"O «Barão Vermelho». Enigma e lenda"
Memórias da "Grande Guerra" --- 1
© Lúcia Costa Melo Simas .( 2012 )
Signos do Tempo
[ Vestígio duma trincheira da Grande Guerra. Zona do Somme. Norte de Franca. 2011 ]
© Levi Malho - Imagem digital
O olhar límpido e transparente do jovem que, nas fotos oficiais, parece contemplar serenamente a eternidade, ou nos raros relances da sua vida pessoal, esconde uma lenda e recorda um enigma que nunca se decifrará. Que estranho poder teve este jovem, quase um adolescente, para se tornar no maior piloto de guerra de todos os tempos?
A Grande Guerra, essa guerra que quase toda a gente imaginava que iria ser rápida e sem grandes perdas, devastou a Europa e incendiou o mundo de ódios que não mais se apagaram. Se, nessa altura, surgiram figuras imortalizadas do lado dos ingleses, franceses e americanos, a maior lenda na aviação militar foi o famoso Barão Vermelho, nome pelo qual Manfred von Richthofen se tornou mais conhecido. No seu diário, por mais que se leiam as notas que escreveu, apenas se descortina uma linguagem simples, quase infantil, com um pano de fundo de forte sentido estético, um dos seus mais elevados valores, para além de laços afetivos e familiares entre respeito e fraternidade. Perpassa pelo que escreve, logo que a ocasião o proporcione, um forte sentido de humor e perceção das lutas sem quaisquer resquícios de feroz combatente.
Manfred von Richthofen pertencia à mais velha nobreza alemã. Nasceu na Silésia, em Breslau, hoje território polaco, a 2 de maio de 1892. Seu pai, um prussiano militarista Albrecht Karl Freiherr von Richthofe pertencia às altas patentes militares, tinha já uma irmã Elisabete, que foi enfermeira durante a guerra e dois irmãos mais novos, Lotar e Karl Bolko que também entraram em combate. Depois de nove anos de estudos, o pai, sem o consultar, diz ele no seu diário, colocou-o na Escola militar de Cadetes. Tinha então apenas 11 anos pelo que se deduz que já tinhas aulas por volta dos 3 anos de idade com tutores e mestres particulares. Bem cedo começava a sua educação militar, mas sem que revele apetência forte pelas disciplinas. Apenas as aulas de ginástica e tudo o que fosse ação parece que o motivavam fortemente. É ele que assim se descreve, como um aluno que trabalhava apenas o necessário para passar, sem muito se esforçar por isso.
Já noutros aspetos, Manfred Richthofen relevou melhores dotes, porque se coadunavam com a sua personalidade. Uma ligação muito forte a tudo o que fosse a natureza, com as florestas, o campo, os cães e os cavalos, tudo isso, que podia dar uma impressão de liberdade é o que se capta do que escreve. Por isso, em equitação, caça e todos os treinos a que foi submetido demonstrou ser muito dotado.Era um exímio cavaleiro e entrou em diversas competições equestres com figuras ilustres e da aristocracia. Quando a guerra começou, pertencia já ao Regimento da Prússia Ocidental, que era uma unidade de cavalaria. Depressa se apercebeu que o morticínio de homens e animais era horrível e condenado ao insucesso, por causa do arame farpado, das barreiras, das metralhadoras e armas pesadas das novas técnicas que tinham muito mais força. Passou por diversos episódios horríveis, com a alegria de ver uma vez, regressar um seu soldado, sem o cavalo e um só sapato. Era a matança dos pobres cavalos que começava algo arrepiante de ver nos campos de batalha e nas trincheiras. Por isso, aceitou ir para a equipa de Oswald Boelcke, que Manfred considerava um grande herói da aviação e de facto era uma celebridade na época, quando o encontrou à procura de mais aviadores para o seu grupo.
No início, fez apenas voos de observação e de reconhecimento dos campos inimigos, mas depressa passou a uma ação mais perigosa nas mais distantes missões sobre a Europa, como se os céus fossem seus em completa liberdade, cada vez mais ousado e confiante.
