"A era dos Medos"

  •  Máscaras da "realidade"

    ©  Lúcia Costa Melo Simas .( 2012 )

 
 
 
 
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    Inutilidade da Distância

[ Folha da Cacto em floração (pormenor). Jardim Botânico. Campo Alegre.Porto. 2008 ]

© Levi Malho - Imagem digital

         


                                                       

 

     Os defensores do multiculturalismo, da ecologia e dos direitos humanos vivem uma farsa. Quer se acredite ou não, trata-se da compra da boa consciência tranquila. Basta pensar que se tolera e virar a cara com indiferença, reciclar o lixo e aclamar a Declaração dos Direitos do homem (1948) para ocultar uma realidade mais séria. A tolerância para com o Islão é a liberdade que nos é dada, mas temos de considerar que temos de escolher a partir do pressuposto de que todas as culturas devem reger-se por tais direitos. A escolha certa parte da obrigatoriedade de aceitar a nossa cultura, o nosso estilo de vida, os nossos valores. Todos os outros irão chegar lá e a ordem será universal.
        Na realidade o que temos é uma luta partilhada e o ocidente veicula a ideologia de um perigo mortal, o anúncio de uma Idade das trevas com os fundamentalismos face ao nosso declínio assustador de um tranquilo quotidiano. Os riscos dos totalitarismos têm na banalidade do nosso dia-a-dia com o seu contra poder anónimo, criativo e rebelde  a maior defesa contra a perda de identidade e de solidez que ainda combate a velocidade de todas as mudanças.
        Sem reformas contra todas as exclusões e problemas, que podem perturbar mais do que sono, e sim a vida de quem está longe dos problemas, nada se altera dos riscos que o desconhecido que é o futuro nos promete.
      Garrafas em contentor, saco reciclado, lixo separado não passam de uma gota de água face a toneladas arrasadoras de lixo a aumentar na proporção do consumo. Ninguém se interroga pela demagogia dos objetos ditos reciclados, latas e embalagens da maior insignificância, ou a fraqueza dos três erres da educação cívica. Os problemas ecológicos, a desonestidade do falso multiculturalismo e  a  hipocrisia do significado dos direitos humanos estão unidos na mesma ilusão, para não chamar impostura.
        Desde a refeição da manhã, com produtos dos quais não sabemos a cadeia de fornecimento alimentar, às mobílias e roupas com produtos tóxicos, à água ou ao ar, há toda uma série de variáveis invisíveis de riscos.
       Estamos dentro da armadilha que preparamos e a nova escravatura da mão-de-obra barata só cresce. Entenda-se que o significado de mundialização tem sentidos para todos os gostos, englobando os alegres otimistas e os sombrios pessimistas.  A bela “aldeia de global” de McLuhan esfuma-se em redes de multinacionais sem rosto nem centro, que os governos não conseguem controlar. Há  mulheres assalariadas da Turquia ao Bangladesh a trabalhar para patrões invisíveis na economia de bens simbólicos. Em pequeníssima escala, tivemos uma certa escravatura até aos anos setenta, com as bordadeiras regionais açorianas e seus fiscais desumanos, num trabalho pessimamente renumerado. Foi  uma mina que agora são os chineses e indianos continuam.   Não há nada neutro ou inócuo. O que existe é uma busca imperiosa de manter o sentimento de culpa fora da consciência.

   Quando os chocolates estavam em queda de vendas, demonstrou-se o modo de manipular os consumidores. Alterando a significação do consumo de doces, por “uma só dentadinha” (Mucchhielli s/d) os bombons voltaram a vender-se em massa com o significado de pausa no trabalho, sem sentimento de culpa mas de recompensa.
         Boaventura Sousa Santos, com uma ideologia paradoxal que se rege por uma utopia já morta, defende a crença no multiculturalismo quando se trata de um problema ilusório de complexo de culpa de esquerda e de sonhos hegemónicos que deixaram a herança de uma linguagem vazia a esconder a falsa admiração pelo “diferente” e uma tolerância que mais não é do que uma forma encapotada de racismo.

    ----- Não és igual a mim, mas eu tolero-te. Traduz-se por:

    ----- És-me indiferente e não te emancipaste.

