quem luta por dever, por causas que não entende e cava as trincheiras, coloca arame farpado, rasteja, combate na lama, com baionetas, no horror do gás, rodeado de mortos, de cheiros fétidos, de ruídos de canhões e rajadas de metralhadoras. Tanto os Fritz, os Charles, os Tomies, os Johns, como os portugueses, eram os "poilus" no dizer de Grimberg, e não faltaram obras notáveis para contar a situação terrível das trincheiras.
Horror das trincheiras
Carta particular. Natal 1917.
( © Lúcia Coelho Simas. Colecção privada. S. Miguel. Açores )
Os gabinetes onde os estrategas, os políticos e todos os poderosos traçam os seus planos, são a retaguarda de algo inominável de que não querem saber como podiam estar seres humanos em tais condições. As trincheiras passam a ser conhecidas na imprensa a partir do Outono de 1914. Foi a situação de isolamento e de horror que criou este tipo de jornais. Por entre depoimentos de feridos, prisioneiros, é muito grande a disparidade de dados. Também os marinheiros, os aviadores, artilheiros se juntam a relatos das unidades do oriente, da Itália. Do lado alemão as notícias têm menos o propósito de testemunhar, do que de instigar ao combate. Em vez dos jornais de trincheira dos aliados, aparecem publicações de boa qualidade, por vezes com ilustrações e escritas por oficiais destacados para esse fim. [Tradução e adaptação nossa] [71]
A guerra contada por quem a viveu é o irracionalismo da morte organizada por homens que desenham nos mapas os desígnios de milhões. Combatem, como conta Le Clézio, um mauriciano, Nobel de literatura de 2008, em "O Caçador de Tesouros", o quotidiano estranho das trincheiras, que se conta pelo número de mortos, dos rumores, medos silenciados, interrogações, ignorância do rumo da batalha, da guerra, até o cansaço apagar quase o que de humano se podia dizer existir. Era um "furacão de fogo sobre as grandes árvores a esventrar a terra, abrindo o caminho terrível do ataque".Dia após dia a decisão da derrota, ou da vitória, não chega aos soldados. Descreve ainda que:
"Os cadáveres dos cavalos chegaram de comboio (…) foram transportados às carradas ao logo dos caminhos lamacentos até às margens do Ancre. Todos os dias, montanhas de carcaças de cavalos mortos são lançadas nos prados junto ao rio. Depois, ouvimos o grasnar dos corvos e das gralhas sobre os cadáveres (…) não somos neófitos, todos vimos já a morte de perto, os camaradas varados pelas balas das metralhadoras, dobrados como se tivessem sido atingidos por um murro invisível, desventrados pelas granadas. Mas ao atravessar este campo onde se estendem centenas de carcaças de cavalos mortos, as pernas tremem-nos de náusea." [72]
Cavalos abatidos
( http://www.mdig.com.br/index.php?itemid=14593 )
Entretanto, as trincheiras no Marne foram cavadas com desesperada pressa até começos de Novembro e os exércitos não podiam manobrar pois no final esta etapa, "não havia um só metro de linha na frente ocidental que não fosse defendido por entrincheiramentos". Os aliados, que eram ainda intitulados por Triplo Entendimento e os impérios centrais alemão e Austro-Húngaro, passaram a enfrentar-se numa longa linha que ia do mar do Norte à fronteira Suíça, era a frente ocidental.
A Itália, com o "Pacto de Londres", um acordo secreto, em Abril de 1915, entra na guerra ao lado de Grã-Bretanha, França e Império Russo. Deixava assim a tripla Aliança com os impérios e, em troca disso, passava a receber as áreas do império Austro-húngaro, onde viviam italianos, e outros territórios dos Balcãs. Entretanto, as sucessivas derrotas e recuos das tropas russas, davam aos alemães a noção de terem derrotado esse inimigo e ansiavam atacar a França em força.
Por sua vez, a grande Rússia atravessava uma das fases de maior aterradora confusão da sua história, mesmo à beira de uma guerra civil. No entanto, com que entusiasmo inicial os soldados leais tinham correspondido ao apelo para entrar na guerra. Os camponeses capazes de dar a vida pelo seu querido czar, esse tradicional "paizinho" dos russos, sentiram bem depressa o cansaço de uma luta que não entendiam e cada vez ficavam mais desmotivados na frente, depois de derrotados, só podiam recuar. Foi tanto, que um grupo de desertores e revoltosos juntava-se a Lenine na Suíça, e este preparava o seu regresso…
Os factos, frios e duros, sem alma, ditam que no ano de 1916 houve tentativas de romper a frente de batalha. Uma, do lado alemão, com a batalha de Verdun, tinha o objetivo derrotar os franceses, mas não atacar o Reino Unido. O que mais espanta foi ter durado tanto tempo e contar com cerca de 700.000 mortos.
"A situação de Verdun era horrível a cada dia que passava. Homens e mais homens mortos no chão por toda parte, trincheiras feitas e refeitas, o solo tão acidentado quanto o lunar, por causa dos bombardeios" . [73]
Se Verdun foi um acontecimento que marcou para sempre os franceses, a ofensiva ao longo do rio Somme faria os ingleses nunca mais esquecerem o horror das perdas. Não era sem problemas internos e revoltas das colónias que os ingleses enfrentavam o conflito. A mobilização fez-se com complicações e os Bóeres sul-africanos tentaram uma revolta de cariz nacionalista, que foi fortemente reprimida. Os jovens britânicos apresentaram-se como voluntários, depois que apareceu a propaganda em que Lord Kitchener [74] aparecia num cartaz "Your country needs you!", a apelar a que se alistassem, pois era para a grande missão, o dever de defender a pátria e não deixar que a Europa governasse o Reino Unido
Cartaz Britânico de Recrutamento
Os jornais, no Reino Unido, no início do confronto, apresentam caricaturas divertidas que levam a pensar na leviandade com que os voluntários se despediam das suas famílias, com uma grande ilusão de nada ser mais do que uma campanha que pouco duraria. Ao contrário dos franceses e alemães, os ingleses tinham muito menos noção da inevitabilidade da guerra. A sua mobilização foi logo acompanhada das reservas de tropas, vindas de todo o império britânico e que, após entrar no campo de batalha, perderam quaisquer ilusões de uma luta em forma de campanha, pois foram de imediato enviadas para a frente, para o terreno do massacre, dia após dia, das trincheiras.
Apelos à luta
Lord Kitchener foi um dos poucos militares da sua época, que tinha a noção da gravidade da guerra e também de prever a sua longa duração, tendo a lucidez de entender que a Inglaterra não estava segura de vencer. Muitos desses novos militares voluntários foram logo os primeiros a morrer, pois estavam presentes na batalha travada no Somme e a sua primeira e horrível experiência de batalha, para mostrar o seu patriotismo, foi a sua sentença de morte.
Desde 1796 que, na Irlanda, nenhum movimento independentista se manifestava e este que surgiu em resultado da guerra, foi o mais forte que apareceu e veio a chamar-se "Revolta da Páscoa", iniciada em Dublin, em 1916. Os irlandeses queriam romper com a Grã-Bretanha e juntar-se à Alemanha. O grupo "Sinn Fein", que significa "Nós mesmos", sofreu uma duríssima represália. Mas o Reino Unido mobilizou tropas de vários dos seus territórios e que combatiam por uma causa que certamente pouco lhes dizia.
Depois da guerra, celebra-se o "Anzac Day" , como um mito ou lenda cuidadosa e orgulhosamente guardado, que vem recordar a data de 1915, quando os ingleses, neozelandeses e australianos desembarcaram na costa da Turquia.
Entretanto, os ingleses puderam ver na pátria, através das imagens, a morte dos seus filhos. Isso foi decisivo para a mudança da sua mentalidade e continuidade da sua estratégia. Foi nesta duríssima batalha que entraram, pela primeira vez em ação os tanques de guerra, ao mesmo tempo que a artilharia, a metralhadora, os horrores dos gases tóxicos, demonstrando o anacronismo horroroso da cavalaria militar ainda presente. A estratégia de "um imobilismo táctico", fez com que o território conquistado e a alta mortalidade mostrassem para todos os beligerantes que essa não era a estratégia de vitória. Nada se decidiu com este horrível combate. "Não houve manobras brilhantes, envolvimentos magistrais, nem ataques demolidores.".
No Somme, estavam dois ciclopes frente a frente. Gigantescos e vagarosos, pesados, estúpidos e meio cegos como todos os ciclopes. [75] Pela última vez, as estratégias do século anterior confrontavam-se com as novas armas e a mortalidade atingiu um nível inenarrável.
A batalha do Somme iniciou-se de Julho a 14 de Outubro de 1916, poucos meses depois dos acontecimentos em Verdun. Com mais de 1,2 milhão de vítimas, entre mortos e feridos, em cinco meses de combate, foi uma das operações militares mais violentas da História da humanidade. E, levando-se em conta os ganhos territoriais, cerca de 300 quilômetros quadrados, foi decerto uma das mais inúteis. Nunca em toda a história militar tantos pereceram por tão pouco.
Tanques ingleses na Batalha do Somme
( http://www.klick.com.br/enciclo/encicloverb/0,5977,POR-11483,00.html )
A batalha também marcou a estreia dos tanques de guerra. A cavalaria sofreu um ataque trágico com o horror dos pobres animais, morte, feridos e em longa agonia. Nada havia a fazer face àqueles monstros de ferro e fogo. Por sua vez, foi um choque tremendo para os Britânicos, de modo que Verdun foi o grande símbolo para os franceses, já para os ingleses este foi, pode dizer-se, em termos de carnificina, o seu batismo de fogo, de modo que podendo a população ver em "imagens" e em direto, logo no primeiro dia, o que se passava com os seus combatentes, mortos, horrivelmente mutilados, destroçados e feridos.
Feridos de guerra
Parece até que nunca mais, gerações e gerações inteiras lutaram do mesmo modo, e menos ainda no Continente. Desde o dia 26, densas nuvens de cloro pairando sobre a terra de ninguém foram avistadas pelas sentinelas alemãs, deslocando-se na direção de Serre, Beaumont e Fricourt. O gás, mais denso que o ar, descia por todos os buracos, como uma coisa viva e infiltrava-se em todas as aberturas. Na ocasião, os ingleses lançaram mão dos torpedos aéreos.
O histórico e fatídico 1º de Julho de 1916, começou da pior maneira para os britânicos. Nessa tristíssima manhã, o Exército britânico ia lançar um fortíssimo ataque. A frente estendia-se por cerca de 20 quilômetros ao norte do Somme. O assalto foi precedido por um bombardeio incrível, que durou cerca de uma hora e meia. As sentinelas alemãs, espreitando pelos periscópios, tinham observado uma massa de capacetes a crescer nas trincheiras aliadas .Foi então que se deu a "corrida para o parapeito".
