"Charles Dickens"

  •  Ontem e Amanhã

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2012 )

 
 
 
 
 
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    Memória dos Ventos

[ Cordas de amarração dum barco em dia deSol. Afurada. Vila nova de Gaia. 2009 ]

© Levi Malho - Imagem digital

         


                 

                

 

O mágico contador de histórias que foi Charles Dickens, passados que são duzentos anos do seu nascimento, guarda a mesma atualidade. Uma só obra sua é já um ponto de partida para mil considerações sobre um escritor que não se pode chamar intelectual, erudito ou popular sem cair em reducionismo. Há mil facetas a estudar e em todas elas nos consegue surpreender, sempre que o visitamos.  

 

 

 

 

 

 

Ainda que vivesse num século, que se diz ter sido relativamente pacífico, os tempos eram de mudança nas cidades e campos da velha Inglaterra. Era a revolução industrial, antes do século de guerras e carnificinas aterradoras que foi o século XX. Agora a revolução tecnológica é a ameaça para uma imensidade de seres humanos.
     É inútil falar de “tempos difíceis” somente como um romance. Todos os tempos são difíceis, dependem só do local onde se está. Em “Duas Cidades, um amor”, Dickens aventura-se no romance histórico e começa por escrever:

“O melhor e o pior dos tempos, a era da sabedoria e a era da loucura, a época da fé e a época da descrença. A era da primavera da esperança e o inverno do desespero, tudo nos era prometido e tudo nos era recusado”

 

  

 

 

 

    À semelhança da revolução francesa veio a revolução industrial e agora a tecnológica que temos diante de nós com parecenças flagrantes, só que as luzes e sombras nos podem confundir. A transformação social e económica foi brutal só que agora esta globalização atinge o mundo inteiro com uma rapidez alucinante. Pelo contrário, o desenvolvimento da máquina a vapor levou 200 anos! David S. Landes (2001) fala no mundo ter soltado as amarras e diz “A máquina independente funcionou, mas a aristocracia permaneceu”.
    Parafraseando Landes, a tecnologia funciona na globalização mas as pessoas flutuam na incerteza. Tudo passou a ser a prazo e a prazo curto. A angústia de andar à deriva é a de não poder ter certezas, de ser muito flexível face a todas as eventualidades, emprego, família, filhos, amigos em rede, laços fracos e mutáveis.  
    As fronteiras caíram, a miséria cresce lado a lado com a riqueza, os palácios erguem-se e o amontoado de gente sem-abrigo, nas ruas, nos parques de estacionamento, por cada portão mais tranquilo, que ninguém sente vontade de ver, em cada noite aumenta. A noção de “homem lixo” servia para falar das massas dos operários, homens, mulheres e crianças das cidades industriais, é agora o anátema de todos os que não são bons consumidores, que estão condenados à miséria e com um fim de vida mais do que degradante. As cidades fantasma nos EU, como por exemplo Detroit, repetem-se tal como após a corrida ao ouro. No interior da China algo semelhante começa a surgir, com hotéis e centros comerciais prontos para longas filas de ruas fantasmas, com casas e apartamentos, sem moradores nem serviços, tudo em franca degradação.
    Aumenta imenso o risco de entrar em certos bairros, nos quais nem a polícia se atreve a espreitar. O ataque a idosos, doentes, fracos ou sem defesa, vulgariza-se. As ruas deixaram se ser locais tranquilos de compras ou de passeios serenos. Meninos transformam-se em pequenos bandidos, mendigos ou vagabundos, um flagelo em tantos lugares.
    Para além dos personagens que, pela pena de Dickens, estão sempre vivos, o cenário em que se desenrolam os seus romances, denuncia uma realidade confrangedora de miséria das cidades e os antros em que viviam seres humanos brutalizados e reduzidos quase a meros autómatos, à beira da doença e da morte.
    Porém havia esperança de debelar tantos males, as vozes de protesto veementes tinham ecos favoráveis, como foi o caso do aviso denunciador de Dickens.
    O nosso futuro é visto com crescente angústia e insegurança, onde quer que se viva. Há como que um retrocesso civilizacional, a arte perde o sentido, a religião não responde à angústia do homem, a ciência não tem já a sua áurea otimista, a tecnologia é a inimiga de quem tem um emprego e a mudança económica bem pior para o comum das gentes.  