    Na globalização, como Sousa Santos quer, os agentes tradutores criam uma forma nova de convivência mas a tradução nunca é igualitária. Há um neocolonialismo com paternalismo mascarado e as trocas dos dois lados, tornam qualquer tradutor cultural num traidor de significantes e significados.   Um antropólogo, mesmo que traduza bem a simbólica, não deixa de atribuir um sentido distorcido na sua língua materna porque não se pode ter um pé numa cultura e outro noutra. As experiências de Margaret Mead acerca do pensamento dos povos primitivos foram polémicas e a falácia dos seus estudos era a base teórica de Piaget, em observação de crianças suíças, adaptadas aos povos de Samoa. A tradução de comportamentos sociais não era isenta de pressupostos viciados.
      O relativismo que o multiculturalismo implica, nada tem a ver com a tradução nem a tolerância. Vai do vale tudo ao cinismo da indiferença. A tolerância, como antídoto para uma ilusão, torna o multiculturalismo e os seus adeptos utópicos, o que Boaventura acaba por admitir e destrói toda a sua estimada tese. Estamos a iludir o Outro e a esconder os sentimentos de racismo e de violência que alimentamos nos discursos e práticas entre culturas.
       Já não vivemos tempos de ter sonhos e ilusões da modernidade e do cientismo. Rever as crenças leva à descoberta de muitos paradoxos. São Paulo já afirmava que entre os cristãos não havia diferença, “nem homem nem mulher, nem judeus nem gregos”. A  sua visão das mulheres não obedecia a isso e foi uma herança pesadíssima, para não falar da situação dos escravos em plena Idade Média. Por mais respostas que tentemos procurar no passado, não temos lições para o futuro.
    O filósofo grego Castoriadis insistia nos valores que orientaram todas as épocas e que lhes dava um fundamento e sentido. Observe-se como Comte, apesar de todos os erros e contradições, serviu uma certa mentalidade exultante das descobertas científicas. Vê-se agora um confronto ou um resvalar para o vazio. Os temas ditos por Sousa Santos como património comum da humanidade, como estudos sobre a sustentabilidade da vida humana na Terra e destruição futura do planeta não têm sentido real para milhões de seres humanos à beira da morte e a lutar pela comida de hoje. Sem garantias de sobrevivência, os problemas do amanhã distante não têm sentido.
      Não é possível pensar numa política de ambiente, quando, por exemplo, a Coca-Cola em Kerala, na Índia, tinha fábricas a trabalhar a todo o vapor enquanto a aridez da seca desencadeava os maiores protestos dos camponeses e da imprensa. Para obter um só litro da bebida é preciso duzentos litros de água, por causa do cultivo da cana do açúcar. Isto levantou enormes problemas e buscas de soluções tão enredadas que semeiam dúvidas e estudos complexos. A Coca-Cola procurou soluções para não poluir ou desperdiçar água, Goleman, (2009) mostrou que uma nova gestão de água para devolução de “todos os efluentes das suas fábricas serem devolvidos à cadeia hídrica” assegurou a transparência ecológica. Esta luta é uma exceção para afirmar a regra.
        A criticada escala do psicólogo Maslow para as necessidades e motivações coloca os afetos bem menos necessários do que a conservação e a segurança. Todavia as teses são francamente contraditórias com as descobertas na psicologia dos bebés macacos ou humanos que, sem afeto, morrem. A segurança não basta e, na ausência de vinculação, raros resistem. As experiencias com as “mães de arame e veludo” (Bowlby) mostraram que o afeto é fundamental para a sobrevivência.
       Por muito longe que nos aventuremos em múltiplas formas de estudo do nosso tempo, voltamos sempre à questão dos valores e afetos. Não sabemos ver ou pensar sem valorar. Valorizar a preservação do planeta, ou os direitos humanos só podem ser problemas teóricos enquanto os riscos e perigos são invisíveis e não nos sentimos atingidos.
       Há uma cadeia de valores que não começa no homem, descobre-se que os sentimentos altruístas e compassivos existem em ratos que socorrem outros em perigo, em vez de usufruir recompensas alimentares. Se tais valores têm uma profundidade destas, devemos pensar que, tal como os psicólogos Piaget e Kohlberg mostraram, o ser humano tem diversos graus de desenvolvimento e os valores só são mais elevados num pensamento amadurecido. Os povos têm diferente progresso moral, religioso ou outros. Não somos humanos só com conhecimento e sem valores. O primeiro passo para agir é recordar que o planeta pode viver sem nós e nós não podemos viver noutro lado.