Muito novo ainda, comprara um cãozinho pelo qual tinha a enorme estima. Chamou-o Moritz e a sua admiração por esse belo animal, do qual conhecia os progenitores, uns esplendidos exemplares, levou-o a considerar que um cão podia ser o que de mais belo há em toda a criação. Dizia que bem valia os 5 marcos belgas que pagara por ele. O cão ia com ele para toda a parte e até dormia na sua cama. É claro que o treinou muito bem. Nunca o abandonou quando estava em manobras. Porém mês a mês, Moritz crescia e não já não era aquele cãozinho de colo, como Manfred esperara, mas um cão colossalmente grande e esperto. Richthofen ganhou seu primeiro combate aéreo sobre Cambrai, França, no ano de 1916, depois de ser escolhido para a elite de aviadores, no grupo de observação e caça.
Foi ele um dos primeiros a pilotar um triplano Fokker, que estreou nas frentes de batalha no outono europeu de 1916. Nessa altura, morreu Oswald Boelcke com enorme pesar do Barão Vermelho que tanto o admirava e que queria ultrapassá-lo no número de 40 aviões abatidos. A maior parte das vezes voava nesse pequeno aparelho de caça, no qual a flexibilidade e a velocidade de decolagem eram sua principal vantagem. O problema era o risco de seguir um inimigo e então não tinha mais hipóteses face a outros que aparecessem. É lenda ainda que era muito supersticioso. Tornou-se hábito nele dar um beijo em alguém que lhe fosse querido. A superstição, que de algum modo era uma maneira de superar o medo, espalhou-se entre os outros aviadores.
Uma vez quis levar o cão consigo num dos seus voos. Lá foi Moritz, como seu primeiro observador e comportou-se muito sensatamente. Interessado em tudo o que se passava à sua volta, o cão podia ver o mundo lá de cima. Apenas os mecânicos ficavam aborrecidos depois por terem de limpar a máquina. Mas Moritz atraia todos pois era muito alegre e gostava muito de jogar ao bilhar. Com isso, destruía muitas bolas e particularmente muitos panos de bilhar. A grande paixão do cão pela caça era bem vista pelos seus mecânicos dos aviões, muito satisfeitos com suas inclinações desportivas pois, para eles, era muito agradável que ele apanhasse umas boas lebres. Não era essa a opinião do dono que, sem aprovar as tendências de caçador, lhe dava uma boa surra quando o apanhava a caçar.
Este enorme cão tornou-se num molosso, capaz de derrubar qualquer um. Richthofen, uma vez, deixou um aquartelamento para arranjar, quando partiu em serviço, e ficou surpreso ao voltar por ver que nada tinha sido arrumado. Irritou-se com isso, pois quem teria essa tarefa eram uns prisioneiros franceses, mas quando Manfred Richthofen abriu o portão, saltou de lá alegremente e desatou aos pulos o enorme cão. Então riu-se muito, pois já percebia porque não se tinha arrumado a improvisada caserna e porque um só prisioneiro francês lhe apareceu com uma cara aterrorizada.
Moritz detestava os russos, vai-se lá saber porquê, e suportava mal os franceses. O cãozarrão, que só era manso para o dono, apanhou o hábito de correr atrás dos aviões como se fossem aves de caça, quando estes levantavam voo. Era uma brincadeira extremamente perigosa! Isso aconteceu muita vez, até que um dia a hélice lhe cortou uma orelha. O cão uivou horrivelmente e ficou para sempre com uma só orelha, e sem o mau hábito de ir correr atrás de aviões.
O jovem prussiano, disciplinado, corajoso e inteligente, que fora um exímio caçador nas propriedades dos pais, ia ser um caçado famoso nos céus da Europa. Observa porém que, de acordo com o pai, se tinha de distinguir muito bem entre um desportista e um assassino, mesmo quando se tratava de caça.
Por isso, nota alguma tristeza e desagrado quando, o seu irmão, Lotar, depois de um duro combate em que abateu dois aviões inimigos, mostra um certo modo de olhar triunfante que o desgostou. Não era assim que via um inimigo, o respeito por ele, mesmo vencido, devia manter-se. Seu pai também era muito corajoso e de grande generosidade, Salvou um soldado das águas geladas de um rio e por isso ficou surdo. A Mãe e a irmã cuidavam dos feridos. Isso era um das mais pungentes tarefas, de consolar moribundos, aliviar dores de corpos despedaçados, de atender aos gritos dos que enlouqueciam, ou morriam com os pulmões despedaçados, em vómitos, por causa de terem sido gazeados.No meio de um verdadeiro inferno que se vivia por toda a parte, Manfred era muito metódico e preparava sempre cuidadosamente cada ataque, segundo regras e planos programados. Seguro de si, é verdade, o Barão Vermelho nunca teve para com os inimigos, prisioneiros ou não, qualquer sinal de rancor pessoal ou via a guerra como algo que lhe retirasse a elegância da aprimorada educação recebida ou nunca teve falta de dignidade e lealdade para com os adversários.