 

 

Dickens, (1812 - 1870) nasceu em Moure, aí passou a sua primeira infância, foi para Kent e por fim a família mudou-se para Londres. Por causa dos erros do pai, a sua grande família perdeu o seu poder económico e passou para a mais profunda miséria, num sombrio bairro londrino, para onde os pais se mudaram para sobreviver, vivendo em modestos quartos alugados. Mas a degradação ainda ia aumentar. O pai, por ser um funcionário perdulário, encheu-se de dívidas. Os adorados livros, de que Dickens tanto gostava na sua infância, foram vendidos e, com eles, todos os bens familiares. Finalmente seus pais foram presos na cadeia para os devedores. Com pouco mais de dez anos, uma criança ainda, o pequeno Charles Dickens teve de trabalhar numa fábrica de sapatos, com um salário baixíssimo, com o qual tinha de sustentar toda a família que permanecia na cadeia onde também ele pernoitava. A vida nas prisões foi uma experiência terrível que nunca mais esqueceu.
     Ao trabalhar, ainda na infância, para sustentar a família, Dickens penetrou na multidão assustadora e anónima que era uma novidade inquietante em Londres, com um quotidiano em que culpados e vítimas se confundiam. A vida de Dickens cruzava-se com os prisioneiros, os mendigos, os vagabundos e esses pobres operários da fábrica, alguns crianças como ele, onde continuou a trabalhar, mesmo depois de os pais saírem da cadeia. Esse facto feriu-o dolorosamente pois foi por teimosia da mãe que lá prosseguiu. Além da vergonha que sentia, mesmo que o pai ficasse resignado e sereno, Dickens declarava que a estada na prisão “quebrou o seu coração e não deixava de corar por isso”.
    A saída da prisão relacionava-se com uma pequena herança que o pai recebera. Dickens pode assim estudar e depois trabalhar numa firma, onde poderia seguir a carreira de advocacia, o que recusou, talvez por conhecer bem os bastidores da Lei, dos Tribunais e firmas de advogados, mais ou menos inescrupulosos, essa multidão insaciável que se alimenta da desgraça alheia.
     Estes acontecimentos deixaram-no para sempre muito sensível para com os desamparados, especialmente as crianças, que são personagens quase constantes nas suas obras. Órfãos, meninos ladrões, prisioneiros de algozes cruéis que os industriam no roubo, como descobre com espanto o infeliz órfão que se revela em Oliver Twist ao chegar a Londres.
    Por vezes, são caricaturas de realidades bem vivas na sociedade exploradora da enorme massa humana, amontoada nas sombras das cidades. Os tenebrosos e perigosos bairros de East End tinham as suas quadrilhas de gatunos que aterravam e oprimiam os mais fracos.

 

 

 

A sua fama nunca se apagou e cada vez se estendeu mesmo para além do seu país.
     Casou aos 24 anos, em 1836, com a jovem escocesa Catherine Hogarth de quem teve dez filhos. Um ano antes já tinha começado a publicar os seus famosos folhetins acerca do senhor Pickwick, do seu clube  e dos seus numerosos amigos.
    Dickens cedo se tornou conhecido como jornalista e novelista. A sua fama nunca se apagou e cada vez se estendeu mesmo para além do seu país. Antes apaixonara-se pela bela filha de um banqueiro, Mary Beadnell, mas sofreu uma forte desilusão amorosa pois, a família não o considerou à sua altura e ela afastou-se. O jovem Dickens levou um ano dolorosamente ferido sem conseguir esquecê-la. Um encontro de ambos, muito mais tarde, demonstrou que sempre a recordava e sentia a dor da sua perda.
    Era um escritor muito perspicaz, capaz de transformar as suas vivências e os seus obstáculos pessoais em objetivos. Teve a capacidade de analisar profundamente as pessoas e locais e a experiência deu-lhe um conhecimento da condição humana, das feridas morais, da generosidade dos simples, da hipocrisia e corrupção social. Encontram-se profundos traços da sua vida em muitas das suas obras.
    Com o tempo, o casamento e a sua situação familiar deterioravam-se, o apego à esposa diminuía, para mais com os seus dez filhos, os ânimos eram muito pouco serenos. Georgine, irmã da esposa, mudou-se então para a casa dos Dickens para ajudar a cuidar das crianças, mas deu azo a rumores de infidelidade que podiam dar escândalo. O divórcio era altamente reprovável com a notoriedade alcançada seria um grande desastre. Deu-se apenas a separação. A causa porém seria Ellen Ternan, uma atriz que Dickens conheceu pois muito gostava de teatro. Ellen permaneceu junto dele, na sombra, até ao fim da vida de Dickens.
    A sua generosidade para com familiares e amigos era famosa, porém teve sempre o cuidado de não empobrecer pois nunca se esqueceu da infância. Ao voltar de França, na companhia de Ellen Ternan, teve um acidente ferroviário do qual nunca mais se restabeleceu por completo.
    Desde jovem que lhe dava muito prazer ler, em voz alta e expressiva que muito valorizava o texto da obra que escrevera, para grupos de familiares e amigos. Conseguia que as pessoas chorassem ou rissem desabaladamente. O pior é que ele também se exaltava, ria e chorava. Isso pode ter contribuído para lhe esgotar as forças e ser a causa do acidente cerebral que sofreu e depois lhe causou a morte.
    O “Dickens World” compõe-se de uma galeria de personagens que representa os retratos mais fiéis, da multidão que se espalhava pelas cidades, aldeias e campos de modo a se tornarem imortais e com nome tão célebre como o do seu criador.