 

 O fim dos tempos e o Apocalipse seriam medos no início do primeiro milénio cristão. Os orientais nada sentiram desse problema dado que não veem progresso histórico no devir social. Tudo servia de presságios e sinais dos fins dos tempos. Animais monstruosos, eclipses, incêndios por toda a parte, serviam de meios para anunciar que os tempos do juízo final estavam próximos. Este é um dos lados da medalha de quem recorda a Idade Média. As lendas e os estudos sobre a época são contraditórios. Foi o renascimento que popularizou esse homem medieval temeroso e crédulo. Historiadores mais recentes negam o pavor do ano mil, tanto Marc Bloch como Régine Pernoud e Georges Duby.  
    Por isso teria sido, ainda mais absurdo, comparar o milenarismo de Joaquim Flora com a entrada no nosso século XXI. Estranhamente, o medo está presente se bem que com contornos bem diferentes dos imaginados e apenas possíveis coincidências. Não temos pregadores a exortar penitências, mas temos analistas económicos, agências de Rating, mil vozes e modos de podermos falar em tempos de temores nunca antes sentidos e bem justificados. 
    Todavia o abade cisterciense, Joaquim de Fiore, era um visionário que supunha para o novo milénio a era do Espírito Santo.
    O joaquimismo não era pessimista, como agora quase todos os milenarismos reacionários, e tentava encontrar um sentido na História através de três etapas do reino de Deus que tiveram continuidade. Existira a tríade, com o Pai, depois o Filho e seguir-se-ia a do Espírito Santo. Foi em Portugal que se sentiu melhor isso, quer pelo movimento dos franciscanos, no culto do Espírito Santo que dura ainda nos Açores. Os sonhos do Padre António Vieira remetem para o Quinto Império que ressuscita bem mais tarde com Fernando Pessoa e os heróis, mitos e símbolos de megalomania do nosso Portugal. Pessoa sonhava com um império transcendente através da língua na sua obra “Mensagem”. O pluralismo da personalidade do poeta desdobra-se num pluralismo português na sua vocação de enfrentar medos e futuros. Vencido o mar tenebroso e o mostrengo restaria um novo espírito muito para além do material.
    O novo acordo ortográfico dá uma certa veracidade cultural de um futuro problemático no qual há apenas esperanças e muito ceticismo.
    Fala-se muito, com ou sem razão da mentalidade de fim do século, com derrotismo, ceticismo e novas formas de abordar o futuro. A Belle Époque é bem um sinal disso com a sua face obscura de miséria, revoltas, conflitos políticos que se ocultavam por trás da ridente faceta da cidade da Luz, que irradiava alegria e progresso com a sua grande Exposição Mundial e a ode triunfal ao ferro na inauguração da torre Eiffel (1889) ícone do progresso e da grandeza da Europa centrada em Paris.
    A dúvida é sempre insidiosa, infiltra-se nos espíritos pelo descrédito em todas as transformações, depois vem a ambiguidade e o relativismo. A racionalidade tem sempre inimigos prontos para instalar a incerteza no social. Acontece que a história vivida não se dá conta dos grandes acontecimentos ou revoluções demasiado próximos ou assustadores. São muitos os casos em que as pessoas, face às mudanças repentinas não as sabem interpretar ou menos ainda compreender.
     Gustavo Freitas refere-se ao “Grande Medo do Delfinado” quando, ironicamente a população das províncias na França, na época da Revolução Francesa, viu que se espalhava um medo sem fontes seguras, e houve alarme geral do povo que não entendia a realidade dos acontecimentos e temia boatos, bandos de salteadores, ataques às suas casas e propriedades e assim à calma que devia seguir o desaparecimento do perigo seguiu-se uma desordem atroz e uma pilhagem inaudita.” A ironia da História pode ser porque quanto mais de perto a vivemos, menos parece que a entendemos. A proximidade e a informação não se transformam em conhecimento e ainda menos quando a ocultação da causa dos nossos medos é um esforço constante de defesa e o inimigo não tem rosto nem se sabe qual a sua força. Assim aconteceu com o grande medo e todos os motins que as províncias francesas quando era em nome do povo que se estabelecia uma nova ordem.
        Será que estamos a viver uma era que realmente não deve ser de medos e que toda a ideologia que nos cerca, em que mergulhamos, com os constantes bombardeiros de notícias alarmantes de que tomamos conhecimentos, estamos a ser enganados e o medo é uma pura ficção ou um simulacro do qual não podemos escapar?
       Sem haver uma definição de riscos ou perigos reais, parece que se inaugurou um era de medos, quer do fim do mundo, do terrorismo, da natureza ou do próprio homem. A ciência perdeu algures a mensagem de otimismo e progresso e surge ameaçadora e cheia dos maiores perigos. 

