"Dos seres ocultos"

  •  Sobre "senso comum" e "bom senso"

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2012 )

 
 
 
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    Do Ver e do Imaginar

[ Escultura ícone da "Exposição Mundial de Bruxelas".  (pormenor ampliado dum "cristal de ferro"). Bruxelas. Bélgica. 2007 ]

© Levi Malho - Imagem digital

         


                                      

 

 Quando se escreve ou se diz o óbvio, as palavras aparecem correndo num carreirinho velho e conhecido, todas umas atrás das outras acertadas como ponteiros de relógio. Basta porém um pouco de desordem e as palavras tropeçam, caem umas nas outras e lá se vai o óbvio. Caem como os velhos castelos de cartas, por uma frase mal alinhada,  um óbvio que se estilhaça em pedaços, o senso comum pode fugir e o bom senso aparecer. São irmãos mas dão-se mal, como os irmãos quando envelhecem e resmungam velhas rivalidades e afetos mal partilhados.

    Com a ordem, bem cumprida com todas as regras, cai-se nas moles almofadas dos sofás soníferos do senso comum. Quando este fala, não pensa, diz o que ouviu muita vez e fica ufano por saber repetir sentença, frases-feitas, ditados ou velhas máximas como uma sabedoria de santos séculos de sono.

 

 

 

    Pode parecer caricato mas é senso comum. Com risos e aplausos.

O senso comum diz o que nem é verdade, nem é mentira, são casos generalizados. Todos enfiados, sem lógica que valha, no mesmo saco de gatos. Os provérbios seguem o mesmo caminho. Há para todos os gostos e estados de espírito. É só escolher.

 

 

 

    Chamar a atenção para equívocos tão vulgares é mau. Só vai piorar o estado de espírito dar muito mau humor ou causar explosões de irritação. Esta irritação é a crise no ar a pedir conversas pesadas e todos levam pacotes, o mais leve possível. Servem para “mobilar” diálogos vazios como salas por habitar.

    Como tudo que há agora, até esta mobília” é de pouca duração e gasta-se depressa para noutras conversas sempre vazias mas oportunas em horas de famigerados encontros. Depois de cinco minutos a dizer como foi bom rever alguém que já nem se sabe bem o nome nem sequer onde é que vimos, é excelente ter o óbvio à mão e trazer uma mala ou pasta bem atulhadas de banalidades. 

    Quando não há nada a dizer e o silêncio é ouro mas é quando pesa mais. Fatiga, oprime, gera raiva e temos mesmo de o quebrar. Partir silêncios é mais arriscado do que quebrar espelhos. Todos sabemos que de generalidades banais está o mundo cheio como o inferno de boas intenções. Pode-se dizer sempre mais uma e, por isso ninguém, vai para o manicómio, mas também não vai longe. Antes de ser regra há exceções e o ser humano é sempre singular. Até os outros animais são diferentes entre si. Também têm personalidade, ciúmes, inveja, fidelidade, carinho. Sabem tão bem receber com alegria, melhor do que um humano alguma vez entenderá. Para generalizar, sem mentir descaradamente, além das frases feitas, dos provérbios e sentenças, existe a estatística.

    A estatística é a porta do cavalo de quem não queria estudar matemática e entra pelas traseiras. De repente, cai-lhe em cima da cabeça a disciplina de Estatística e apanha uma boa surpresa com as fórmulas, a curva de Gauss, a moda e o desvio padrão. As generalizações passam por crivo e são bem lentas com todas as contas e gráficos. Depois tomam o pomposo nome de “probabilidades estatísticas” e assim tudo se pode colocar em boa ordem e santa paz. Com tais probabilidades, não se fala já de coisa nenhuma mas pode-se falar de tudo. O que mais interessa é que, sem falar de ninguém, fala-se de toda a gente e ainda de todos os passos que dados, do nascimento á santa paz da morte, e até diz o mesmo a toda a gente pois lá estão as coisas de toda a gente. Só que ninguém se vê fotografado ou fotocopiado num gráfico, nem estará convencido do lugar da curva de Gauss que ocupa. Até a probabilidade da morte está ali, com mais ou menos trabalho, uma ficha pode anunciar o provável dia, hora e paz eterna.

    Fosse ele vivo, o famoso filósofo positivista Auguste Comte até bateria palmas de contente. Progresso e ordem eram as duas faces da sua medalha de honra. Apesar de tudo era uma contradição. O progresso traz a desordem, a confusão e acaba com a ordem e disciplina. Leva muito tempo a ordenar tudo de novo e o progresso assim não avança. Tudo ordenado é um mundo em que todos sabem o seu lugar certo mas depois podem vir a descobrir que não gostam do lugar que tiveram a sorte ou azar de ficar.

 

    Há sempre os que ficam para trás, de fora e desesperados. A ordem desanima um ser humano porque pode ser excluído,  posto a andar, dispensado, economicamente inviável mesmo ambicionando desesperadamente um estatuto melhor, em palavras simples, subir de posto. Postas em ordem, as possibilidades, com a estatística acerta- bem mais do que com um horóscopo senil que ainda se mantém à cata de tontos sempre pressurosos a ler a cantiga de sempre.

