" Utopias, Ilhas e Realidades"

    ©  Lúcia Costa Melo Simas

 

 

 

Variação em azul.

[ © Porto. Azulejos séc. XIX. Foto digital tratada]

[2002,  Levi Malho ]

 

 

  


 

                          Utopias, Ilhas e Realidad es

                                         

 

As Ilhas são locais míticos de paraísos impossíveis   

 

     O que têm de mais perigoso as utopias é que elas se podem realizar.
     Parece que escrevendo isto não tenho apreço por esses sonhadores utópicos, mas na realidade é porque os tenho em muita consideração que vejo o maior perigo. De quem não gosto é dos que querem impor as utopias e passá-las à prática. Coisa que quem escreveu as utopias nem sequer pretendeu mesmo, é que se realizem. O sonho bastava para a sua ânsia de liberdade e normalmente não foram revolucionários na prática, nem adeptos de violência.
   O que se nota, comparativamente às utopias da Antiguidade e no decorrer da História até aos nossos dias, é que havia sempre uma imensa esperança em todas as utopias e tudo isso se alterou profundamente, tendo agora as utopias uma mensagem pessimista e uma imagem terrivelmente negra e sombria do futuro.
   Os gregos eram realistas e paradoxalmente tinham uma tendência para a utopia. Apesar do gosto pela harmonia e pelo meio-termo, há muitos contrastes na sua mentalidade. Hesíodo apresenta já um modelo utópico, a “Idade de Ouro” na sua obra “Trabalhos e Dias” que serviu de modelo a muita obra posterior.
   Conforme sintetiza Maria Helena Urena Prieto
[1] as utopias míticas tinham por características comuns uma vida integrada na natureza; a crença na riqueza e produtos da terra, onde correria leite e mel; e uma vida sem dor em que os homens viveriam em festa, como deuses, sem perigos, nem discórdias.
     Na literatura dos romanos aparece Virgílio, entre outros escritores latinos com as mesmas características anteriores mas tendo já certas características políticas que acentuam a figura de Augusto no tempo da Pax Romana.
    Santo Agostinho será um escritor cristão que apresenta a grande obra “A Cidade de Deus”. Não se pode considerar que fosse essa a sua intenção pois Cristo não pode ser visto como uma utopia, mas sim como Messias, porém o quadro que traça tem semelhanças com as obras anteriores no aspecto literário das suas imagens e expressões.
     Rousseau, (1712- 1778) um dos grandes sonhadores de utopias, escreveu “O Emílio” (1762) sobre a educação de uma criança, com um método revolucionário. Mas o contexto em que decorre o processo educativo é irrealista, num cenário abstracto, em que a orfandade da criança e a ruptura com a sociedade só é possível para criar uma suposta pedagogia natural. Há entre o educador e seu discípulo uma total libertação de constrangimentos sociais proporcionados por meios económicos. É uma utopia pedagógica para exemplificar um naturalismo filosófico com um cunho vincadamente eudemonista. Teve um impacto tão grande que há quem lhe atribua uma “revolução copernicana” da educação tais foram os pedagogos que quiseram pôr a sua utopia em prática, como Pestalozzi, Froebel, Freinet ou Dewey.
    Apesar de utópica, separa a pedagogia antiga da moderna pelo novo conceito da infância e pela noção de educabilidade da natureza humana inacabada. Mas as suas pretensões nada têm de prático mas visam uma nova filosofia da educação, sem que os meios pedagógicos sejam subsequentes a uma didáctica possível.
    Um pai quis cumprimentá-lo pela obra e dizer-lhe que estava a educar o seu filho com aquele método. Rousseau olhou-o muito espantado e respondeu: - Tem coragem para isso? Eu não tenho.
      De facto, o pobre Rousseau abandonou os filhos que teve à caridade pública e não parece ter tido muitos problemas de consciência. A sua utopia pedagógica defendia uma teoria fundamentada num ideal de “bom selvagem”, que nunca existiu. O mito do bom selvagem servia para criticar uma dada sociedade, mas se vivesse na realidade com os tais “bons selvagens”, Rousseau sentiria forte arrependimento...
     Com lucidez e grande perspicácia Bertrand Russell chamou a atenção para os perigos da utopia de “O Contrato Social” que teve os seus frutos na governação de Robespierre e nas ditaduras da Rússia e da Alemanha e acrescentava “... Não me aventuro a predizer quais os novos triunfos que o futuro tem a oferecer à sua memória”
[2].
     É por isso que as utopias encerram sementes de frutos que nem os utopistas prevêem!
     Se temos de recuar até Platão e à sua mítica “República” para falar em utopia, foi o inglês Tomás More, (1478 ou 1480 – 1535) que foi declarado santo em 1835 e era amigo do humanista Erasmo de Roterdão, que, em 1516, criou a “Ilha da Utopia”
[3]. Foi baseado no grego que criou a palavra por justaposição de ou e topos, ou seja, com os termos “não” e “lugar” para assim designar a cidade da “República perfeita”. Estaria numa ilha que não existia em lugar nenhum.
    Começava assim o mito da ilha feliz que se prolongou até quase aos nossos dias e reside ainda no imaginário colectivo das sociedades urbanas.
    Como em muitos outros casos posteriores, na Ilha da Utopia a propriedade privada era abolida, os habitantes trabalhavam na terra, por turnos de dois anos, e no resto do tempo os utopes dedicavam-se ao estudo das ciências, filosofia e religião. Era um estado racional e sem intolerância religiosa. Aceitando o egoísmo como próprio do homem, procuravam a felicidade na ajuda mútua, pois o prazer de uns seria conveniente para os outros. Praticavam a solidariedade, mas o principal aspecto da Ilha era a tolerância religiosa, só sendo proibida doutrina que negasse a existência de um Deus criador de tudo e a imortalidade.
   Tomás More ou Morus teve por modelo a ”Politeia” de Platão, com a sua “cidade-estado ideal” tal como aconteceu com Francis Bacon na sua “ Nova Atlântida” e em “A Cidade do Sol” de Campanella. Mas talvez se possa dizer que as utopias são tão antigas como a própria humanidade.
    Sonho, revolta, inconformismo, fuga para um lugar diferente, ou para um futuro ideal, as utopias têm sido escritas nas mais diversas formas e com os mais diferentes fins. Para o filósofo Manuel Antunes seriam o produto de épocas de crise e de crítica “porque as instituições pesam e a estabilidade cansa”.
    Misturando a racionalidade e a imaginação as utopias são sempre um risco. Apontam para perigos da humanidade ou idealizações em que a política e a ciência são satirizadas, criticadas ou louvadas numa escatologia que tem a ver com a profecia. Tanto podem ser por desejo de um novo mundo, como por medo ou refúgio numa sociedade que os utopistas acreditam ser possível.
      Francis Bacon (1561-1626) não sonhava com uma nova ordem social ou política. A sua “Nova Atlântida” seria um reino da ciência, como que uma ilha laboratório de todas as invenções humanas, onde a experimentação e o conhecimento da Natureza eram as tarefas de todos os habitantes. Todavia não chegou a concluir o seu escrito e dedicou-se mais à filosofia e à política em que se demonstrou ser muito hábil e sem escrúpulos. 
    