Os livros mais vendidos atestam a tendência para teorias da conspiração a que se pode dizer que se iniciou com o êxito de vendas da obra de Dan Brown “O código Da Vinci”.
    Apesar de ser um bom policial, a trama urdida tinha todos os ingredientes para o sucesso pela mistura da ficção, do mistério e da realidade. O romance, que no cinema foi um fracasso, precisamente porque era um policial que não se coaduna com a ficção histórica, foi entendido como carregado de descobertas, qual delas a mais insólita. Depois disso, seguiu um longo cortejo de obras a explorar habilmente esse filão que encontrou poderosíssimos ecos em milhões de leitores. Por trás de uma trama policial, os mais mirabolantes segredos são patenteados por escritores que investigam o tema das sociedades secretas e das conspirações de grupos transversais a toda a história, tornando o romance policial ficção científica a que se acrescenta um clima de irracionalismo cada vez mais espalhado. A globalização obriga a uma adaptação mental que para além de ser um fenómeno económico, cultural e social arrasta também um irracionalismo sustentado pelo desconhecido, estranho ou inexplicável. Desde a panóplia das medicinas “naturais”, aos gurus, videntes e caos da “New Age”, com um desfile de religiões, cultos, crendices, a racionalidade é combatida através do cultura do medo da morte, o último tabu em que ninguém toca com realismo A ubiquidade do medo é que não se pode combater porque entra em toda a parte pois tem bilhete democrático para nenhum local lhe ser proibido.
    Será que temos de combater uma era de medos? Os filmes mais vistos pelos jovens têm vampiros e aquela atmosfera de Drácula. A diferença é que os vampiros são bons e assim servem para exorcizar o medo da realidade. Não é só para quebrar a monotonia do quotidiano, mas para assegurar que até os terríveis vampiros, King Kong, os fantasmas podem ser bons.
     A exploração do fenómeno tomou foros mais graves na vida real, com as teses das pandemias levadas muito a sério em todo o mundo. Da gripe dos suínos, para a gripe das aves, depois a gripe A ou B deram quase origem a um pânico mundial. Com a rapidez e insistência dos média, não podia acontecer outra coisa. Outras campanhas continuam com menos êxito e menos lucros. Vivemos rodeados de suspeitas e de desconfiança das coisas mais comuns. O sol, o vento, ou a chuva ou a água que bebemos passaram a ser temidos por conterem riscos invisíveis.
    É curioso ver como, em tão pouco tempo, cada pessoa vai para todo o lado, ou encontra onde quer que esteja, a garrafinha de água salvadora, pronta a ser usada e a causar ainda maior poluição. 
    Diante do futuro e das possibilidades e probabilidades que se podem equacionar há uma perplexidade e é facto é que as utopias que aparecem são todas reacionárias e o medo dos riscos domina as construções de sociedades quiméricas. No cinema, na ficção científica ou no romance, o futuro é sempre a luta catastrófica contra a técnica e a ciência.
    É curioso como Catarina Bennett descobriu, no caso do tratamento através dos caros produtos cosméticos para um medo padrão. A partir do medo do envelhecimento há mil outros casos que a indústria e a publicidade usam para angariar consumidores para os produtos.
    O medo de envelhecer e da obesidade têm tanto de trágico e ridículo como de formas de ganhar dinheiro. Multiplicam-se as clínicas, os ginásios, os tratamentos dispendiosos e as operações plásticas. Os medos somam-se no ocidente e multiplicam-se no oriente. A fome e miséria estão do outro lado de uma fronteira muito frágil. A perda de emprego e a constante luta para o manter ou conseguir não traz tranquilidade. A solidão passou a ser um dos riscos mais fortes e ao mesmo tempo mais comuns, enquanto os lares de idosos se enchem de pessoas que perderam todas as raízes e que as famílias cada vez mais disfuncionais abandonam. As grandes cidades, ou até as mais pequenas, carregam agora o peso dos sem-abrigo, um risco cada vez e um grave problema social Ana Ferreira Martins (2007) considera que a partir do urbanismo mundial “estão reunidas as condições objetivas e morais para a chacina dos homens-lixo”. O desemprego, perda da casa, de laços familiares, a degradação de condições de vida tornam a solidariedade o único apoio. Podem ser o símbolo de todos os medos que a civilização enfrenta diante de uma natureza perdida por suas próprias mãos e que já não se pode considerar fora da sociedade. Ortega Y Gasset já vaticinava (1926) “A cada minuto precisamos de decidir o que vamos fazer no minuto seguinte, e isto quer dizer que a vida do homem constitui para ele um problema permanente.” Trata-se de uma nova luta pela sobrevivência, em que se forma uma concepção do mundo ditada pelo individualismo quando se sente a falência dos grupos e instituições protetores que davam algum sentimento de segurança contra ameaças possíveis. Ulrich Beck interroga-se acerca disso: “Como podemos dominar o medo se não podemos dominar as suas causas”. Chegamos a uma situação em que as ameaças latentes já não se podem dirigir a “outros”. O fim dos outros chega quando temos consciência de que todos estamos em perigo e se um reator nuclear, como foi o caso do Japão, tem um acidente só dependemos do vento e das correntes marítimas para sermos também atingidos. É impossível prever onde vai suceder o próximo desastre ecológico, onde o derrame de petróleo no mar acontecerá, onde o próprio progresso científico mostrará a sua máscara de morte.