Corrida para o parapeito
( http://semanestesia33.blogspot.pt/2010/11/somme_08.html )
Serviram uma refeição quente, que reconfortou, com certeza, um pouco mais as tropas. Na madrugada, eclodiu um bombardeio sem paralelo contra toda a frente, desde o norte do Ancre até ao sul do Somme. Na hora seguinte "parecia que todos os fogos do inferno tinham sido lançados para nos destruir", segundo a descrição de um soldado alemão.
Às 7 horas algumas metralhadoras alemãs começaram a bater os parapeitos das trincheiras aliadas. Logo neste primeiro dia da batalha, o exército britânico sofreu o mais terrível golpe da sua história, com um bombardeio da artilharia germânica. Caíram logo cerca de 60.000 vítimas e isso nunca mais seria esquecido pelos britânicos. Foi porém demasiado cedo que as tropas britânicas ocuparam a linha de frente alemã. Todas as perspetivas otimistas se desvaneceram, pois a cavalaria não se podia opor a meios bem mais poderosos, como o avançar dos tanques e a fúria das metralhadoras. Se, tecnicamente, foi um sucesso ainda hoje há grande polémica acerca de uma vitória a tão alto preço humano. Esta corrida da parte dos ingleses começara nas suas trincheiras da frente e que para os alemães principiou do fundo dos abrigos, para terminar no topo dos degraus desses mesmos abrigos.
Quem primeiro alcançasse o parapeito alemão estaria vivo. O soldado, de cada lado, se perdesse a corrida, morreria, quer soterrado nos abrigos, quer atingido na superfície da terra, frente à trincheira. Todos os esforços ingleses visaram assegurar que os alemães perdessem a corrida, e se mostrassem demasiado inferiorizados para combater. Só que a maior parte das guarnições das trincheiras alemãs vivia ainda uma luta desesperada pela vitória e perceberam o alcance do combate. [76]
Poucos segundos depois, foram recebidos por mortíferos fogos de metralhadora e, de um modo geral, aqueles poucos que conseguiram chegar às trincheiras alemãs, deparavam com grandes extensões do terrível arame farpado, ainda intato, e nele se emaranhavam perdendo o ímpeto, sendo logo a seguir ceifados pelos fogos das metralhadoras, ou queimados pelos lança-chamas.
Soldado russo morto no arame farpado
George Coppard, que combateu com uma metralhadora na batalha do Somme, deixou este pungente depoimento do segundo dia do ataque:
".[tradução nossa]"Na manhã seguinte (02 de julho) pudemos observar a terrível cena diante de nós. Ficou claro que os alemães sempre tiveram uma visão dominante da terra de ninguém. O ataque britânico tinha sido brutalmente repelido. Centenas de mortos estavam dispersos como destroços lavados como por uma alta marca que uma maré deixara. Muitos morreram presos nos arames farpados ou no chão, como peixes presos na rede. Eles ficaram lá em posturas grotescas. Alguns pareciam como se estivessem orando, pois tinham morrido de joelhos e os arames impediam a sua queda. O fogo da metralhadora tinha feito o seu trabalho terrível
Foi
deste modo que a pavorosa batalha do Somme começou. Estava-se no
primeiro dia do mês de Julho de 1916 e iria durar até Novembro de 1916 e
o bombardeio de artilharia durou uma semana, da parte das linhas alemãs. Para
muitos, esta foi a batalha que simbolizava os horrores da guerra.
Note-se que teve um efeito marcante pelo número de vítimas totais e
pareceu resumir a futilidade da guerra de trincheira.
O
general mais polémico foi, nessa altura, o escocês, Sir Douglas Haig
(1861-1928). Fora oficial de cavalaria e vivera na Índia, tomara parte
na guerra dos Bóeres. A sua perícia militar estava bem cimentada, com
todas as batalhas e ações de guerra, e uma delas em Ipres. A ação
no Somme tinha o intuito de afastar as tropas germânicas de Verdun.
Porém, Haig foi uma figura controversa pelas suas estratégias. O
primeiro-ministro, David Lloyd George, foi um desses grandes críticos e
as suas dúvidas levaram-no, mais tarde, a confessar se não teria sido
melhor não deixar Haig prosseguir nas suas estratégias. É possível
dizer-se que Haig era um oficial de cavalaria e sempre o foi.
Tal como
muitos outros militares, a sua visão acerca da nova tecnologia e até dos
tanques, não era favorável. A maior parte da guerra, nada teve a ver com
este militar, mas o Somme ficou para sempre na imagem dos britânicos. "Pela
primeira vez, a sociedade britânica foi exposta aos horrores da guerra
moderna, com o lançamento, em Agosto, do filme "A Batalha de Somme", que utilizava imagens
reais, a partir primeiro dia da batalha."
Transporte de um ferido
( http://www.oocities.org/the_entente )
Mais tarde, já durante a 2ª guerra mundial, numa ocasião em que o General Marshall se encontrava em Inglaterra apresentando lógicos e convincentes argumentos a favor de uma invasão imediata do continente, Lord Cherwell, com toda a sua sábia experiência, retorquiu-lhe com prudência: "Não vale a pena, o senhor está a argumentar contra as baixas do Somme… [77]
Cemitério de Guerra ( Somme )
Esta
crítica foi baseada nos números de baixas terríveis sofridas pelos
britânicos e os franceses. Até ao final da batalha, o exército britânico
tinha sofrido 420.000 baixas, incluindo cerca de 60.000, exclusivamente no primeiro dia. Os franceses perderam 200.000 homens e os alemães quase
500.000. Confrontavam-se duas formas da natureza da guerra e ainda a fé
nos ataques da cavalaria e a sua capacidade perdeu-se para sempre depois
das perdas que tiveram. A natureza conservadora acerca da guerra, com
base nos ataques e estratégias da cavalaria, de acordo com os
britânicos, em que se destacava Haig, desapareceu definitivamente. Este meio
já não era possível de continuar, foi o que se demonstrou nesses dois
anos.
Ironicamente, o chefe do Exército francês, o general Foch, acreditava
que o ataque no Somme atingiria poucos danos - esta visão foi
compartilhada por alguns comandantes britânicos, como a General Henry
Rawlinson, que se iria desentender com Haig durante as manobras de
ataque.
O
General Sir Douglas Haig, após o fracasso da ofensiva do dia anterior,
resolveu abdicar de qualquer tentativa de surpresa e viu-se forçado a
concentrar o fogo de artilharia em pequenos setores da trincheira que a
infantaria ocuparia a seguir. Contudo, os alemães rapidamente perceberam
que teriam mais hipóteses de sobrevivência caso se abrigassem em
crateras e buracos, devidamente cobertos, em vez das trincheiras, nas
quais se concentravam os fogos inimigos. Assim, quando os aliados
avançavam. eram logo colhidos por intensos fogos de metralhadora e
espingarda, vindos dos locais mais diversos. Até o
final da batalha, em Novembro de 1916, os britânicos haviam perdido 420
mil, os franceses perderam quase 200.000 homens e morreram mais de
500.000 alemães. As forças aliadas tinham avançado ao longo de uma faixa
de 30 quilômetros que foi de sete quilômetros de profundidade no seu
ponto máximo.
O
resultado teve sérias consequências políticas e sociais na Grã-Bretanha.
Muitos falaram da "geração perdida". Era quase impossível de justificar
que 88.000 soldados aliados se tinham perdido, por cada milha ganha no
avanço. O
escritor muito admirado por Grimberg, Henri Barbusse (1873- 1931) já em
1916, vai dar a conhecer as trincheiras, tal como as viveu, ao povo
francês. É ele que "desmistifica a guerra, fustigando os especuladores
de todas as espécies."
A sua
famosa obra "Le Feu", de 1916, que recebeu o prestigiado Prémio Goncourt,
é uma acusação aos grandes chefes militares franceses de malbaratarem o
"material humano" acusação que, no ano seguinte, se vai corroborar
atrozmente . [78]
"Le Feu" (capa)
( http://www.philophil.com/philosophe/barbusse/feu/feu.htm )
Barbusse,
apesar de ter 41 anos e estar reformado, alista-se como voluntário. Fica ferido em Albi e, mesmo assim, pede para ir para a frente. Entre duas batalhas, sonha com saudades da sua terra. Apanha disenteria e é evacuado. É então que começa a escrever "Le Feu", ainda no hospital, e antes de ser definitivamente reformado em 1917. Mais tarde, desiludido com a França, foi terminar a sua vida na Rússia comunista.
Barbusse - Guerra
( http://www.lefildelaure.fr/4-categorie-11070580.html )
Há mais
água ainda do que pensávamos. Levou tudo e espalhou-se por toda parte. A
profecia dos homens durante a noite tornou-se realidade. Não há mais
trincheiras; esses canais são as trincheiras imersas. É um dilúvio
universal. O campo de batalha não está adormecido, está morto. Talvez
possa haver vida lá em baixo, talvez, mas não podemos ver nada até
agora. (…) Ah, os
homens! Onde estão os homens?
Gradualmente, começámos a vê-los. Não muito longe de nós, há alguns
corpos a dormir e tão moldados na lama da cabeça aos pés que estão quase
transformados em objetos inanimados.
A alguma
distância, posso ver outros, enrolados e apegando-se como os caracóis ao
longo de todo um aterro arredondado, desde que tenham em que se
apoiarem. São vultos imóveis, desajeitados, de feixes colocados lado a
lado, gotejando água e lama, e da mesma cor que o solo com o qual eles
são misturados.
Esforço-me para quebrar o silêncio. Para Paradis, que também está à
procura do mesmo modo, digo: "Eles estão mortos?"
Nós
olhamos um para o outro, e os nossos olhos caem também sobre os outros
que vieram e caíram aqui. Os seus rostos soletram um cansaço tal, que já
não têm rostos, mas sim algo sujo, desfigurado e ferido, com sangue nos
olhos. Desde o início, vi. O rosto está voltado para o céu. Os olhos são
dois buracos brancos, a boca é um buraco negro. Com a pele amarela e
inchada a máscara do rosto aparece suave e vincada, como argila que
esfriou.
Campo de batalha
São os homens que estavam ali, e não conseguiram livrar-se da lama.