 

 

 

                    Dickens e a época vitoriana

 

 

 

 

The Strand, Looking Eastwards from Exeter Change, 1824, by Caleb Robert Stanley © Museum of London

 

 

    

 

 

 

 

    Se Charles Dickens escrevesse hoje teria a mesma popularidade que teve?

    O seu estilo, adaptado a esta sociedade, não deixaria de ser irreverente, sarcástico, carregado de críticas mordazes, temperado com poesia e ternura, teriam a mesma originalidade que nos cativa. Não teria é o cinismo e a frieza da narrativa nem a falta de ideias que se notam no vazio das obras de hoje. Os seus excessos de romantismo, com toda a ternura de diálogos vivos, carregados dos sentimentos mais fortes dos personagens não nos deixam indiferentes logo que nos situemos no seu contexto. Muitos dessas narrativas eram para serem declamadas e ouvidas por grupos de amigos e familiares para além do seu grande público.

    Dickens teve a oportunidade de descrever os meios londrinos mais variados pois conviveram com várias classes sociais. Na adolescência lidou com presos, operários, meios sombrios e degradantes, passou por uma firma de advogados, conviveu com a burguesia endinheirada, jornalistas, escritores e teve ainda a oportunidade de conhecer a América, onde chegou a ir com a esposa, e também visitou alguns países europeus.

    Provocador e terno, por vezes em excesso, examinou com escopro brilhante uma sociedade onde os imperativos morais e religiosos se moldavam aos económicos e financeiros de uma sociedade doente onde as virtudes eram raras.

    Começou por publicar romances em folhetins mensais. Os primeiros sucessos foram com “As aventuras do Senhor Pickwick” que levaram algum tempo a conquistar o público. Depois de superar as dificuldades de entrar no mundo pickwickiano, a obra diverte, comove e até se afirma que ninguém pode se dizer um bom leitor sem conhecer esta obra. 

 

 

 

 

Mr. Pickwick Addresses the Club

 

 

 

                                       

    O bom criado Joe, que o personagem Mr. Waller tanto estima, é que sofria da doença que depois tomou o nome de pickwickiana e nada tem a ver com o senhor Pickwick. O que era a descrição de um personagem cómico mudou para conhecimentos médicos. Obesidade, pele azulada e apneia do sono foi o que o médico Burwell em 1956 detetou nos seus doentes. Agora já não é a humorística descrição de Joe mas algo patológico. “Hipo ventilação alveolar no obeso”. Mas antes já a moda criava o estilo pickwickiano, com clubes, trajes e outros assuntos em consequência da popularidade da obra. São muitos os personagens que, no encaixe dos episódios, surgem no fio narrativo e tornam-se nossos amigos que no final se têm pena em deixar. A crítica social é bem acesa e não faltam alusões à prisão, aos advogados aldrabões insaciáveis e denúncia da hipocrisia e injustiça social.

    Outro romance onde o dualismo entre o bem e o mal é manifesto cruelmente, é “A loja das Antiguidades” passado nos bairros pobres da capital e em deambulações pelo campo, com a loucura do jogo, a ganância e agiotagem. A figura da frágil e pungente “Little Nell”, com o seu desvelo ilimitado pelo seu pobre avô, um desgraçado jogador compulsivo, numa fuga cada vez mais desesperada no terror da perseguição dos seus inimigos, causou as mais fortes reações por tanto sofrimento. Muitos não quiseram tornar a ler o livro, ou deitaram-no fora tal a dor causada. Conta-se que um leitor o atirou mesmo pela janela fora do comboio onde viajava, sufocado pela angústia que a pobre jovem do romance lhe causara.