Foi nesta guerra que ainda se viu cumprir com dignidade o código de honra e admiração mútua dos combatentes. Mesmo que não fosse regra geral, não houve mais exceções no seculo XX. Por tudo isso, tornou-se numa lenda e num mito, com tal fama que até era admirado pelos seus inimigos. Foi um forte incentivo para a luta contra os alemães que, por seu lado, viam nele a coragem personificada. Antes de morrer, enquanto estava em convalescença, por ter sido abatido e ferido, ainda conseguiu escrever um livro, a sua autobiografia, "Der rote Kampfflieger", que também foi traduzido e publicado na Grã-Bretanha com o titulo de "A Batalha do voador vermelho" acerca dos seus combates e cuja edição se esgotou várias vezes em pouco tempo. O seu método de combate era muito exigente e tinha por base a “Dieta de Boelcke”, com um conjunto de regras importantes tanto para o esquadrão voador como para o sucesso pessoal.
Nada como um herói para exaltar a fantasia e elevar o moral das tropas. Ainda obteve as mais altas condecorações na Alemanha, antes de ser atingido pelos inimigos no seu caça Albatroz que o faz sentir-se livre e leve como um pássaro.
Foi com o seu avião, Fokker nome de quem o construíra, escandalosamente pintado de vermelho, para atrair os inimigos e para os desafiar que circulava no céu e se tornou numa lenda. Foi ele que declarou desejar ser assinalado pelos inimigos e por isso era só o seu avião que foi pintado de vermelho." Um belo dia, eu tive a ideia de pintar meu avião de vermelho vivo. O resultado foi que absolutamente todos passaram a conhecer meu pássaro vermelho. Por sua vez, meus oponentes também não estavam completamente desavisados." (1917).
Também lutou em conjunto com os companheiros no chamado “circo infernal” e era o comandante dessas missões que em abril de 1917 causaram um verdadeiro terror aos aliados. Da França e ao Reino Unido sem esquecer os italianos, os russos, os australianos, os portugueses que já sabiam também da existência da lenda do valente aviador, o Barão Vermelho. Uma vez aprisionaram vários desses aviadores que não morreram no derrube dos seus pequenos caças, e um deles referia-se aos seus capturadores num rumor de haver uma jovem aviadora no meio dos pilotos alemães. Era um boato que corria e até lhe chamavam a nova “Joana d'Arc " ao lado dos prussianos. O aviador mostrava grande interesse em saber quem era a aviadora que usava o seu aparelho pintado daquela cor. A opinião corrente é que tinha de ser uma mulher. Ninguém aceitava que fosse um homem pois parecia que só uma rapariga teria a ideia de ter um avião pintado de vermelho. Richthofen ouviu tudo, calado e extremamente divertido. Disse-lhe então que a tal jovem que todos imaginavam, era ele, aquele estava mesmo ali, na sua frente. O aviador não queria acreditar e ficou espantado por ver pessoalmente quem pensava que afinal era uma extravagante jovem alemã.
O Barão vermelho também foi conhecido pelo Diabo Vermelho, “Le Petit Diable”, ou “O Cavaleiro Teutônico da Era Moderna” e ainda “Nobre Inimigo de Coragem e Destreza” pois todos os aliados não lhe atribuíram o mesmo nome. Cerca de um ano antes da sua morte, Manfred foi ferido com muita gravidade. Ainda assim, conseguiu efetuar uma aterragem perigosíssima sem ser em terreno inimigo, mas os ferimentos foram muito graves. Ele contou esse combate e descreve que, de repente, se apercebeu que estava a ser atacado por trás e adivinhou bem o perigo, logo a seguir, sentiu uma forte impressão por trás da orelha esquerda, ficou paralisado, sem consciência e cego por alguns momentos, porém, mesmo assim, conseguira recuperar o controlo e pousar de emergência num campo sem risco de maior.