Todos os seus esforço para escapar ao longo da escarpa pegajosa da trincheira,
que se foi lenta e fatalmente preenchendo apenas com água, arrastou-os
ainda mais para o fundo. Morreram agarrados ao suporte maleável da terra. Agora, é
um campo de repouso. Por toda parte, a terra está pontilhada com os
seres humanos que dormem, ou que estão a caminho de morrer, movendo-se
lentamente, levantando um braço, levantando uma cabeça. A
trincheira inimiga completa o processo de naufrágio em si mesmo, entre
ondulações grandes, pantanosas e buracos em funil. (…)
Neste
círculo desconcertante de imundície, não há corpos. Mas há, pior do que
um corpo, um braço saliente solitário, nu e branco como uma pedra, a
partir de um buraco que vagamente mostra no outro lado da água. O homem
foi enterrado e teve apenas o tempo necessário para empurrar o braço.
São alemães ou franceses? Não sabemos. Um deles abriu os
olhos e olha para nós, balançando a cabeça. Nós dizemos-lhe: "francês?"
- E, em seguida, "Deutsch" ? Ele não responde, mas fecha os olhos novamente e recaí no
esquecimento. Nunca saberemos o que era.
Sobreviventes
( http://mrsteed2.blogspot.pt/2010/11/o-significado-da-papoila.html )
Não podemos descobrir a identidade desses seres, quer pelas suas roupas, densamente cobertas de lama suja, quer pela sua cabeça, pois estão com a cabeça descoberta, ou envolta em roupas de lã, sob os capuzes líquidos e prejudiciais, ou pelas suas armas, ou quer tenham a espingarda, ou a descansar as mãos levemente em algo que eles arrastaram, uma massa disforme e pegajosa, como uma espécie de peixe.
Tragédia sem fim
( http://padornelo.blogs.sapo.pt/tag/hist%C3%B3ria )
Todos
estes cadáveres de seres humanos, como as caras que estão diante de nós
e atrás de nós, no limite das suas forças, num vazio de expressão como
de vontade, todas estas terras carregadas de homens, que se diria
estavam carregando a sua própria aniquilação em folhas mortas, são muito
parecidos como se estivessem nus. Fora do horror das aparições noturnas,
estão a aparecer a partir deste lado e que quem está vestido com
uniforme é exatamente o mesmo da miséria e da lama.
É o fim
de todos. No momento, é o acabamento prodigioso, a cessação épica da
guerra. Uma vez,
eu costumava pensar que o pior inferno na guerra era a chama dos obuses
e, então, por muito tempo pensei que era o sufocamento das cavernas
que eternamente nos confinam. Mas não é nenhuma destas. O Inferno é a
água.
O vento aumenta e seu sopro gelado passa pela nossa carne. Na planície devastada
e que se dissolve, salpicada de corpos, entre os seus vermes em forma de
abismos de água, entre as ilhas de homens imóveis, grudadas como os
répteis, neste caos aplanado e afundando, há alguns indícios leves de
movimento. Vemos os grupos lentamente a mexer e fragmentos de grupos,
compostos por seres que se curvam sob o peso de seus casacos e aventais
de lama, que se arrastam ao longo do terreno, se dispersam e engatinham
nas profundezas da luz manchada do céu. A madrugada é tão horrível que
se diria que o dia já estava a acabar.
Os
sobreviventes estão a chegar de toda a estepe desolada, perseguidos por
um mal inominável que esgota e os confunde. (…)
O Grito (Quadro de E. Munch )
Eles
olham para nós, descobrir em nós homens, e choram através do vento.
"Pior do que lá em baixo, é aqui". (…)
Levantamo-nos e, uma vez mais o vento gelado faz-nos tremer como
árvores. Lentamente voltam para a massa formada por dois homens que
curiosamente aderiram, inclinando-se lado a lado, e cada um com um braço
do pescoço do outro. É a luta corpo a corpo de dois soldados que
se dominaram um ao outro na morte e ainda mantem a sua própria, que
nunca mais pode perder seu controle? Não, são dois homens que se
reclinam, um sobre o outro, de modo a poderem dormir. Como eles não
se podem deitar sobre a terra mole e pronta para se espalhar sobre eles,
apoiaram-se um ao outro, apertando um o ombro do outro e assim, mergulhando
no chão até aos joelhos, adormeceram.
Nós
respeitamos a sua quietude e desviamo-nos da estátua gêmea da miséria
humana. (…) De vez
em quando, abrimos os olhos. Alguns homens dirigem-se para nós,
cambaleando. Apoiam-se a nós a falar numa voz baixa e cansada. Um deles
diz: "Sie sind Todt. Wir bleiben hier". Eles estão mortos. Nós vamos
ficar aqui. O outro diz: "Ja", como um suspiro.
Mas
vêem-nos mover, e logo se afundam na nossa frente. O homem, com a voz
sem timbre, diz-nos em francês, "Nós rendemo-nos", e não se movem. Então
põem-se perfeitamente em forma, como se isso fosse o alívio, o fim de
sua tortura, e, um deles, cujo rosto é modelado em lama como um
selvagem tatuado, sorri ligeiramente
.
Romance de Barbusse
"Fique
aí", diz Paradis, sem mover a cabeça, que inclina para trás em
cima de um montículo; " Agora deve ir connosco, se é que quer ir ".
"Sim",
diz o alemão, " já tive o suficiente." Nós não damos nenhuma resposta, e
ele diz: "E os outros também?"
"Sim",
diz Paradis ", deixa-os parar também, se eles gostam." Existem quatro
deles estendidos no chão. Um está no estertor da morte. É como uma
canção de soluços que sobe dele. Então, metade dos outros endireita-se,
ou ajoelha em volta dele, a rolar os grandes olhos nas suas faces de
lama. Levantamo-nos e assistimos à cena. Mas o soluço morre da garganta
enegrecida que só em todo o grande corpo,pulsava como um passarinho,
ainda vivo.
"Er ist
Todt!" (Ele está morto), diz um dos homens, começando a chorar. Os
outros instalam-se novamente para dormir. O vigia vai dormir enquanto
ele chora. Outros
soldados chegaram, tropeçando, com paragens repentinas, como homens
embriagados, ou um deslizar de vermes, isto aqui torna-se um santuário e
dormimos todos misturados na vala comum.
Devastação
( http://gentesdebelmonte.blogspot.pt/2010_07_01_archive.html )
O
acordar. Paradis e eu entreolhamo-nos, e recordo. Voltamos à vida e à
luz do dia como de um pesadelo. À nossa frente, na lúgubre planície
ressuscitada, onde os tanques aparecem vagamente meios imersos, a
planície de aço, como que é oxidada em alguns lugares e brilha com
linhas e poças de água, enquanto os corpos estão espalhados, aqui e ali,
na imensidão, como lixo imundo, os corpos inclinados que respiram ou
apodrecem.
Paradis
diz para mim: "Isso é a guerra." [Tradução nossa]
Barbusse
foi o "Zola das trincheiras", pelo realismo e crueza de escrita. O seu
livro "Le Feu " foi, para muitos, o seu "J ´acuse!" tal como o famoso
jornalista e escritor da linha da literatura do naturalismo e do
realismo. A descrição da guerra, tal como os pobres e heroicos soldados
tentavam viver, publicada assim, no meio do conflito, tornou-se num
tremendo labelo lançado por Barbusse contra os seus impiedosos
governantes.
"Esses
homens foram esculpidos pela fatiga, fustigados pela chuva, atormentados
por uma noite inteira de trovoada […] entreveem até que ponto a guerra é
tão hedionda, tanto para o moral, como para o físico, não somente viola
o bom senso como avilta as grandes ideias, comanda todos os crimes, mas
lembram-se como ela se desenvolveu neles e à sua volta com todos os maus
instintos sem exceção de um só: a maldade até ao sadismo, o egoísmo até
à ferocidade, a necessidade de gozar, até à loucura."
[79]
O
historiador Grimberg é de origem sueca. Fala, de algum modo, de forma mais livre
do que os escritores dos Impérios do centro ou dos aliados. O
isolamento na trincheira desse soldado, que já vai quase a perder a
esperança de regresso, só pode recuperar imagens de casa que imagina
nunca mais voltar a ver. A ideia de que vai morrer é um absurdo que lhe
passa pela mente e partilha com os outros. Como descrição e como obra de
arte, o livro de Barbusse é superior ao de Erich Marie Remarque, é o que
conclui Grimberg. Porém,
este é mais pessoal, confessional e, nesse ponto, ultrapassa o francês
em emoção que atravessa todas as páginas com uma tão grande dor e
sofrimento que horroriza quem lê face à crueldade da guerra. Há um
dolorosíssimo acordar do desespero, depois de uma breve e inglória ilusão
de cumprimento do dever.
Com a desaparição do militarismo, uma perda de nacionalidade, de
inimigos, de sentido para tudo, resiste no final como maior, a amizade
urdida nas horas e dias de companheismo e de morte. Para além de ter de
matar, há no fundo um desejo de salvação que não se torna egoísta, mas é
uma salvação de partilha apenas, sem sonhar ou ter ilusões de vitórias,
isso nem tem já sentido, mas o amor pela vida, no seu sentido altruísta
mais puro, é ainda o mais forte, no meio da dor e desespero.
Capas de livros de Robert Graves
(bhttp://library.otago.ac.nz/exhibitions/magical-landscape/cabinet1-1.htm )
Do lado dos britânicos também há muitas obras com testemunhos semelhantes, mas talvez ainda, seja "Good-by at all That" de Robert Graves com todo o seu sarcasmo e ironia que ofereça um retrato dos homens do poder e da política que procuraram destruir uma geração de britânicos. É uma autobiografia, mas não é apenas só mais uma, entre muitas que apareceram, pois se distingue pela honestidade, pelo método, ainda com toda a dor e raiva que dez anos de afastamento dos acontecimentos, não conseguiram apagar. É uma obra de método desconexo, com mistura de poemas, trechos de cartas, reflexões sem lirismos, textos e ordens dos comandos, que consegue transmitir uma forte impressão da perturbação que o autor sentia nesse tempo e no campo de batalha.
Robert
Graves estava na Frente Ocidental em Julho de 1916, quando foi gravemente
ferido por estilhaços de uma explosão. Por um grave erro, o Exército
informou o pai, Alfred Graves, que seu filho tinha morrido e,
absurdamente,
foram encaminhados para a família os seus objetos pessoais. A notícia da
sua morte chegou a ser publicada no "The Times", antes que se desfizesse
tal erro. Já em Inglaterra, enquanto recobrava das feridas da guerra,
Graves retomou a sua amizade com o poeta Siegfried Sassoon. Ambos
mostravam-se acérrimos críticos acerca da forma como o esforço de guerra
era mal administrado pelo exército e pelo governo britânico.