    A tese de Comte, surge nos meados do século XIX e teve êxito enorme que chegou até aqui. Custa a crer que tivesse tanto sucesso e ser ainda tão afanosamente estudado, muito mais do que uma citação do passado ou uma simples nota de rodapé em letra bem minúscula. O triunfo de uma teoria e do seu autor tem sempre por base o senso comum da época em que surgem. O senso comum, por sua vez, capta insensivelmente a ideologia que paira o ar. A sorte de Comte jogou-se no encontro da dispersão de diversos pensadores somados num só. Ele e só ele, pode ser assim o profeta da paz! Com a pavorosa promessa de uma guerra infernal.

    O seu positivismo científico dos factos, com a imaginação completamente posta de parte como inútil,  levou a observar  factos, tornar tudo científico, nada mais do que cientismo. Temos o utilitarismo na Inglaterra, o pragmatismo desenfreado no campo industrial, o positivismo e a estatística para ordenar o undo brasileiro em factos, observações e objetividades. Por entre doenças e perturbações mentais, escritos de Comte foram aceites e não lhe faltaram discípulos por muitos paises. Em Portugal, basta citar o investigador, escritor e poeta Teófilo Braga. Os brasileiros, para demonstrarem toda a sua admiração pelo positivista francês, colocaram na sua bandeira o lema de Comte “Ordem e Progresso” que ainda adeja ao vento.

    Também têm ordem e progresso, economicamente são um paradoxo, mas uns estão dentro e domesticados, e cá fora os desordenados, não podem entrar no sistema, faltam-lhes os cartões de tudo e para tudo. Há vigias e guardas, elétricos ou humanos para que dentro e fora estejam separados. Culpem a geografia e o clima, mas o ar condicionado faz crescer os escritórios e condomínios, tudo o que é sofisticado e cria a desordem e o caos das favelas e das cidades no Norte e zonas de que nem se fala. Os positivistas não desapareceram, mesmo que as teorias comtianas tivessem muitos pontos fracos. É uma mística da humanidade pois com a tal evolução social acaba por regressar ao estado religioso reformado e adaptado por Comte.

    Depois de ultrapassar os seus três famosos estados, religioso, metafísico chegava-se ao triunfantemente ao positivismo com uma religião bem estranha. Comte não deu conta disso, pelo enorme entusiasmo com que via a nova sociedade completamente organizada transformada pelos avanços científicos em todas as direções e por fim pela Sociocracia, a ciência das ciências.

 

 

    O Grande Ser, que Comte descobre, é a Humanidade e devia ser venerada. Assim surgiu o culto prestado aos grandes feitos dos homens.

Onde colocar toda a multidão anónima, grande impulsionadora desses homens? Onde colocar a sociedade anónima dos seres humanos mais do que vulgares?

    Em lugar nenhum. Só se veneram os feitos. O mal fica oculto e nem se fala. “O progresso,” já dizia Condorcet, “é que o presente é sempre melhor do que o passado.” Mas a sociedade é um todo, mesmo que os conceitos de mal e de bem sejam variáveis como o senso comum, as probabilidades e as generalidades. Não podemos esquecer que esses grandes homens foram loucos, doentes, teimosos, invejosos, muitos deles, tiranos geniais que causaram mais tragédias e mortes do que se possa alguma vez imaginar. Se forem esquecidos os genocídios, holocaustos, extermínios em massa, em nome da ordem e da disciplina, estamos a ter uma forte amnésia, a inventar um passado idílico e a deturpar a realidade.     As ideias comtianas eram o porta-voz de uma certa forma de pensar em que a ciência vivia tempos de ouro. A cada passo uma descoberta, mais um invento…

    Os homens abandonaram os seus deuses, depois a metafísica e a racionalidade e descobririam os tesouros da ciência e do progresso. Era o cientismo, só há ciência de factos e assim, se resolve bem tudo o que há para resolver. Ao reduzir tudo a factos, estamos a caminho do progresso. A literatura seguiu as pisadas. Os factos objetivos é que contam. Temos de afastar a desordem, o estranho, a mistura. O que está dentro do sistema e não se resolve pela ciência, não passa de falso problema, dizia Comte, se fosse problema real resolvia-se.

     O risco está na universalidade da ordem a que Comte tinha mais apreço que ao progresso. Uma sociedade totalmente ordenada não tem lugar para os “outros” os que estão fora da ordem, os que causam confusão, mistura e indisciplina. Vemos o que sucede nas grandes cidades, o seu envelhecimento e as franjas, parasitas que alastram enormemente à roda da cidade sem rosto. A profecia de paz ocultava compromisso de guerra. A perfeição não se adapta a seres imperfeitos e o que Comte anunciava era a mais universal das guerras.

    A ilação final é que as generalidades são perigosamente válidas quando combinam com a ideologia. O risco das sentenças, frases feitas e outras é que se tomem mesmo a sério. Comte foi tomado a sério. O acaso pode determinar a guerra mas não o início. Estudar as consequências é entender como se preparou a Grande Guerra, que seria a última e traria a paz. De todos os mortos, restou o medo dos vivos e a insegurança do futuro.
 

 Ah! Falta referir que, algures, não se sabe onde, deixaram uma bomba relógio.