    É verdade que há muito mais estudantes no mundo inteiro, mas esse saber pode ser tão inútil para a salvação do planeta que cresce um sentimento de desvalorização do conhecimento e da ciência. O desajustamento entre o que se aprende e o que é preciso saber provoca uma corrida a especializações que escondem melhor e durante mais tempo a inaptidão e o desajuste entre as teorias e a prática. A corrida aos mestrados, a pós graduações e especializações aumenta o peso do gasto económico sem se verificar aumento de empregos. Sabemos o que se ensina hoje nas escolas mas não sabemos do que as sociedades vão precisar daqui a dez anos. Na luta pela sobrevivência, quando esta é diária, não se pode pensar no amanhã. É inútil qualquer campanha ecológica ou ambiental diante de uma população que morre à fome.
    Ao ver a morte das florestas, dos rios, de campos outrora férteis o homem sente que a sua vida está contaminada de perigos e ameaçada da mesma morte que inflige impiedosamente a tudo o que o rodeia. O tom catastrófico pode tomar medidas negativistas mas surdamente continua o medo porque não se pode ignorar que se “vive com a bomba”.   
         Se alguém embarcar num avião e lhe for solicitado que leve mais um pequeno volume na bagagem, o estranho ou o desconhecido, por mais simpático que seja, torna-se logo um possível terrorista, ou traficante que causa suspeita e desconfiança. O que era partilha ou cooperação entre pessoas tem agora barreiras invisíveis sustentadas por novos medos.Por trás de um homem civilizado aprendemos que se pode ocultar um bárbaro e que a barreira, além de ténue, é invisível.   A suspeita do risco está por todo o lado, entrar num avião levanta receios nunca antes sentidos, e a própria pessoa é também suspeita. Todos são revistados pelas precauções do sistema.
    Foi por causa dos riscos, quer de pessoas, quer de mercadorias, que surgiram as seguradoras, numa época em que os riscos podiam ser calculados. Agora há uma situação nova de atingir a rutura, pois os riscos aumentam de modo imponderável e só as cláusulas de cada contrato tornam viáveis ainda existirem companhias de seguros. Face aos perigos de grandes catástrofes ou terrorismo nada disso é infalível. 
    As nossas sociedades desenvolveram uma ordem que exige estarmos sempre atentos e disciplinados no dia-a-dia que devia ser a nossa segurança. As rotinas, ao invés da desordem, produzem ordem e um certo bem-estar por se imaginar saber o que será o dia de amanhã. Mas, depois da queda dos totalitarismos, que impeliam para a transparência social, surgiu uma tolerância carregada de cinismo, consciente ou não, ou indiferença pelo outro que cria a solidão no individualismo. Os apelos ao multiculturalismo são aliciantes na teoria mas encontram fortes barreiras na prática.
    Séculos de afirmação da superioridade de povos, de raças, de submissão das mulheres, de exclusão de imigrantes e de proselitismo religioso são barreiras intransponíveis. Face ao Outro, não nos sentimos próximos. Há a barreira do desconhecido e o outro é o estranho. Traz a desordem porque vem de fora, não tem nada que o identifique para ser próximo. Só passa a próximo pela partilha de códigos, sinais, símbolos que cada grupo conhece e usa.
     Dizemos que “perdoamos ao próximo” todavia não podemos ter por próximo as multidões e todas as pessoas anónimas. É excesso de números e das capacidades humanas. Leva muito tempo para nos tornarmos próximos dos uns dos outros. Gastamos muito tempo com uma pessoa até que se possa chamar amiga e próxima. Não somos humanos quando nos vemos perdidos na massa. Um citadino dá muito mais conta disso do que uma pessoa de um meio rural. Os sem-abrigo são a prova de que nas grandes cidades, o próximo é já uma farsa, um perigo, um risco de contrair doenças, de ser assaltado. Eles são os outros que, de certo modo, escolheram sair do sistema. Do outro lado vêem-nos como outros, Os que aceitam regras e ficaram dentro. Também somos prisioneiros. As grades não são visíveis mas há sinais indicadores.É a paz que temos. Com um gigantesco sistema mais forte de que nunca e também nunca tão frágil. 
    Apesar de ainda muito se insistir em revisitar e estudar Auguste Comte, utópico “profeta da paz”, como lhe chama Raymond Aron, a sua tese de unidade é teórica e a realidade diz-nos que os homens preferem mais o que os divide do que o que os une. A imagem da ordem, tão querida a Comte, pode tornar a vida insuportável para todos aqueles que a sociedade considere que causam desordem. Para prevalecer a disciplina é necessário excluir. Assim se fez com os loucos, doentes, moribundos ou idosos, que a família tem de descartar. Na sua filosofia psicológica Sartre com o sentimento de “estar a mais” assinalava uma outra forma de desordem social que lhe dava uma consciência infeliz e angustiada. O que se pode compreender passa a poder ser gerido, equacionado. Depois de entender o problema parece sempre mais capaz de se vencer. O futuro tornou-se num desconhecido. Antes, todos tinham laços e estruturas que indicavam os caminhos. O mal e o bem estavam assinalados Agora o mal e o medo estão juntos, mas não sabemos onde estão. Gerir o desconhecido é impossível. E nós diante do futuro temos frente a frente esse medo que nos paralisa. O absurdo já não é só componente humano. O ser humano destruindo valores, inventando o cinzento, a ambiguidade, a tolerância carregada de indiferença torna tudo o que realiza em absurdos de que tem tanto medo porque sem haver o ser, só o nada existe e cresce fora e dentro do sistema e das pessoas.  No plano do sistema nada se pode passar sem estar perfeitamente institucionalizado e o que era humano estiola e perece.