Para
Robert Graves a poesia foi um dos caminhos que melhor conheceu. É por
isso mesmo que escreveu "a verdadeira prática poética exige uma
mente tão milagrosamente ajustada e iluminada que possa transformar as
palavras, através de uma série de mais do que coincidências, numa entidade animada, num poema que pode atuar só por si, durante séculos
depois da morte do autor, afetando os leitores com sua magia
preservada."
Graves
foi sempre exagerado na defesa da sua inspiração, considerava-a como
transgressão propiciatória.
Extrapolando os limites do Romantismo, enquanto escola literária, dizia
que "um poeta da Musa enamora-se absolutamente, e seu amor sincero é
para ele a encarnação da Musa". Ao mesmo tempo lamentava que o conceito
de " ser sensível" que significava, em alguns idiomas latinos, uma misto
de sensitivo e vigilante, fosse substituído pelo ser racional, na exata
proporção em que o mistério já desapareceu.
Desanimado por se ter quebrado o fio que liga aos tempos imemoriais da
arte clássica, escrevia que:
"a
função da poesia é a invocação religiosa da Musa; sua utilidade é a
mistura da exaltação e do horror que a sua presença suscita". [80]
Havia
outro perigo que os aliados tinham de combater. Os turcos que se aliaram
à Alemanha. A Turquia dominava o Médio Oriente desde o século XV, com um
império sob feroz opressão. Era um imenso império contando com a
Síria, Israel, Iraque e outros países que hoje são independentes. O
nacionalismo era o risco que os turcos temiam internamente e depois a
invasão dos aliados.
O nome
porque ficou mais conhecida a campanha onde as forças armadas da
Austrália e da Nova Zelândia tiveram uma representação, que se tornou
desastrosa foi Galípolis, ou melhor, por "Campanha de Dardanelos". O Reino
Unido, de acordo com os restantes aliados, queria avançar pelo estreito
de Dardanelos e tomar Constantinopla. A mesma ambição que os russos
também tiveram nesta guerra e ambas as tentativas foram goradas pelas
forças terríficas dos turcos.
Em 25 de
abril de 1915, os aliados desembarcaram numa pequena baía, na ponta
oeste da Península, mas a estratégia falhou, porque houve um erro de
navegação e foram desembarcar em locais bem defendidos pelos turcos.
Após meses de lutas, tiveram de recuar deixado 10 000 mortos nessa
desastrosa ação. Pode dizer-se que nunca tantos morreram por tão pouco,
tanto do lado dos aliados como dos turcos.
Campanha dos Dardanelos
Esta
campanha dos Dardanelos deu um impulso à carreira de Mustafá Kemal. Este
comandante de origem grega, desobedecendo às ordens recebidas, com
grande coragem avançou e fez os aliados recuar. Mustafá Kemal, que era
um revolucionário desconhecido mas muito inteligente, iria o edificar o
Estado Turco moderno, depois da queda do Império Otomano.
Os seus esforços de modernizar a velha Turquia foram enormes,
desde a secularização, aos trajes, ao código civil, penal e
administrativo, à sua hábil política externa até à educação, contando com o famoso
pedagogo Dewey, para seu conselheiro. A sua
obra, apesar de muita centralizada e da oposição que encontrou, abriu
definitivamente as portas da Turquia ao mundo Ocidental.
Numa das
suas reuniões mostrou a clarividência acerca do futuro: "Para
as mulheres: Vençam para nós a batalha da educação, e farão mais pelo
país do que nós já pudemos fazer. É para vós que apelo.
,
Mustafa Kemal
Para os homens: Se, de agora em diante, as mulheres não tomarem parte da
vida social da nação, jamais conseguiremos atingir nosso desenvolvimento
completo. Permaneceremos irremediavelmente atrasados, incapazes de
sermos tratados de igual para igual pelas civilizações do Ocidente".
Os
turcos otomanos não contavam com a rebelião das tribos beduínas que,
durante séculos, nunca estavam unidas entre si. A situação agora mudava.
Os
ingleses não foram inocentes nessa nova luta que os turcos tinham de
enfrentar. De maneira eficaz, procuraram instigar as revoltas. Com a
Grande Guerra, a habitual submissão dos beduínos sofre uma viragem. Com
a guerra, o estilo de vida nómada começara a ficar complicado e o
descontentamento de todas as tribos era crescente. A parte do oriente
médio dominada pelos otomanos começa, com estas revoltas, a ficar
desgovernada.
Da parte
dos ingleses, foi fundamental o papel do oficial Thomas Edward Lawrence
(1888-1935), [81] conhecido por "Lawrence da Arábia". Este original
aventureiro deu corpo a um sonho.
Tratava-se de um jovem inglês, culto, escritor e arqueólogo, que
adquiriu um profundo conhecimento dos árabes e teve uma ação invulgar
nesta fase da guerra.
Havia em
Lawrence um sonhador e uma personalidade tão complexa que os seus
biógrafos ficam confusos com as contradições de toda a sua vida. Com o
seu temperamento arrebatado e aquela intuição que tantas vezes foi o
seu guia, conquistou a simpatia árabe e conseguiu uma grande adesão.
Numa das suas obras mais conhecidas "Os sete pilares da sabedoria",
escreveu:
"Todos os homens sonham, mas não da mesma forma. Os que sonham de noite, nos recessos poeirentos das suas mentes, acordam de manhã para verem que tudo, afinal, não passava de vaidade. Mas os que sonham acordados, esses são homens perigosos, pois realizam os seus sonhos de olhos abertos, tornando-os possíveis."
Pertencia a uma família pouco comum. O pai, Sir Thomas Capman,
abandonara a esposa para se juntar à sua governanta, Sara Junner, de
quem teve 5 filhos, todos nascidos em países diferentes, pois estavam
sempre a viajar. Lawrence era um rapaz desproporcionado, baixo talvez
por ter tido papeira, muito inteligente, com uma cabeça demasiado grande
e um ar triste. Era vegetariano como Wagner, mas também não bebia ou
fumava. Após a guerra, tentou, através do anonimato e de nomes falsos,
escapar à sua fama. Por isso, juntou-se à Real Força Aérea sob o nome de
John Hume Ross. Sendo descoberto, alistou-se Corpo de Tanques com o
pseudónimo de Thomas Edward Shaw, nome que usou até ao dia em que
morreu. A sua
vida plena de triunfos e de aventuras terminou com uma morte trágica e
um pouco misteriosa, ou acidental, que ninguém podia esperar.
Correr
de moto era a sua paixão e sabia-se que era louco pela velocidade. No
dia em que sofreu seu acidente fatal, a polícia descobriu que a sua moto
se deslocava no limite absoluto da velocidade. A derrapagem inesperada deu-se
quando regressava à sua querida casa em Dorset [82], em 1935.
Paixão pelas motas
( http://thevintagent.blogspot.pt/2007/09/te-lawrence-road-taken-from-mint.html )
. Lawrence. Combate no deserto
Lawrence
da Arábia, como se tornou conhecido, tentou tornar realidade o sonho de
um povo, num movimento nacionalista que contava com a ajuda dos ingleses
interessados em vencer os Turcos. A sua
vida anterior foi a de um jovem muito estudioso que passou por Oxford e
aprendeu história, explorando depois velhos castelos e igrejas antigas
apaixonado pela arqueologia na Síria, onde muito andou a investigar. Da
arqueologia proveio o seu contato com os árabes e depois o grande
entusiasmo pela sua causa.
Tinha uma opinião muito favorável sobre eles
" são a única civilização que soube libertar-se dos empecilhos com
que nós nos sobrecarregamos com afã."
Ao
rebentar a guerra, estava então em Inglaterra e decidiu logo combater.
Já no Cairo, rapidamente tomou um largo conhecimento da situação e das
forças dos turcos, dado o seu conhecimento do árabe. Ter-se-á tornado
num agente de informações para os ingleses mas, com o seu temperamento
rebelde, desprezava os seus companheiros de armas, que lhe parecem
ignorantes, o que não deixa de ser verdade, face aos seus conhecimentos.
Um
fascínio enorme pelo deserto leva-o a realizar missões quase
inacreditáveis. Depois, com toda a determinação e estratégia, em 1916,
juntou-se à Grande Revolta Árabe com os beduínos e ajudou o príncipe Feisal com dinheiro e armas que os ingleses proporcionaram, para que a
revolta não morresse. Lawrence usou estratégias que demostraram como era
habilíssimo e sabia evitar confrontos diretos,atrvés da guerrilha em que tão
bem conduzia os beduínos.
Carga cavalaria Árabe
( http://joanisval.com/2011/03/24/a-espera-de-lawrence/ )
O seu
lema depois de entender a situação e o modo de agir dos beduínos era: "Nenhuma
frente, apenas flancos". Sentia uma paixão enorme pelo deserto, era
capaz de efetuar travessias impressionantes a cavalgar um camelo e a
vontade enorme de cumprir, o que lhe parecia ser, a sua missão. Segundo
todos os biógrafos, foi uma intuição espantosa que teve, quando escolheu um chefe entre os filhos de Hussein, ao afastar Abdalá e
preferir Feisal para um grande desafio, o maior que se podia lançar:
chegar a Damasco!
Lawrence, com toda a visão impôs: Sem forças estrangeiras.
.
T. H. Lawrence
A grande
vitória do príncipe Feisal no ataque a Aqaba, um belo porto e poderoso
forte dos turcos, foi um grande triunfo, que veio provar o êxito de
Lawrence e do que era capaz. Os
ingleses já tinham tentado, por duas vezes, entrar em Aqaba, sem o
conseguir.
Curiosamente, Lawrence passou quase desconhecido na Inglaterra, durante
a guerra. O coronel Lawrence é uma lenda e uma realidade em que é
impossível separar uma da outra. Tornou-se célebre entre os beduínos,
chefes árabes e suas tropas. O exército britânico fez tudo para apagá-lo
durante a guerra, possivelmente, na melhor das hipóteses, para o
proteger. Teve a sua cabeça posta a prémio pelos turcos, mas não sabiam
como ele era e podia passar desapercebido. Numa missão de enorme perigo,
por fim, foi capturado pelos turcos em De´ra.
Fora
mesmo loucamente imprudente e aí se deram horríveis sucessos. Foi
barbaramente chicoteado e submetido a ignóbeis torturas. De novo há a
perplexidade dos biógrafos e críticos. O certo é que a sua personalidade
se modifica nessa altura. Entretanto, os ingleses chefiados por Allenby, é que ocupam Jerusalém.