    Com menor sofrimento, o personagem Pipp, em “Grandes Esperanças”, vive na enorme ilusão de ter uma rica e generosa benfeitora numa dama de quem julga receber apoio e que o incita a amar a desdenhosa e fria Estela. Afinal, descobre que a velha senhora só pretendia vingar-se dos homens e causar sofrimento aos jovens, por ter sido abandonada no dia do casamento.

    Os conflitos psicológicos de humilhação e gratidão, de rancor e de desespero adensam-se no decorrer da vida dos personagens. Mas a gratidão pelo oculto benfeitor, que afinal era apenas um pobre degredado que o pequeno Pipp ajudara na infância, acaba por vencer. Muitos traços da sua vida projetam-se nesta obra com fundo ético convicto de caracteres e situações.

 

 

 

 

 

 

 

    De novo, em “Little Dorrit”, surge a prisão de Marshaslsea para os devedores, a mesma onde a sua família estivera prisioneira e onde coloca a família da personagem que aí nasceu e vive podendo, tal como ele, entrar e sair livremente. Para além de digressões ao estrangeiro que nada acrescentam à obra, os personagens são caricaturas da hipocrisia e preconceitos sociais. Da vida quotidiana na cadeia à classe média, ao ambiente de jogo e prostituição, Dickens retira uma visão transversal da sociedade londrina com muito humor e intricada sátira.

 

 

 

 

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    Conquistando o público para ler o que não queria, mas estava sob os olhos incrédulos, obteve tal fama que nem as fronteiras barravam O gosto criado pela expectativa de ler a continuação das narrativas era tal que, na América, parece que a multidão se reunia no cais à espera do navio que trazia os folhetins de Dickens. O paralelismo entre as telenovelas e estes folhetins demonstram como o gosto popular pela luta entre o bem e o mal, humor e a esperança são de todos os tempos.

O contraste entre o real e o mundo imaginário de Dickens revela-se melhor nos seus imortais contos de Natal, entre os quais se pode incluir “O Grilo da Lareira” pela intensa ternura e magia com que a metáfora da cegueira do amor surge duplamente.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

    O sinónimo da avareza será o seu imortal Ebenezer Scrooge, depois metamorfoseado no Tio Patinhas da atualidade. Esse Scrooge que, por milagre de Natal, se transforma em benfeitor generoso é um mito que coloca esperança nos corações amargurados e sedentos de mudanças de valores. Assim há uma intenção ética em toda a estética que conferem múltiplos sentido, à sua escrita.

    São obras em que o estilo é o próprio Dickens que se revela, na linguagem descritiva e na vivacidade dos diálogos que poderiam ser ridículos se não estivessem sob um manto de ternura e de bondade. A estética da prosa poética eleva-se a uma musicalidade que vem das coisas, com a chaleira que chia, o quente crepitar da lenha, o relógio de horas mansas e o grilo da lareira que dá o nome a um dos contos mais carregados de ternura onde, nem por isso, a maldade cruel aparece menos visível na figura do rico burguês Tackleton, “o homem duro, frio insensível, de rosto hediondo” que é capaz de lançar a suspeita na casa onde a pobreza não roubava os afetos. Caleb e sua filha, a cega Berta, são as vítimas de uma sórdida trama, enquanto Dorothy e John ultrapassam o melodramático da época pela harmonia de um ideal que Dickens não deixa de sonhar. A metáfora da cegueira é bem explorada e a dialética entre o mundo imaginário que tanto deseja e a realidade brutal dos factos torna-se um contraste que dificilmente se equilibra.

    Os seus personagens são milagre de Natal numa oferta de um mundo ideal. Fez as delícias das crianças através de formas e técnicas novas para a época. Para além de toda essa ternura pelas crianças e pelo Natal, há a recordar a sua importância social e a denúncia que fez da situação dos mais desfavorecidos. Os seus contos de Natal atingiram tanto êxito que, de acordo com a lenda, uma criança desatou a chorar quando ouviu dizer que Dickens tinha morrido. E, debulhada em lágrimas, só dizia;

    ---- Então o Natal morreu? Já não vai haver mais Natal?