Depois foi submetido a múltiplas cirurgias no crânio para remover lascas de ossos na área atingida, o que era muito doloroso e obrigou a operações muito delicadas. Infelizmente, na guerra, os médicos podiam ter casos tão difíceis que a medicina evoluiu. Teimou em voar, contra as ordens do médico, antes de acabar o tempo de convalescença. Mas teve de retornar a casa por uns dias e pode dizer-se que, apesar de continuar a luta, infelizmente nunca mais foi o mesmo. O Barão Vermelho era bastante inteligente para perceber que a guerra estava condenada ao fracasso. Compreendia já que a Alemanha nunca conseguiria vencer a guerra, com um povo que nem Ludendorff conseguia abastecer e isso também tornava-o mais sombrio, e cada vez mais inquieto, taciturno, sem o seu sentido de humor habitual.
O ferimento deixou sequelas graves, pois passou a ter horríveis dores de cabeça, e todas as vezes que voava tinha náuseas ao voltar a terra. Segundo se diz, parece que isso lhe afetou o temperamento pois passou a ter crises de distúrbios de humor. Fez então diversas viagens para elevar o moral dos alemães ao mesmo tempo que se restabelecia para retomar o combate. Mesmo que a sua agressividade fosse extrema e tivesse passado de caçador das florestas para a de seres humanos, o seu sangue frio e altivez eram firmes. A aviação, para quem gostava tanto da caça e de liberdade, ao transformar-se em arma que consegue abater um alvo, similar a si mesmo, no caso de nem ser só humano nem máquina, atinge uma situação que deixa de parecer ação de guerra e muito mais um verdadeiro desafio levado ao seu máximo limite. Abater ou ser abatido. Vencer ou ser vencido. Mas nunca sem perder o respeito pelo inimigo pois se pode verificar que homenageia os aviadores abatidos e deseja as suas melhoras quando escapam à morte. Chegou a enviar uma caixa de charutos a um oficial que estava no hospital e ele derrubara.
O vestuário adequado para pilotar um avião quase só de fogo e aço, era bem complicado e com todo o rigor. Também o ruido do aparelho no ar devia ser terrível e ensurdecedor. Assim, a realidade ficava para trás, face ao contexto em que se travavam os combates. Até que ponto tal ação se coloca entre o desporto e a guerra? Segundo o que descrevia, sentia-se como que um pássaro, leve, tal qual um albatroz, mas sem asas, com uma liberdade de movimentos extraordinária que nada tinha de parecido com um grande avião, que só serve para transportar toneladas de um lado para o outro, mas sem a liberdade que o caça dava. Parece mais que o Barão Vermelho, com o seu avião, da cor do sangue e da morte, era um desafio vivo que levou a guerra ao seu último limite.
Sem tocar as mãos na terra, nem sentir o cheiro fétido das trincheiras, do horror dos mortos e moribundos, nem o jogo sujo e desesperado de milhares de homens na lama, comandados por chefes invisíveis, que não vêm nem sentem sofrimento, o Barão vermelho a sulcar de morte os céus foi um caso único em toda a história da aviação.
A lealdade e a igualdade de oportunidades aumentavam o desafio, que ele devia imaginar cada vez mais como algo particular, sem ter nada a ver com o derramar de sangue, a dor e corpos despedaçados dos campos de batalha. Uma corrida nos céus, na maior solidão, juntando a máquina e o homem numa só peça para viver ou morrer juntos. Ainda por superstição, os aviadores não gostavam de serem fotografados antes de voar. Por azar ou acaso, a última fotografia de Manfred assim foi tirada enquanto brincava com o seu cão, Moritz, antes do seu último voo.
Já tinha derrubado 80 aviões, quando foi ferido pelas costas, a 21 de abril de 1918, por um piloto cuja identidade não é segura. Depois, os soldados australianos dispararam do solo e o Barão Vermelho tombava para sempre em Sailly-le-Sac em França. Pouco faltava para acabar a guerra e ia fazer apenas 26 anos! Talvez por isso tudo, e por um respeito que só os heróis merecem, os aliados, mesmo sendo um inimigo alemão, resolveram honra-lo com um enterro,
com todas as honras militares que o seu exemplo merecia. No seu caso, há quem afirme que “a morte não é uma imperfeição mas um triunfo.” Mais tarde, acabada a guerra, teve um funeral com a família já em território da sua Pátria.
O seu nome, não pode ser recordado pela ferocidade, nem pela agressividade, mas acima de tudo por ter elevado a guerra a combate leal e inteligente, divulgando o seu método a todos e sendo talvez o último cavaleiro dos céus, aquele que as Valquírias nos seus corcéis alados levaram para Valhala, para habitar a Eternidade só digna dos grandes heróis.
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