Estranhamente, o triunfo perturbou muito o inglês com a sua
personalidade tão complexa e impetuosa. Sentia que estava a servir dois
senhores. A sua própria ambiguidade consome-o. Para Max Clos, este ano
de 1918 mergulha Lawrence num desespero que só desaparece quando vai a
caminho de Damasco sob o comando dos ingleses. Vai extremamente
desanimado por ocupar um lugar tão secundário. Não tinha qualquer papel
de relevo nessa operação militar, apenas acompanha as tropas com um
destacamento de um chefe de tribo, Talal, um amigo, com quem já
combatera. Ao chegarem a uma aldeia verificam horrorizados que fora
completamente chacinada. É então que se desencadeia uma tamanha fúria em
Lawrence, que parte em perseguição dos turcos assassinos e recomenda que
"não haja prisioneiros".
Depois
de uma horrenda chacina, só resta convencer Feisal a atacar Damasco, com
as suas tropas sem esperar mais pelos ingleses. Assim o fazem. Lawrence
desobedece aos ingleses comandados por Allenby e, ao entrar triunfante
na cidade ao lado de Feisal, desobedece outra vez!
A
situação é deplorável na cidade, cadáveres, ratos, hospital com os
mortos a apodrecer…
O desespero e a amargura atingem brutalmente o
inglês. Na verdade, sentia-se dividido entre a sua origem inglesa e o
seu entusiasmo pela causa árabe, pelo viver no deserto e por uma
civilização tão distante da sua. Nessa
tarde, Lawrence apresenta um relatório ao chefe inglês Allenby e pede a
sua demissão.
Parte
logo com destino à Inglaterra, com pasmo de todos. O rumo
da vida transformou-se por completo, escrevia a sua obra em retiro, até
que teve ainda mais uma dura prova a suportar. Conforme
descreve Clos "Os quatro grandes dessa época – Clémenceau, pela França,
Lloyd George pela Grã-Bretanha, Wilson, pelos Estados Unidos; e Orlando
pela Itália – ocupados a refazer o mapa do mundo, vêm em Faiçal um
importuno". [84]
Os "quatro Grandes" do tratado de Versalhes
( Pode ver-se nesta foto de 1919, da esquerda para a direita, David Lloyd George, da Grã-Bretanha, Vittorio Orlando, da Itália, Georges Clemenceau, da França, e Woodrow Wilson, presidente dos Estados Unidos. Esses maçadores que assim os interrompiam, não mereciam qualquer atenção tão acérrimas estavam as discussões de partilhas. Como numa herança de família, as desavenças eram cada vez maiores. )
Tudo
corre mal para Faiçal, que é afastado e com ele o seu intérprete
Lawrence. É a humilhação e para o chefe árabe é também a entrada nas
disputas, no aviltamento das suas tropas e na sua, com a expulsão de
Damasco, depois de terem destroçado o seu exército.
Lawrence, aquele Lawrence da Arábia, entusiasmado e triunfante,
desaparecera. Continuava a escrever e a encontrar-se com a mãe e os
amigos. A paixão pela velocidade tanto em corridas de barco, como de
bicicleta ou moto, a velocidade, ainda era a que permanecia. Lawrence já
ficara fascinado quando Feisal trocara seus camelos pelos carros Rolls
Royce, blindados e bem velozes para correr no deserto.
Tornou-se uma lenda e não se podem contar os livros e artigos
que foram
já escritos sobre este herói aventureiro, originalmente tão culto. O
escritor Jeffrey Meyers, encontrou uma lista de 760 livros e artigos
sobre ele, mas não esta lista ainda não é a mais numerosa. Inspirou uma
peça sucesso internacional e um filme conhecido, o épico de
David Lean "Lawrence da Arábia", com o ator Peter O'Toole, que tornou
visível um herói que, paradoxalmente, se queria manter obscuro.
A lenda
continua e, um documentário da BBC sobre Lawrence, por Malcolm Brown,
autor do novo livro sobre esta complexa personalidade, teve dez milhões
de telespectadores logo na sua primeira exibição. [85]
Filme de David Lean sobre "Lawrence"
Entretanto, o sonho da Turquia se tornar num império grandioso
desaparecia no horizonte. As guerrilhas árabes acabaram por enfraquecer
as posições turcas na região da Palestina e Cisjordânica, vindo a
facilitar a ofensiva britânica do General Edmund Allenby (1861-1936),
que ocupa Jerusalém e Damasco, com todo o apoio que teve, durante um
período fulcral, das tribos rebeldes reunidas, que Lawrence organizou e
comandou.
Na
região da Mesopotâmia, os ingleses para tentarem capturar o Iraque,
parte do Império Otomano, mobilizaram tropas que subiram o rio Tigre em
direção a Bagdad mas, após a batalha de Ctesifão, tiveram de recuar até
Kut-el-Amara, onde permaneceram até serem atacados em Dezembro de 1915,
por forças turcas sob o comando do Barão von der Goltz, (1843-1916)
Soldados turcos em treino com armas modernas
Já antes, este alemão, fora encarregado da modernização do exército
turco. O seu sucesso foi já um risco enorme para os aliados, pois os
ataques dos turcos aos gregos, nos finais do século XIX, só tinham
sido travados
pela intervenção de potências europeias.
O Império Otomano era aliado dos alemães e o Barão conseguiu repelir a
grande força britânica.
Se a
cavalaria inglesa conseguiu fugir, já a infantaria ficou prisioneira em
Kut-el-Amara. O cerco durou meses e foi esta a primeira ocasião em a
aviação tentou ajudar um exército, sem ter porém grande resultado. No
final, 23 mil ingleses e aliados hindus morreram no cerco. Em Abril de
1916, 8 mil sobreviventes renderam-se, ficando como trabalhadores
escravos dos turcos, e mais de metade acabou por morrer.
O cerco
de Kut-el-Amara foi o maior desastre inglês sofrido fora da Europa.
Entretanto, já tinham ocupado Bagdad em Março de 1917. O triunfo de Goltz
foi fugaz pois logo depois morreu, havendo suspeitas de envenenamento
pelos "Jovens Turcos". No pós
guerra, de acordo com os tratados assinados, essa região é partilhada
entre franceses, que ficaram senhores do Líbano e da Síria, e ingleses,
que se apossaram da Palestina, Jordânia e Iraque. Os
rastos de crimes de guerra, nessa região, não deviam ser esquecidos ,
como foi o caso dos massacres dos armênios cristãos da igreja ortodoxa.
Muitos
deles simpatizavam com a causa dos russos e foram acusados de
hostilidade ao Estado. O que se seguiu foi um aterrador genocídio que
acabou com muito mais do que um milhão de vítimas. Estes pavorosos
acontecimentos tinham à sua frente uma organização especial, criada pelo
Comité de União e Progresso, que criou batalhões especiais a que se deu
o rótulo de "açougueiros".
Violência anti- Arménia
Eram
formados por criminosos violentos, libertados da prisão, para esse fim.
Note-se que algumas autoridades otomanas como Celal, governador de
Alepo; Mazhar, governador de Ancara e Reshid, governador de Kastamonu,
foram demitidas por não quererem cumprir a campanha de extermínio.
Qualquer turco que protegesse os Armênios era morto. Estes
foram mortos ou deportados sem piedade. A operação, levada a cabo entre
os anos de 1915 e 1917, procurava aniquilar toda a população arménia que
vivia antes no império Otomano. A finalidade dos turcos era acabar com
qualquer vestígio das famílias, da cultura e economia do povo arménio
que vivia na Anatólia.
O grupo
revolucionário, denominados "Jovens Turcos", mandou desarmar os arménios
que estavam no exército e em seguida colocados em batalhões de trabalho,
acabando em seguida barbaramente assassinados. Os
armênios civis, depois de expulsos das suas casas, com o pretexto de os
transferirem para outro local, foram para campos de concentração, no
deserto da Mesopotâmia, entre Jerablus e Deir ez-Zor, onde acabariam por
morrer, de fome e sede, sob um sol ardente.
Durante
a marcha, muitas vezes lhes negavam água e comida e eram brutalizados e
mortos pelos guardas, pelas autoridades e até por "saqueadores" que os
dizimavam. Os que viajaram para a costa do Mar Negro também acabaram por
morrer, muitos deles levados em barcaças e afundadas no alto mar.
Alguns
americanos, missionários protestantes, que viviam no local, tentariam
ainda salvar alguns dos pobres arménios que restavam das marchas da
morte, especialmente crianças órfãs. Outros
grupos étnicos também foram massacrados pelo Império Otomano durante
esse período, entre eles os assírios e os gregos do Ponto. Alguns
historiadores consideram que esses atos são parte da mesma política de
extermínio a que foi sujeito o povo arménio.
Se bem
que a República Turca negue, ainda hoje, esse genocídio, foi o primeiro
holocausto do século XX e a realidade desmente quaisquer protestos
dos turcos.
.
Genocídio Arménio
Há um
denso e sombrio silêncio acerca da "Questão Arménia" da parte da Turquia e
a rica burguesia não quer, de modo algum, recordar que a sua riqueza e
modernidade se devem à destruição das minorias cristãs da Anatólia, sem
que se possam esquecer os assírios e os gregos, minorias que viviam há
séculos nessa região. Não se deveu tal facto apenas à grande guerra,
pois no século XIX já existia um grande ódio crescente aos povos
cristãos. Também não se pode negar que o imperialismo germânico deu o
seu apoio a esta impiedade total para com um povo.
Compreensivelmente, o impacto desta tragédia constitui uma parte
essencial da mentalidade dos arménios. Foi uma tragédia demasiado grande
para que os arménios possam esquecer tais horrores. Quando a
cidade de Alepo caiu na mão dos britânicos, foram encontrados muitos
documentos a confirmar que o extermínio dos arménios foi organizado
pelos turcos. Um destes documentos é um telegrama que circulava dirigido
a todos os governadores:
À
Prefeitura de Alepo: Já foi comunicado que o governo decidiu exterminar
totalmente os armênios habitantes da Turquia. Os que se opuserem a esta
ordem não poderão pertencer à administração. Sem considerações pelas
mulheres, as crianças e os enfermos, por mais trágicos que possam ser os
meios de extermínio, sem sentimentos da consequência, é necessário pôr
fim à sua existência.
Tendo
começado por prender os intelectuais arménios, depois passou a ações
mais violentas por entre a fome e o despojar de todos os bens desses
deportados. Muitos deles não sobreviveriam a isso. Após a guerra ainda
existiu, mas por pouco tempo, a República Democrática Arménia porém
instalou-se a desordem no país, com as disputas territoriais, o poder da
Rússia, a fome e as muitas doenças a que estava sujeito o povo, com a
chegada de mais refugiados que voltavam da Turquia.