 

                   

 

 

 

 

 

    É certo que o autor morreu mas a sua obra é imortal e recordada cada ano por toda a parte e de diferentes modos. Os seus personagens, suas manias, vícios, hipocrisias, generosidades e virtudes passaram a ser companheiros da vida de muita gente. O género poético junta-se a uma enorme ternura pelas crianças, fracos e desamparados, mas a sua mensagem tem uma duplicidade pois insiste sempre num otimismo e confiança na justiça, em contraste com o mundo abominável que retratava. O célebre escritor, padre e filósofo Chesterton, admirava Dickens pelas suas reais convicções, amando os homens mas não as suas opiniões. O humanista moderno parece amar todas as opiniões, mas não amar todos os homens, parece mesmo odiar a todos. Era um lutador com a sua escrita, disso não se pode esquecer. Para Chesterton, não houve nunca um escritor mais didático: por isso nunca houve um mais divertido.

    A arte de Dickens está no génio de enternecer com a multidão de personagens a que dá vida e nos torna nossos amigos, com todos seus excessos e excentricidades e também com a ternura que gostaríamos de encontrar nos caminhos da vida.  

    Um encanto vago recordava ainda livros de Dickens no fim do século XX na londrina cidade. Rumores da época vitoriana, um certo modo de olhar o mundo, de viver o quotidiano acordavam emoções soltas das páginas das suas obras, no verde Hyde Parque ou na beira do Tamisa, onde os cisnes passeavam lentos nas águas sombrias de lodo. Quase se podia imaginar que, de repente, uma das suas personagens ia sair a correr do beco mais próximo perseguida por um dos seus ferozes algozes.

    Antes das obras de Dickens se popularizarem, apenas cerca de sessenta romances tinham aparecido na Inglaterra e alguns até eram anónimos. Pela sua pena, o romance ia vulgarizar-se.

 

 

 

 

 

 

 

 

     “A estranha história de Oliver Twist” é uma mudança histórica acerca da infância pela denúncia dos maus tratos de que eram vítimas. O suicídio infantil era vulgar, tal o sofrimento desses pequenos órfãos ou crianças abandonadas, albergadas em asilos, reformatórios, alugadas, transformadas em mendigos para quadrilhas de bandidos. Em Oliver Twist não há um personagem, há uma multidão completa. Não só Dickens se inspirou num grande amigo do seu tempo de operário infantil, como Oliver serve de pretexto para mostrar, mais dolorosa do que satiricamente, as diversas formas, disciplinadas e organizadas pelas instituições, de exploração e mesmo extermínio de tantas crianças. Por vezes, as famílias, sem quaisquer direitos, eram separadas à força para as submeter à ordem social. O historiador Grimberg refere-se às fábricas de Lancashire e às minas do País de Gales “cheias desses pequenos infelizes, muitos vindos de asilos para uma vida de fome e chicote, com uma vida de inferno.”

 

 

 

 

Dickens usa as suas obras como uma arma que atacava o pesadelo e a chaga social da desumanidade dos adultos contra as crianças e esse sistema social e as suas leis económicas. É célebre a cena do pequeno Oliver quando, esfomeado e desesperado, instigado pelos outros pequenos pensionistas, se atreve a dirigir ao conselho administrativo com a sua pequena tigela vazia na mão:

    “ ---Quero mais um bocadinho, se faz favor.”

 

 

 

 

 

    Face a tal pedido, é o escândalo do conselho paroquial, a profecia de que, se chegasse a adulto, seria um bandido e que depois de enforcado seria esquartejado. Alugado a um cangalheiro, entregue a um bando de ladrões, maltratado e perseguido, a angústia e a esperança atravessam toda a ação. O final feliz parece ser a forma do autor mostrar que amava a vida embora odiasse uma tal sociedade.                                                                                           
    O próprio Dickens, já no fim da sua vida, 1870, nas suas sessões de leitura no Hyde Parque, ainda recordava com emoção esta obra.

    “Nós nunca somos bastantes úteis”. Seria uma das suas frases a não esquecer.

    Chesterton, ao analisar Dickens, refere que ele sabia melhor do que não gostava do que gostava em termos de reformas. Na época vitoriana havia muito de que não se podia gostar em relação à infância. A distância que ia da Casa real, tão burguesa como alheia à realidade do povo, só demonstra a arrogância ignorante da realidade do seu próprio povo de uma rainha rodeada dos seus filhos e familiares, perfeitamente dominada pelo consorte, o príncipe Alberto, mesmo depois de morto.