    Nascer e morrer passou a ser algo fora da ordem e da rotina e sem sentido natural. Já não fazem parte da quotidianidade. Foram domesticados e institucionalizados, Disciplinados. Realizam-se em locais assépticos e controlados. A programação do nascimento já se faz, de acordo com as ordens do médico e a aceitação da parturiente sem que a natureza tenha de se pronunciar sobre isso. A morte depende do desligar das máquinas, mais do que do natural fim de vida. Nascimentos e mortes eram societais pois antes tinham toda a família reunida, a aldeia ou até era uma cerimónia a que assistiam as mais distintas personalidades do local.
     “O lugar certo para cada um tal como o trabalho certo” da herança comtiana faz o sociólogo Bauman falar da metáfora do sujo e do limpo no combate feito aos ácaros, aos ratos, ao lixo e igualmente estendido ao estranho, diferentes, imigrantes, classes e grupos em que os todos esses outros colocam a pureza em risco. Comte revive em Bauman quando este analisa o societal. O sonho da pureza não é mais do que a ordem que Comte sonhava para uma sociedade cientificamente organizada. Sem mais problemas que não se pudessem resolver. Comte colocava-os fora. Não poderiam existir problemas sem solução era a resposta terrível. A solução final espreitava já com a aparição do Grande Ser, a Humanidade. Só os grandes feitos, dos grandes homens devem ser recordados. Esqueçam-se os genocídios e todos os extermínios e exclusões.
    O sentimento comum a todos os que refletem um pouco é o reconhecimento de que a riqueza tem criado cada vez mais perigos e riscos e cada vez mais pobres, além da incerteza acerca do futuro já que a velocidade da mudança é um choque constante.  A adaptação é o impossível pois a mudança não para e há muitos limites para cada ser humano.
    Outrora, os laços da tribo eram sólidos, os laços feudais ou as corporações medievais também porque não dependiam das pessoas, mas da solidez dos próprios grupos. Agora, há a liberdade de pertencer a este ou àquele grupo, mas os laços são muito frágeis, os grupos não dão segurança porque estão à mercê de interesses que, se deixam de ser partilhados, desaparecem. A este estado social em que nada é sólido nem estável chamou Bauman a “ sociedade líquida” a que se veio juntar “o medo líquido” pois o temor é difuso, escorrega como água, passa por todo o lado e não tem forma nem solidez. Assim acontece quando os grupos são biológicos como ocorre nas escolas, nos adolescentes e entre colegas que se ligam apenas por causa da partilha de motivações institucionais. Ninguém ocupa hoje uma posição segura e, de repente, o chão pode vacilar sob os pés, porque alguém se tornou “dispensável” Como uma lenta subida de maré, a ilusão da segurança e do emprego seguro, desaparecem nos horizontes. Toda a gente entende que um emprego para toda a vida é algo que já não aparece no horizonte dos jovens que procuram colocações.