Todas as
grandes potências condenaram este genocídio armênio na época, quer sejam
representantes dos britânicos, franceses, russos, alemães, austríacos e
governos que até eram aliados do Império Otomano. Os Estados Unidos,
neutros para o Império Otomano, também condenaram o genocídio armênio e
foram o principal porta-voz em nome dos armênios. Segundo
o testemunho do cientista francês Jacques de Morgan, geólogo e
arqueólogo, que se encontrava nesse território, deixou assinalado que:
Escudo de armas da Arménia
"Não há no mundo um idioma tão rico, tão colorido, que possa descrever os horrores armênios, para expressar
os padecimentos físicos e morais de tão inocentes mártires. Os
sobreviventes dos terríveis massacres, todos testemunhas da morte seus
entes queridos, foram concentrados em determinados lugares e submetidos
a torturas indescritíveis e a humilhações tais que os faziam preferir a
morte.
Foi a
Tripla Entente que tentou auxiliar a Arménia e estabeleceram-se novas
fronteiras e algumas ajudas económicas. Devido à intervenção do Presidente dos Estados Unidos Wilson, este território ficou conhecido
por "Arménia Wilsoniana" (1920). [86]
Eles (os Arménios) não perecerão!
( Expressão gravada na estátua )
De facto, a ação em prol da paz e do reconhecimento da identidade cultural dos povos, foi uma das ações meritórias deste presidente que também procurou libertar quem estava sob o domínio dos russos e dos austríacos e possibilitando a recuperação da nacionalidade que a guerra retirara.
Cartaz de propaganda russo.
( Não foi possível evitar que a Rússia anexasse a Arménia, mais tarde.)
A
escolha do que de melhor historiou e se escreveu acerca destes terríveis
acontecimentos, quer das trincheiras, quer do desenvolvimento das
vitórias e derrotas, não pode ser consensual. Embora
Carl Grimberg prefira a obra de Barbusse, "Le Feu", para melhor
descrever a vida na frente, nas indescritíveis trincheiras, o livro de
Ernest Junger (1895-1988) que foi a seu livro de estreia, surge para muitos como o melhor do espírito que
caracterizou estes acontecimentos, sem tendência para o pacifismo, mas
antes em resultado do eclodir de tantos conflitos que se precipitaram
neste fogo que incendiou o planeta.
Entre os que se maravilharam com a
obra "Tempestade de Aço" de Junger está o escritor francês André Gide.
A sua passagem pelas trincheiras foi traduzida nesta obra, de modo
individualista, com toda a solidão e uma pedagogia que não se podia
ajustar ao espírito germânico posterior. Não é um adepto do
totalitarismo, mas tampouco se pode chamar um democrata, liberal, ou
mesmo existencialista, com grande admiração por Heidegger.
Livro de Ernest Junger
( "Tempestade de Aço" )
Como uma série de vulcões que irrompem em erupção, numa convulsão apavorante, é o seu olhar atento para a guerra que se inicia e logo põe em causa a estimada noção de progresso que afinal não engloba progresso humano. Questionando a "liberdade individual", que parece extinta quando o entusiasmo pela guerra desaparece, remete a análise para o desconhecimento do mal que se ativa e se não reflete onde acaba ou a quem atinge. As reflexões de Junger questionam a impiedade "racional" da guerra:
"Assim
como toda vida, ao nascer, já traz consigo o gérmen de sua morte, também
o surgimento das grandes massas encerra em si uma democracia da morte. A
época do tiro ao alvo, com efeito, já ficou para trás. O chefe de
esquadra que, altas horas da noite, dá a ordem de ataque de bombas, não
conhece mais diferença alguma entre combatentes e não combatentes e a
nuvem de gás letal avança como um elemento natural sobre tudo que é
vivo. A possibilidade de tais ameaças, porém, não pressupõe uma
mobilização, nem parcial, nem geral, mas total, que se estende até a
criança de berço, a qual está ameaçada como toda a gente, aliás, ainda
mais fortemente.
Ainda
haveria muito mais a mencionar, todavia, basta observar essa nossa vida
em seu pleno desencadeamento e em sua disciplina impiedosa, (…) para
pressentir, com um sentimento misto de horror e prazer, que aqui não há
átomo algum que não esteja a trabalhar e que nós mesmos estamos
dedicados, no nível mais profundo, a este processo furioso. A
mobilização total é concluída por si mesma muito mais do que por nós; é,
na guerra e na paz, a expressão da reivindicação misteriosa e
compulsória à qual nos submete essa vida da época das massas e das
máquinas. Assim, acontece que cada vida individual torna-se, de maneira
cada vez mais clara, a vida de um trabalhador e que, às guerras dos
nobres, dos reis, e dos cidadãos, seguem-se as guerras dos trabalhadores
– guerras de cuja estrutura racional e de cuja impiedade, o primeiro
grande conflito do século XX já nos deu uma noção." [tradução nossa]
[87]
Uma
pesquisa de táticas alemãs durante 1918 é facilitada pela mudança
dramática que se abateu sobre a situação no dia 18 de Julho. Até essa
data, a preocupação era com as táticas ofensivas, após essa data somente
com as defensivas. Assim afirma Luderndorff que divide em duas as
estratégias alemãs. Como companheiro de armas e conselheiro, o Marechal
von Hindenburg, que muito admirava e com o qual partilhava uma linha de
pensamento estratégico comum, era um expoente de táticas ofensivas que
tinha tido, até no ataque de Riga nessa primavera, sucessos notáveis
graças a ofensivas em que a rapidez era uma das suas armas mais fortes.
Mas agora a estratégia tinha de ser alterada, já que o rumo do conflito
estava gravemente incerto para os germânicos. Na altura, o povo alemão
depunha toda a sua esperança e expectativas em Luderndorff, pela sua
coragem e inteligência. Tanto ele como Hindenburg eram heróis nacionais,
mas todo o poder concentrava-se no general. Até ao final, mesmo depois
da derrota de Verdun, Luderndorff insistia que a Alemanha não devia
aceitar a rendição, mas sim negociar a paz com vantagens para o seu
país.
Mais
tarde, ao escrever as suas memórias, lamenta a falta de orientação firme
do imperador Guilherme e a fraqueza dos políticos que não se mostraram
estar à altura dos acontecimentos, nem de inspirarem ao povo aquele
espírito e dinamismo de que tanto precisavam. A penúria começava a
ameaçar a Alemanha. De acordo com Grimberg, o governo alemão
transformou-se numa verdadeira ditadura miliar, capaz de manter a
disciplina e a ordem externa, mas não de travar a miséria cada vez maior
e de exercer validamente o poder civil, menos ainda de pôr termo às
perturbações e às dissensões políticas. Ainda citando Luderndorff, a
necessidade de abastecer a Alemanha, depauperada material e
espiritualmente, era imprescindível. O problema era como se poderia isso
realizar-se. O bloqueio era uma arma que desgastava todas as forças.
Quando se relê Remarque, na que foi a sua melhor obra,
não se pode deixar de ficar dilacerado, preso de uma angústia infinita,
um mal sem fim que humanamente torna insuportável a vida dos
nossos egoísmos. O horror do cheiro da morte e da culpa de todos os que
causam possíveis estes episódios tornam a vida e a quotidianidade um
milagre constante. A grande interrogação acerca da vacuidade das nossas
existências surge quando o mal nos aparece com todo o seu cortejo de
loucura, mesmo de longe, o que nos faz refletir na sua banalidade aceite
sem protestos e nos mostra como a indiferença pode ser o anúncio do pior dos males.
Quando não queremos saber o que aconteceu e acontece aos outros, que
futuro teremos diante de nós?
A
vivência da guerra, relatada por quem lá esteve eternidades e pode
contar o inenarrável da vida de recrutas em treinos duríssimos e depois
a lenta derrocada das esperanças da paz, é algo impossível de esquecer.
"A Oeste nada de novo", descreve o choque e o repentino desfazer de
ilusões, o encontro face a face com a morte absurda, com o acaso, o
desespero, o tempo parado, tudo isso jaz na vala que já foi trincheira.
"Perdemos todo o sentimento de solidariedade. Mal nos reconhecemos quando a nossa imagem de outrora cai debaixo do nosso olhar de fera perseguida. Somos mortos insensíveis que, por um estratagema e um encantamento perigoso, podemos ainda correr e matar. (…) Durante mais de uma hora, antes que alguém fale, ficamos estendidos, arquejantes, descansando. Estamos de tal forma esgotados que, apesar da acuidade da nossa fome, não pensamos nas conversas. Só a pouco e pouco tornamos a ser, pouco mais ou menos, seres humanos.". [88]
A terra,
a terra que os esconde, os sufoca, os prende ou os salva. A boa terra
generosa ainda quando guarda os mortos que a batalha desenterra dos seus
caixões. Mortos e moribundos, mortos que escondem os pobres corpos vivos
ainda, procurando um abrigo. A terra que é fogo e negro refúgio, o
último alento é ainda ao lado de um caixão vazio trespassado de
estilhaço de obus. Como é que se envelhece? Jovens, com menos de vinte
anos, já velhos, sem memórias de terem sido moços, sem raízes de um
passados que perderam para sempre. Os outros nunca os entenderão.
"Juventude de ferro" é mais que ilusão, é ironia, é roubar
vidas inteiras, vazias ainda. Não tinham ainda nada, nunca mais terão
nada. Quem os ouviu nunca mais esqueceu. Sempre ouvirão esses gritos dos
cavalos feridos. Inutilmente feridos. Animais belos, nobres, feridos,
horrorosamente desventrados, com os corpos decepados os gritos que ninguém
pode calar.
Matem-nos! Mantem-nos! Ninguém consegue suportar esses
horríveis gritos. Os pobres animais numa agonia durante horas a fio continuavam num
sofrimento sem limites. Os gritos, os dilacerantes gritos. Nunca tamanha
atrocidade se cometeu contra os pobres animais! Nunca
foram humanos tais horríveis gritos!
A violência infinda
"Cruz Azul" - Ajuda aos cavalos
(
http://www.horsetalk.co.nz/news/2011/12/142.shtml )
"Good-bye Old Man"
(Gravuras de Fortunino Matania, que ilustrou muitas cenas de guerra )
Mas não se podia matar! Nem isso é permitido. Pois seria a morte certa e
inútil para quem o tentasse. A última cavalgada dos nobres animais
contra as medonhas máquinas de ferro foi a carnificina mais feroz contra
um animal tão nobre e valoroso como era o cavalo. Bem temiam, antes da
guerra, os franceses essa tragédia, não vendo como podiam os nobres
animais combater contra as máquinas de ferro. Os tanques, os terríveis
tanques de guerra contra os quais tudo parece ser frágil e impotente.