Se a “Utopia” de More é muito estudada e citada o mesmo não sucede tanto com a obra de Tomásio Campanella (1568- 1639), “A Cidade do Sol”
[4], que foi escrita enquanto estava no cárcere, o que lhe dá um cariz muito peculiar. A originalidade do título desta obra pertence ao grego Evémero e parece ter influências de Diodoro Sículo que imaginou um povo adorador do Sol. Campanella esteve prisioneiro durante três décadas e submetido a torturas, devido às suas ideias filosóficas e à sua política, por causa de ter lutado contra o domínio espanhol na sua terra. Há igualmente algumas influências da “República” de Platão que também pretendia a existência de uma Polis do homem livre, embora prisioneiro de um ideal que o ultrapassa, apresentava ao homem razões para viver e encontrar uma felicidade na sabedoria e no bem.
     Apesar de todos os seus méritos, esta obra não foi muito bem aceite por Álvaro Ribeiro, pensador português e seu tradutor, que a considera uma “utopia inferior” valorizando apenas pela pena de reclusão do autor, que tornaria “A Cidade do Sol” como que o exemplo de uma prisão modelar e que clamaria contra a falta de liberdade. Pina Martins não tem o mesmo modo de pensar e considera-a uma “obra-prima do seu talento criador de pensador utópico, do segundo renascimento”.
     Esta é a sua obra capital de carácter político e descreve a vida dos solitas que também não teriam propriedade privada nem instituição familiar pois retira o amor-próprio e dirige-o apenas à comunidade.
    Haveria um chefe supremo, Hoh, o Metafísico, senhor da maior sabedoria que um homem pudesse alcançar. O seu poder era incontestável e tinha o papel de “purificar as consciências”. A ele se associavam Pon, Sir e Mor, respectivamente à Potência, relativa ao governo; à Paz e a Guerra; a Sapiência, relativa às artes e à ciência, com um livro único para todo o saber, e o Amor que não tem em vista a família, ou o amor pessoal, mas o amor da comunidade. 
   