    Mesmo consumir tem regras ocultas que todos respeitam. Os excluídos têm medo de lá entrar sem saber bem as causas. Só entram nos templos de consumo e partilham a solicitude dos sorrisos, quem pode gastar. As câmaras de vigilância e os seguranças são formas de exclusão dos que não podem comprar, mas roubar e dos riscos que ali podem diminuir. São prisões maravilhosas de vidro e luz para os de dentro se sentirem como em sua casa, nos jardins que não têm com os objetos que não possuem. Tal como em suas vivendas, casas, apartamentos e automóveis há alarmes e mil formas diminuir o medo do incalculável que entra pelas frinchas dos portões e janelas de grades. Ao contrário das prisões as defesas são para não entrar ninguém enquanto as cadeiras sofisticadamente também arranjam maneiras de não poder sair. Os novos condomínios lembram as fortezas medievais, suas pontes levadiças, seus guardas e sentinelas, agora com os seus múltiplos portões com siglas, guardas-noturnos com televisores, e câmaras de vigilância guardas eletrónicos e humanos que estão bem mais confortáveis do que na época medieval mas prestam os mesmos serviços e passam pelos mesmos riscos.
       Na mudança do milénio, o medo de um caos informático colocou milhares de pessoas frente aos computadores sem que nenhum deles avariasse. A causa do medo foi líquida pois nada havia de concreto. As vacas loucas produziram uma ansiedade quanto à alimentação que não teve muitas consequências, para além das notícias sensacionalistas. Raro será quem conhece alguém atacado com tal doença. A cada dia, podemos receber um aviso de novo vírus informático que logicamente não pode surgir anunciado previamente. Os casos de doenças raras e fatais também circulam com pedidos de ajuda inquietantes mas improváveis.
    O quotidiano cada vez tem mais desafios mas muito mais riscos que impelem para uma vida instável ou pelo menos sem a segurança prevista por todos depois da revolução industrial. O certo é que os frutos da revolução tecnológica podem dar a alguns, muito poucos, um nível de vida paradisíaca, mas não deixa ninguém sem os riscos invisíveis e ocultos por toda a parte. 
    Giddens vê, no filme Titanic, um sinal de globalização e homogeneidade do gosto centrado numa paixão impossível entre duas pessoas de classes desiguais. Já Jacques Attali vê melhor o complexo do Titanic deque o mundo de hoje sofre. O êxito da última versão de 1997, (já teve muitas, uma até em 1996,), que proporcionou lucro de milhões, tem causas mais profundas e inconscientes. Não é a tragédia implacável do passado mas os riscos e medos de um futuro que se adivinha e para sempre incerto porque o perigo não é visível nem localizável. Os espetadores vivem a própria antecipação do temido colapso do sistema. Mas os riscos não se limitam a estar no escuro. Estão dentro do navio, na aparência de beleza, segurança, musica que embala, gente com sonhos e utopias. Mas sem botes, nem salva vidas, nem coletes, nem possibilidades de um salvamento ordeiro e rápido. As pessoas projetam no filme todos os seus medos a ver se exorcizam o futuro com a visão de um passado morto. Um ritual do sacrifício repetido milhares de vezes, para apagar o medo e dar salvação que infelizmente não se pode prometer.
    Pois todos sabem que não há redes de segurança e o circo tem de continuar.