Onde se esconde a humanidade e a condição humana é partilhada? Diante da
imensa tragédia, qual a explicação para uma crueldade sem rosto, quando
os senhores da guerra nem vêm o rosto da morte? Não há vencidos
nas trincheiras, não há vencedores. Apenas homens, que nem querem
combater nem recuar, apenas obedecem, cegos, vazios, só feitos
obediência com vestígios de vida que se move nas trevas, à luz
indiferente das estrelas.
XII - AINDA NÃO. O CAMINHO DE VERSALHES.
.
Fraternidade no campo de batalha
Em Julho de 1918, os Aliados lançaram a sua ofensiva
decisiva. A Alemanha, progressivamente abandonada por todos os seus
parceiros, que foram pedindo a paz, solicitou o fim das hostilidades e
em Novembro foi assinado o "Armistício", que não quiseram tornar em um
pedido de paz, mas sim a suspensão das operações militares durante um
conflito. Depois é que se reuniriam, com vista à realização de
conversações e à eventual celebração de um Tratado de Paz. Terminada a
guerra, os países aliados reuniram-se em Paris na Conferência da Paz de
1919. Uma das mais complexas tarefas, era desenhar um novo mapa
geopolítico europeu, saído do desmembramento dos impérios, das suas
colónias e do Médio Oriente.
Esses
tempos mostraram-se de uma tarefa hercúlea, de diplomacia, de fortes
antagonismos, ganância e muitas represálias que acabaram por esgotar os
esforços de qualquer equilíbrio e consenso que fosse durável.
Versalhes
Nesta
conferência foram aprovados vários tratados, um dos quais foi o de
Versalhes com a Alemanha. Impuseram aos países vencidos as condições
mais humilhantes e duras a que se podia obrigá-los. Com uma indemnização
de tão espantoso valor, os alemães ficam completamente aniquilados.
Também o novo mapa político mundial encontrou gerou descontentamento nos
vencidos e as novas fronteiras eram frágeis marcos de mais uma débil
paz para povos com tantos conflitos e perturbação em todos os aspetos.
A Alemanha ficou com a obrigação de obedecer às condições da restituição
da Alsácia e da Lorena à França, para além das pesadíssimas
indemnizações.
Grandes
territórios europeus ficaram em escombros, pois este continente foi o
mais atingido. Em algumas regiões só restavam ruínas, aldeias, casas,
pontes, estradas, fábricas e os solos esventrados e calcinados. Segundo
David S. Landes, as perdas da guerra foram agravadas pelos erros da paz.
Talvez isto seja injusto e [89]
( …) os
estadistas e diplomatas estivessem manietados por uma herança de ódio e
vingança que deixava pouco espaço para a razão. Podia a França ser
generosa para com a Alemanha? Em 1870, a Alemanha invadira a França e,
após algumas baixas e nenhum estrago no seu próprio território, usara a
vitória para impor uma indemnização extorsiva. Agora a Alemanha tinha
invadido a França de novo, matando mais de um milhão de franceses e
devastando as mais ricas regiões industriais do país, retirando-se assim
que os exércitos aliados ameaçaram avançar em território alemão. Podia a
França perdoar tudo isso? Como calcular tais perdas? Quanto cobrar por
intenções maldosas? E se a Alemanha tivesse ganho?
E o que
dizer das frentes internas? Os alemães não se renderam em 1918,
concluíram um Armistício. Tinham perdido, mas não admitiram a derrota. Os
descontentes e chauvinistas alemães e austríacos gritaram que a
Alemanha tinha sido traída: fomos apunhalados pelas costas. Os vilões
ali estavam para servir de alvo fácil, os Judeus, para começar, também
os socialistas e, melhor ainda, uns e outros juntos."
Feridos Alemães
O título
da obra de Remarque "A Oeste nada de Novo" só toma um sentido perfeito
quando se atingem as últimas páginas, como se fosse o final de uma
tragédia em que alguém lança aos céus o seu grito mudo de desespero.
O
personagem que relata toda a história, tenta desesperadamente salvar um
pobre companheiro, militar como ele, após uma travessia apavorante da
terra de ninguém e consegue, com os maiores esforços, trazer aos ombros
o infeliz amigo. Por fim, ao alcançar um lugar seguro e sente que já
estão a salvo, declaram-lhe que não valia a pena todo o seu empenho. O
amigo estava morto! Paul nem quer acreditar que o seu camarada morrera.
A ironia é que a causa da morte foi o desejo desesperado do seu
companheiro Paul em o querer salvar, pois o tiro que apanhou foi dado
pelas costas, ferindo-o mortalmente. Entretanto, informam Paul,
completamente aniquilado, que a guerra está a acabar e ouve alguém dizer,
"a Oeste nada de novo!!".
Enquanto
se assinava o tratado, o General Foch disse: "Isto
não é a paz. É um
armistício que durará vinte anos."
Assinatura do Armistício (1918 )
Por seu
lado, Erich Von Ludendorff [90] descrevia a sua versão dos acontecimentos, em
forma de vitória moral, com grande desânimo, mas sem perda da altivez
própria de quem tanto lutou corajosamente. Sentia-se traído pelos
governantes, políticos e toda a enorme carga administrativa e de
gabinetes que nada sabia das guerras. É curioso notar que depois de
acabada a guerra ainda havia tropas alemãs em territórios estrangeiros e
que nem um dos vencedores entrou no terreno dos vencidos. Nas suas
"Memórias", Ludendorff revela um caráter e uma mente invulgares,
bastante estranho, reunindo um misticismo estranho com aquele
militarismo, e atributos bélicos que lhe foram transmitidos, a
disciplina e os valores mais elevados, com um amor enorme à pátria e ao
seu povo, que se podem verificar pela desesperada busca, até ao fim, em
conseguir uma vitória honrosa para o seu país. O seu
caráter e reação à derrota manifestam-se:
Depois
de resistir vitoriosamente aos seus inimigos durante quatro anos, o
exército alemão, orgulhoso por alcançar feitos de grandeza sem
precedentes e mantendo os nossos inimigos
[ escreve] longe de nossas
fronteiras, desapareceu num momento. A nossa frota foi entregue ao inimigo. As
autoridades, que não lutaram e ficaram na retaguarda, não perdoaram os
desertores e outros criminosos, incluindo militares, entre eles mesmos e
aos seus amigos mais próximos.
Cuidaram com zelo e determinação no objetivo de destruir tudo
o que era militar. Esta foi a gratidão da pátria para os milhões de
soldados alemães que tinham dado o seu sangue e morrido ela. A
destruição do poder germânico que estes alemães conseguiram foi o maior
crime trágico que o mundo testemunhou. Uma onda abateu-se sobre a
Alemanha, não pela força da
natureza, mas pela fraqueza de um Governo representado pelo Chanceler e
da mutilação de um povo sem dirigentes.
(…) Ante
todos estes acontecimentos, o mundo ficou atónito, não conseguia
acreditar nos seus olhos quando viu o colapso da Alemanha orgulhosa e
poderosa, terror de seus inimigos. (…)
Perdeu as suas colónias. O direito de se defender é-lhe
retirado. O alemão perdeu o direito de servir o seu país no exército. A
sua frota mercante desaparece do alto mar. A sua força industrial está
derrubada, e os fragmentos que restam dela colocados sob controlo do
inimigo. O sustento de 70.000.000 alemães, está em terreno inseguro. Não
têm casa para viver e o que se tornou na população excedente ninguém
sabe. As indemnizações que temos de pagar, estão além do nosso poder. A dívida que a revolução
fez cair sobre nós não termina apenas com essa terrível paz. É um jugo
pesado, sob o qual jaz o povo alemão em cativeiro absolutamente
esmagador (…)
Exaustão do sofrimento
( http://cafehistoria.ning.com/profiles/blogs/1980410:BlogPost:43936)
Erich Ludendorff.
Há uma
guerra civil na Alemanha (…) que oferece um espetáculo horrendo e
desprezível, preenchendo cada coração verdadeiramente alemão de uma
tristeza indescritível e desperta entre os nossos inimigos nada, além
do desprezo. Alemães
que lutaram lealmente por seu país foram entregues pelo Governo ao
inimigo, para servir para o seu triunfo. Essa é a profundidade da nossa
humilhação, que enche de vergonha e desgosto o povo alemão. "Em
vinte anos o povo alemão vai amaldiçoar as partes que se gabam de terem
feito a revolução."
Pensamento e ação destemida e viril de cada um de nós, e ao mesmo tempo,
submissão altruísta e do naufrágio do ego na disciplina nacional, são o
que precisamos. Isso, por si só, pode restaurar nossa dignidade
nacional, cuja recuperação é uma condição prévia do renascimento da
Alemanha. Esse é o primeiro mandamento".
As
palavras de Ludendorff são muito mais do que um lamento. Para além de
toda a desilusão de militar e estratega, vislumbra-se um orgulho ferido
no âmago da sua índole. Se forem lidas atentamente, cada frase
desenvolve um raciocínio que muito tem a ver com o que se irá seguir no
rumo da história da Alemanha. Parece ser a voz de um povo cujo orgulho
não foi derrubado, antes pelo contrário, no meio da derrota já se
proclama a sede de novas vitórias, o apreço pela raça, um sentido do
devir centrado no seu país.
O
renascimento que se promete foi ouvido e não faltaram outra vez vozes
que alimentaram não apenas a prosperidade de uma nação, mas para além da
liberdade, há o espírito de dominação que ficou bem vivo e renascerá com
toda a sua violência. Aproveitando toda a situação, novos senhores da
guerra e do poder incitarão as massas para uma catástrofe. Os sonhos da
paz enterram-se com o Armistício.
"Nos
quatro anos de guerra, o nosso povo fez milagres, deu um testemunho
eloquente da sua força, que habita no dia-a-dia e foi destruído pela
revolução. Uma nação de tais conquistas tem o direito de viver. Que
agora tenha força para se livrar dos grilhões que impôs sobre si
mesma; pode agora encontrar os homens, alegrando-se com a sua
responsabilidade tal como os generais na frente, para conduzi-la, firme
e tenazmente, na vontade do seu objetivo, restaurar a vida nacional e
inspirar com novo entusiasmo e força os homens que, seguido por tudo o
que há de melhor no país, venha unir todas as nossas forças, numa grande
ação criativa. [tradução nossa]
Estão bem patentes já os germes de um novo nacionalismo e vontade de vingança. O que aqui se transcreve, serve bem para entender os anos que se seguiram. A "ação criativa" faz dos anos trinta a época da nova mentalidade fanática e sem piedade. Os alemães nem a si mesmos, perdoaram a derrota! A celebridade que Paul Hindenburg conquistou entre os alemães, levou a que pudesse assumir cargos governamentais que a onda gigante do fanatismo crescente fez cair.