 

 

 

 

A indigência geral do reino contrastava com o orgulho de um império, tão racista como cego, para o paradoxo de tratar os indígenas submetidos com o mesmo desprezo e crueldade, como os seus proletários e assalariados, incluindo mulheres e as pobres crianças.  
    Dickens faz parte daqueles raros intelectuais que, com a força da sua pena, vence batalhas e altera a vergonhosa situação social de exploração dos mais fracos. Para além da satisfação evidente que lhe dava escrever, Dickens apostava na capacidade de despertar a consciência do seu público, cada vez mais vasto, para a injustiça social e contribuir para uma moral de bom senso.
        Depois da sua fama, a sua estética foi, por certo, negligenciada pela pressa com que redigia e em favor da ética que o faz escrever e abandonar o habitual humorismo. Chega a tornar-se provocante, face à sua sociedade, com a sua satírica veia que demonstra uma ousadia em denunciar a impiedade da economia capitalista e a impostura de certos professores, clérigos, burgueses, advogados, bem como acusar os vícios que, sob a capa da decência aparente e falsa, se ocultavam tanto nos homens como nas mulheres, se bem que estas fossem menos atingidas pela sua crítica e vistas mais como vítimas.
    Os alcoólicos e os dependentes da droga aparecem no seu palco, ao lado dos mendigos, dos impostores, corruptos e agiotas de toda a espécie a marcar o egoísmo de uma época em que se usava a  “lei do mais forte”. O dinheiro, que se diz não ter cheiro, não deixa de atrair tanta gente e os primeiros passos para a sociobiologia partiam da teoria do darwinismo social. A seleção cruel dos excluídos e o malthusianismo marcariam o império vitoriano com egoísmo baseado em teorias.
    A ciência e o saber ligar-se-iam ao protestantismo quando aprender a ler é um subproduto para interpretar a Bíblia, coisa alheia aos católicos. Todos sabem que uma mãe instruída poderá dar uma melhor educação aos filhos.
    Os factos, o utilitarismo e esse materialismo de uma “realidade” racionalizada em extremo, em que é varrido o poder criador e o imaginário, vão unir-se ao reducionismo marxista do homem económico.
    Já se pode notar a apreensão de Dickens face ao desenvolvimento incontrolável do urbanismo industrial onde o progresso, queria dizer, nova tecnologia e concentração do poder económico. A falta de direitos e a aplicação sistemática da ordem e do método tornaram, durante muito tempo, a vida dos pobres trabalhadores, incluindo crianças de tenra idade, numa existência em que eram o instrumento vivo e depois passam a ser o complemento da máquina. O trabalho era dor, desespero, uma maldição.
    Diante da força épica da tecnologia, a situação não se inverte. O homem é a continuidade da máquina, mas uma continuidade cada vez menos necessária. Estamos perante outra forma de desumanização pois o trabalho cada vez mais é entregue à máquina e a terciarização de homens e mulheres vê-se diante de um novo inimigo.
    Na educação cada vez mais a matemática e toda a sua prática é exigida. Um bom aluno é, por certo, bom na disciplina de matemática. Mas será que  pensa? Helion, a esse respeito, responde a Calígula, na peça do mesmo nome “que é demasiado inteligente para pensar” (Camus, 1941).

 

 

 

     Pensar, na sociedade consumista, quer dizer conseguir aproximar-se do modelo matemático do mundo e não humanizar o mundo, que torna anormais as relações entres seres humanos logo na infância. As leis e as fábricas eram uma prova do estado paupérrimo em que o Império britânico colocou o seu próprio povo, ao mesmo tempo que se orgulhava de se ter transformado no mais desenvolvido sistema industrial  e no maior Império do mundo.
        Se Charles Dickens, no seu tempo criticou a situação da infância, com o abandono dos órfãos e de tantas crianças pobres, o filme “Oranges and Sunshigth” ( 2010)  mostra como, centenas de milhares de crianças inglesas, foram deportadas para a Austrália, desde o século XIX até aos anos 70 do século passado. Afastadas das famílias, as emigrações nos anos 40 a 50, foram em massa, e, levadas para o outro lado do mundo, milhares de crianças, na maior parte das vezes retiradas às mães, com o falso pretexto de serem adotadas. Seriam muito bem tratadas e acolhidas por famílias que não tinham filhos. Tratava-se porém de mais uma política de povoamento da Austrália, sem humanidade nem adoção para tais crianças. Criadas em casas de acolhimento, sem afeto nem grandes condições económicas ou educativas, nunca mais viram a sua família. Isso não faz parte das belas páginas da história do Reino Unido.