Paul Hindenburg
Então, do outro lado do Atlântico, de Nova Iorque, chegara uma voz que foi claramente expressa através dos campos de batalha encharcados de sangue para dizer: "Guerra. Não mais." . Nunca mais deveriam ocorrer tais desacordos, nunca mais deve haver velhas diplomacias, segredos perversos em que as nações se arrastam até à morte, sem o seu conhecimento ou consentimento. Em vez disso, estabelece-se uma nova ordem mundial (…)
O sonho
de Wilson é excessivamente otimista e sem a noção do militarismo do
outro lado do mar. Era demasiado americano para entender ódios de
séculos, uma mentalidade construída ao longo de gerações orgulhosas da
sua supremacia e altivez. Wilson,
pelo contrário, pensava que se podia esperar uma só a paz douradora e
redentora. Os povos deviam ter entendido o horror da guerra, em vez da
concórdia, só conseguida, a tão alto preço. De
repente, parecia que, afinal, não havia sido derramado em vão o sangue
de milhões de homens, que esta geração seria a última que sofreu, e
nunca mais uma terra se sofrerá tal infortúnio.
Para
centenas de milhões de pessoas, com uma exaltação de fé numa paz
atingida a tamanha custo, chegou este homem, Woodrow Wilson, com a
esperança de que iria estabelecer a paz entre vencedores e vencidos, e
que a nova paz seria uma paz justa.
Entretanto, as tropas dos Estados Unidos manifestavam alegremente a
concórdia obtida, sem as reservas que os aliados da Europa tão
sombriamente acolhiam. As terras devastadas, as cidades e os campos com
tanta população faminta, sugerem que iria começar uma era de extremas complexidades.
Celebrações de Vitória
( http://blogdonata.blogspot.pt/2011/03/historia-fotos-de-animais-na-guerra.htm )
Wilson,
tal como outro profeta, daria às gentes enlouquecidas da guerra, a
ambicionada segurança. Em poucas semanas, seu nome adquiriu um
significado religioso, redentor para, logo depois, ser considerado a voz
da desilusão e do preço de uma vitória sem vencedores. Ninguém
ganhou esta guerra. Os ódios ficaram acumulados, encobertos e esta foi a
guerra que abriu a porta a todos os grandes conflitos mundiais que se
têm seguido. O tratado de Versalhes vinha agora colocar os alemães sob o
jugo dos seus inimigos e, o que ganhara em 1871, perdia completamente.
Wilson
passou a ser detestado em vez de aclamado. O seu idealismo encontrava o
ceticismo geral, quando anuncia os seus 14 pontos. Curiosamente, o
Tratado de Versalhes desagradou igualmente vencidos, vencedores e
observadores neutros. Contavam com a presença de 70 delegados
representando a coligação dos 27 países e a exclusão dos países vencidos
das negociações, o que foi mais uma forte humilhação.
Para os
especialistas independentes, o documento era punitivo em excesso e
distanciado demais da aclamada proposta de catorze pontos do presidente Woodrow Wilson. O
Tratado não satisfez ninguém, nem acalmou os ódios; pelo contrário,
acendeu maior sede de vingança de todos os lados. Clémenceau, o Tigre,
como o chamavam, era dos mais exigentes e queria a província do Reno, de
indústria forte, para evitar um novo fortalecimento do país derrotado.
Irritado com tantas exigências, Lloyd George censurava-o pelas suas
ambições de grande chefe e de homem carismático, como ele se supunha.
Entretanto, os alemães adiavam a assinatura por verem que era um peso
insuportável para a população. O regresso de Wilson, aparentemente
recebido com grande entusiasmo dos americanos, escondia, por trás de
toda a aclamação, um gosto amargo de derrota. O Senado não o apoia e os
EUA não aceitam ratificar o Tratado de Versalhes. Ao mesmo tempo,
verificava que a Liga das Nações pouco significado teria, pois até os EUA
preferiram a política do isolacionismo. Apesar de tudo, a ONU
representará uma vitória de que Wilson
foi vanguardista e tornar-se-ia num
órgão que estabeleceria alguma ordem internacional e evitaria alguns
conflitos, atuando como árbitro nas contendas entre os países. Já não
pode ver nada disso, mas teria exultado de alegria.
Pouco mais viveu.
Ainda recebeu o Prémio Nobel da Paz e tentou unir à opinião pública à
sua volta, mas isso só desgastou o seu mandato, consumiu as suas forças
físicas e adoeceu gravemente, sem nunca mais recuperar completamente. Partira
cheio de esperanças e regressava trazendo no bolso "o ovo da serpente"
e as desilusões de milhões de seres humanos que um dia iriam rebentar. O
sonho da Liga das Nações, mais do que antes da guerra, estava ameaçado
por sementes de ódio, que germinavam alegremente, nos campos de morte e
destruição.
Woodrow Wilson. Presidente dos EUA
Mapa da Europa. 1921.
Nunca se
mobilizaram tantos militares e, dos mais de 42 milhões dos aliados, pelo
menos 7 milhões perderam a vida; 5 milhões morreram em ação ou em
consequência de ferimentos; os restantes dados como "desaparecidos"
depois das batalhas. Os "desaparecidos em combate", ou prisioneiros,
tornam-se num tormento sem fim para as famílias que esperaram, numa
última e vaga esperança. Mais de 3 milhões ficaram totalmente
incapacitados, com mutilações tão horríveis, que melhor seria tivessem
perecido. Não se pode fazer um cálculo do que aconteceu na Rússia, pois
que a sua guerra civil eclodiu em 1917 e somam-se duas calamidades.
Em vez
de "o fim de todas as guerras", nunca o Futuro fora tão negro e
assustador para os mais avisados espíritos. Se a Alemanha foi derrotada,
se o povo tinha também "uma geração perdida", o terreno estava semeado
de dentes de dragão. Os
militarismos, o ódio, a sede de vingança e os nacionalismos ressurgiam
logo a seguir. A ironia da paz era a da fome e do desespero que levava
ao fanatismo, a todos os males dos Cavaleiros do Apocalipse.
Em vez
de "guerra nunca mais", parece que se abriam os portões da era de
todas as incertezas e de todas as loucuras.
O século
XX, ao atingir a sua maioridade, mostrava uma face como nunca antes o
mundo vira tão cruel e mortífera. Era o tempo de se iniciar as loucuras
do fanatismo, das epidemias das doenças, da fome, dos "gulags", do
silêncio dos bons, dos genocídios, da opressão da liberdade de
pensamento, da alienação das massas nas mais diversas formas. A
ciência mostrou a sua face mais negra, a tecnologia escravizou de novo
milhões e os sonhos ficaram aprisionados ou proibidos. A pós-modernidade
quebrou em estilhaços todas as quimeras. A racionalidade abriu as portas
do arcano à irracionalidade que se tornou visível. A descoberta da
desordem veio dar a qualquer norma ou ordem conseguida, uma faceta de
extrema fragilidade. Para onde foi a segurança, se a ambiguidade está ao
nosso lado, se nem a nossa sombra é verdadeira, se o real nos abandonou?
Os
poetas cantam o vazio, os pintores o "nada", os músicos são despedaçados
pelas feras e repetem a sorte de Orfeu enlouquecido. Despedaçaram-se os
limites de tudo. Agora, já ninguém espera. Sabe-se que só hoje estamos
aqui. O resto é a incógnita que nos deixaram. As multidões aumentam mas
paradoxalmente cada vez mais o homem está só. Os
deuses, tão horrorizados com a impiedade dos homens e a sua inimaginável
crueldade, não os suportaram mais e abandonaram-nos.
Quando
os deuses choram, os homens estão perdidos.
Derrota
XIII - A PRÓXIMA ESQUINA
Praça Bento de Góis no início do Séc. XX
( Vila Franca do Campo. S. Miguel. Açores )
Se
alguém passar, uma tarde destas, pela velha praça, poderá encontrar os
desocupados de sempre, os bancos de conversas longas e terá a impressão
que nada mudou. As árvores, as pessoas, as casas e o louvor à coragem
estão lá, lado a lado, sem se cumprimentarem. Para onde foi Lalique,
Bismarck, Arriaga, Isadora? Quem recorda Mersenne, Krupskaia ou Wilson?
Sedan, La Lys, as colónias, nomes ou lugares?
Palavras
vazias, milhões e milhões de mortos, dor, angústia, triunfos, derrotas,
tudo isso, que significado ganham? A história vai ser escrita ainda
muitas vezes, com novos nomes, muitos nomes e ideias.
A
verdade nunca descobrirá vencedores nem vencidos. Mudam de lugar
ironicamente para mal de quem quer captar o âmago dos factos. Há sempre
um jogo de xadrez que vai começar no tabuleiro do mundo.
Entretanto, o rapaz com a prancha de surf regressa para mais uma
banalidade do quotidiano que é real, é verdade, mas ninguém pode
escrever. Na mente
desse rapazinho, há mil sonhos e ilusões. Por certo pacíficos e
comedidos. Ou talvez não.
A
história escreve-se na pele das coisas, por vestígios e por impressões,
pedras sobre pedras, chegamos a um Presente que nos escapa como areia
entre os dedos. O
sentido de tudo? Mas será preciso encontrar um sentido? Milhões de
perguntas quanto ao passado, milhões de perguntas quanto ao futuro. Antes do
rapaz desaparecer na próxima esquina, alegre e carregado de juventude e
dos dias felizes, perguntem-lhe até ver onde pode chegar o passado e até
onde vai o futuro.
Migalhas, muitas migalhas para as pombas de sempre. Palavras sempre
palavras para os decifradores da humanidade.
A todas
as horas aquela praça acorda. Cena aparentemente deserta, mas estão lá
todas as respostas a todas as perguntas. A
questão é que a história é um belo relógio a quem se esqueceram de
colocar ponteiros. O último homem para acabar com o devir há-de trazer
ponteiros. Mas, com a devida vénia a Hegel ou Marx, ou outros mais
recentes, talvez o último homem já tenha passado e nem parou. Ia depressa
demais com o sonho de colocar ponteiros em todos os relógios do mundo e
não apenas neste.
Depois,
diante de um enorme computador numa biblioteca carregada de mil dados,
rodeado de investigadores, de técnicos e de escreventes, o último homem
simplesmente adormecerá.
NOTAS E ELEMENTOS BIBLIOGRÁFICOS
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[90] Ludendorff, Erich von, "Ludendorff’s Own Story", Volume II
© Lúcia Costa Melo Simas (Texto) - Regressar a " Os "Trabalhos e Dias" "
© Colaboração na concepção da página - Levi Malho.
Actualizado em 14. Julho. 2012
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