Será que Charles Dickens teria assuntos para ser popular como foi na sua época? É bom que cada um descubra por si.

 

 

 

 

 

 

 

    O protótipo de cidade industrial na Inglaterra desenha-se em “Tempos Difíceis”, a obra de Dickens que ataca as políticas económicas e luta contra leis que vinham colocar os operários ainda em piores condições. Diante do egoísmo e da frieza quanto à questão laboral dos operários e a introdução do ensino pragmático para os filhos dos pobres, Dickens ataca o sistema e defende esses infelizes dominados, domesticados e brutalizados pelo trabalho e pelo álcool. Transformado numa massa passiva, o operariado trabalhava mecanicamente com todo o rigor de um método científico que anunciava o progresso e a ordem. As cidades eram de cinza e de fogo dos fornos e toda a mocidade estiolava por entre as altas chaminés e o seu fumo negro que tudo cobria de lúgubre tristeza e escondia quaisquer horizontes.

    É verdade que Dickens não tem ideias reformadoras. A sua obra é mais um contra poder denunciador dos aspetos mais negativos da sociedade. Para mostrar um outro lado da vida, apenas se evade para a atmosfera criadora dos espetáculos, quer do circo, quer dos teatros, onde os seus personagens parecem mais felizes.

    O paralelismo, entre a revolução industrial e a nossa mudança tecnológica, nota-se pelo crescente número de excluídos, do emprego precário, da desigualdade crescente da distribuição de riqueza e das pedagogias centradas no utilitarismo e pragmatismo. Dickens é bem atual. O seu sarcasmo analisa a sociedade de exploradores gananciosos, donos de fábricas, de minas, asilos, reformatórios e escolas.

Paul Mantoux refere com subtileza que a revolução industrial, em vez de ser um acontecimento brutal, foi uma mudança total. Foi preciso muito tempo para transformar os comportamentos e até as crenças e o modo de pensar das pessoas.
    Por outro lado, o proletariado ao acordar vê que, como diz George Lefranc “se o despotismo foi expulso dos castelos, veio refugiar-se nos escritórios.” Ainda hoje o sucede assim. As empresas escondem-se por trás das tecnologias e os poderosos não têm rosto.

Centrando o seu estudo na cidade de Preston, que na obra de ficção se chama Coketown, tratava-se de um florescente centro industrial de algodão com cerca de 40 fábricas,  conhecida por todos pela dureza dos seus capatazes e proprietários.

 

 

 

 

 

 

 

    Semanalmente, durante cerca de um ano, publica “Hard Times” 1854, com agrado geral do público, dos mais pobres até à corte, e a obra foi tão poderosa que moveu forças parlamentares que darão frutos.

    Enquanto Dickens escrevia, sucederam-se grandes tumultos, manifestações e greves, enquanto os proprietários bloqueavam em “ lock-out” as fábricas aos trabalhadores.

    Também põe em causa o divórcio com o desastroso casamento da personagem, Louise Gradgrind, com o ganancioso, hipócrita e egoísta Bounderby. Louise era a filha desse ativo pedagogo que se guiava por “factos, apenas factos” e proibia as crianças da escola e os seus filhos de imaginarem o que quer que fosse.                    
    Para o caricato pedagogo Gradgrind, a imaginação era um mal, tão perigoso que tinha de desaparecer diante dos factos. Os mesmos factos que na escola, para onde foi o pobre Nicholas Nickleby como professor e onde descobre o horror dos pobres pensionistas sob o despotismo cruel de um mestre ganancioso. É um ataque mordaz ao utilitarismo e às suas consequências éticas nas populações submetidas a tais ideias. O pragmatismo dos factos, onde se enfileira Stuart Mill, traria a felicidade e o bem-estar à classe operária e a todos os assalariados. Dickens tem a lucidez de ver o erro. Anunciava já a corrente que iria criticar o racionalismo da ordem, da disciplina que leva a extremos contra o próprio homem. A sátira é evidente. Louise representa a educação, de acordo com a que recebeu Stuart Mill. Este filósofo, educado com base na matemática, na lógica e na estatística, sem uso da imaginação, teve por fim um colapso nervoso, com pouco mais de 20 anos.

    A personagem Louise segue o curso paralelo, sendo incapaz de expressar-se, abafando a imaginação, os sonhos e cai numa depressão temporária causada pelo sistema educativo e por um casamento com base na lógica dos factos, de acordo com seu pai e professor.

O pragmatismo é visto como erro pois não traz, tal como apregoa, a felicidade ao maior número de pessoas. "Dickens acreditava que, em termos práticos, a busca de uma sociedade totalmente racionalizada pode levar a grande miséria.” Horrorizava-o o ensino, tal como queria Edwin Karbunkle, o secretário do filósofo Bentham, mestre de Stuart Mill.  Em 1834, a “Poor Law” propusera-se a transformar a vida dos pobres num inferno, o mais terrível possível. Opositores, como o advogado Richard Oastler, declaram-se contra tal Lei chamando-a 'prisões para os pobres ", com os reformatórios detestados e temidos, de tal modo tal causam revoltas. Havia já algum ensino para crianças, mas isso era um negócio para gananciosos como descreve Dickens em “As aventuras de Nicholas Nickleby” quando o herói se depara com a situação miserável dos pequenos pensionistas, os maus tratos e o ensino utilitarista. Oastler ainda lutou contra o trabalho infantil a partir dos 12 anos e com 8 horas diárias, mas era uma voz entre poucas, contra tantos opositores.

 

 

 

 

 

    A visão da vida era tão pragmática que transformava as crianças em seres vazios de sentimentos, frios e limitados a factos, apenas factos. Assim, o lema era “o gosto deve ser substituído pela realidade”.

    O resultado da crítica à pedagogia cai sobre Tom, o perdulário, interesseiro e inescrupuloso filho do professor adepto das matemáticas. As consequências da teoria da máxima racionalidade social e do pragmatismo são a hipocrisia, o jogo, a bebida e o roubo para Tom, o risco do adultério, do divórcio e da infelicidade para Louise.

Sem a notoriedade de David Copperfield (1850), onde muitos dizem encontrar o melhor deste autor, “Hard Times” tem já o prognóstico do criticismo ao racionalismo laboral e à sociedade que começa a ser consumista. Tom não aprende nem quer saber o valor da vida ativa. Aproveita-se cinicamente do afeto da irmã para o defender quando é apanhado a roubar o patrão, esse marido que usava a mulher como objeto de êxito social.

Sem a profunda busca dos sentimentos e emoções que se chocam em “Grandes Esperanças”, a análise da situação industrial e os seus maus resultados é a intenção da obra. A aridez de vidas secas gera um cinismo que, apesar de tudo, Dickens repudia do seu mundo. Os finais felizes, para a maior parte das suas obras, são uma reconciliação com a vida e uma promessa de futuro melhor.

 

 

 

 

    Na nossa era, a revolução tecnológica vai muito mais longe do que a industrial mas também muda por completo a forma de pensar.
    Dickens investia todo o seu sentido crítico, numa corrosiva e dolorosa denúncia dos males que os mais poderosos causavam nos operários brutalizados. A vida era breve, com esgotamento precoce e poucos ultrapassavam os 40 anos.

     No filme “Margin Call, 2011” só os números e a sua manipulação mantêm um simulacro de realidade. A frieza dos números, com toda a sua lógica dedutiva, sem piedade ou sentimentos, consegue amarga vitória à custa do humano. Não é só ficção, mas o mundo das empresas e das finanças onde os simulacros, estão a servir de ponte entre muitos mundos com a presença de constantes monitores que nos mostram a metáfora da trama. O olhar dos poderosos financeiros, bem lá do alto, por entre vidros para o exterior, ou no risco da vertigem de uma queda fatal, mostram o arrepiante distanciamento de realidades humanas. Entrincheirados, lá no alto, tal como os senhores feudais nos seus castelos, os senhores do poder olham para o mundo, como um tabuleiro de xadrez onde as suas jogadas determinam o dia de amanhã de milhões de seres humanos que nem sabem da sua existência. O vago elo entre os mundos é a metáfora do helicóptero a percorrer os céus a fingir dar uma segurança e ordem que não passa de mais um simulacro.

    A crueza dos factos e do utilitarismo da era de Dickens surgem na atualidade onde só vence a frieza dos números. O trabalho produtivo como força libertadora de Karl Marx ou Adam Smith foi uma ilusão. Os algozes de Oliver Twist transformaram-se em tecnocratas diante dos quais as crianças de amanhã se desumanizam num mundo em que a ficção é a realidade. Despida de todas as adjetivações, a condição humana aguarda um sentido ou transformar-se-á numa racionalidade à medida de todas as técnicas e das suas terríveis possibilidades e não do próprio homem.

 

 

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