O grande empenho no saber contrasta com o rigor e negação da afectividade dos seres humanos. Exceptuando o amor maternal que não põe em causa, existe uma vigilância sobre as mulheres e os homens que só valoriza o vigor, a coragem, a generosidade e todas as virtudes cívicas. O eugenismo está fortemente presente e regulamentado para o apuramento da espécie que é exaltado.
     Educados todos, homens e mulheres, de modo similar, estariam preparados para a guerra por dedicação à república. Os magistrados observando as crianças e os adolescentes determinariam o lugar do seu trabalho. Os mais robustos e com dificuldades em aprender teriam tarefas no campo, outros mostrariam interesse em aprender um ofício mas só, se o considerassem capaz, a ele acedia. As mulheres trabalhavam como os homens, na guerra e na paz, pondo a grande ênfase na gestação e dando lugar inferior às estéreis. Um homem sofrendo de paixão era distraído com festas, jogos e outros até lhe passar a paixão. Tudo estava minuciosamente regulamentado, comidas, vestuário, tarefas, punições e prémios. Sem abolir a religião, Deus, os Anjos, a confissão, os sacerdotes tinham porém, mais um papel regulador da sociedade, do que das práticas religiosas. As aspirações desta sociedade eram muito ambiciosas quanto à cultura e à ciência. Desejando mostrar um povo feliz e sábio, o sacrifício da liberdade, se eles pudessem ter consciência disso, leva-nos a pensar que os solistas viveriam numa terrível liberdade que se assemelharia a uma gaiola dourada, sem liberdade de voar. As crianças e os velhos não eram ignorados e recebiam carinho e alimentação condigna. Os Velhos desempenhavam até tarefas importantes.
   É de notar que se afasta do aristotelismo que troca por um experimentalismo que o devia ter impressionado. Campanella era amigo de Galileu, tanto que escreveu uma obra em sua defesa.
    Apesar de algumas ideias confusas, abstrusas, da aceitação da astrologia, o seu fito era criar uma teocracia em que o Pontífice seria representante de Deus na Terra e a união de todos os Estados.
   A obra de Daniel Defoe (1660- 1732) “Robinson Crusué”
[5] (1719) é lida até por crianças, sem que a mensagem da utopia as atinja. Robinson não esteve realmente só na ilha deserta. Tem consigo a sua memória, herança cultural, o espólio de onde sairá toda a construção. As suas aptidões favorecem a sua rude sobrevivência, mais do que um rapaz do nosso século XXI.
   Facilmente se torna construtor, prepara engenhosas armadilhas para se defender dos possíveis animais selvagens, e mesmo de homens ferozes, planta, colhe, luta com os animais para os domesticar, caça, constrói quase um “forte” armado até aos dentes. Tornou-se o símbolo da persistência e da grande força de sobreviver que é a coragem aliada ao bom senso.
        Escrito na primeira pessoa e com belo estilo literário, é considerado o primeiro romance realista. Desenvolve a sua tese, transforma-a em mito e cria um mundo paralelo, quase feliz para um burguês que metodicamente ordena o tempo, as tarefas e o seu mundo. O único risco são os outros, os selvagens canibais, e a única pena a solidão. A vida quotidiana, descrita em pormenor, transforma-se em romance e muitos foram os autores que o seguiriam no tema até aos dias de hoje. Porém nunca foram tão felizes nas suas obras como na original foi Defoe.
    O autor escreveu um Robinson que poucas pessoas conhecerão na íntegra. Se a primeira parte é tão conhecida, já na segunda e terceira parte da obra o estilo torna-se didáctico e moralizante. As aventuras perdem o interesse e as reflexões do herói não atraem os leitores nem com as suas lições de religião, nem com as lutas entre ingleses e espanhóis. O herói regressa a casa, a Londres, com 72 anos e as saudades do lar não o abandonaram nem o tornaram inadaptado.
      Não há, porém, muito visível a crença no bom selvagem e é antes a epopeia da felicidade burguesa que se quer afirmar. Religião, natureza, engenho e inteligência dariam todo o Bem ao homem. Apesar disso, pensa-se que Rousseau apreciou e sofreu influências de Defoe na sua exaltação da Natureza boa e na corrupção da sociedade. Até mesmo o cinema, como expressão estética e ideológica, já tentou várias vezes o tema que tanto atrai, mas as obras ficam sempre menores.
   Outra obra que nem sempre foi tomada a sério é a de Jonathan Swift, (1667-1745) natural de Dublin, “As viagens de Gulliver”,
[6] escrita em 1726, apesar de já ter anos antes estruturado o trabalho. A história encantou as crianças, porém não é a jovens que é apenas dedicada, mas tem intuitos satíricos que reflectem a época, vida e reflexões do polémico autor.
     Sob a aparência recreativa, trata-se de uma tremenda sátira às convenções humanas, tradições, hábitos e costumes; passando pelo ensino, pelas instituições, à política e aos modos de corrupção, das crenças à economia e ciências. Tudo é alvo de crítica mordaz e, convenhamos, com grande profundidade quando lido atentamente e não por simples distracção de crianças que, infelizmente, são os mais conhecem e menos entendem. Tornou-se altamente suspeito ao governo da Inglaterra pela crítica que se esconde sob a capa de historietas. 
   
Para além da ilha dos anões, (Lilipute), onde a educação das crianças merece mil cuidados, e a ilha dos gigantes, (Brobingnac) em que descreve utopicamente muito do que gostaria de ver alterado no seu país, há terras em que a estranheza dos habitantes como a dos Lapucianos, muito inquietos e aterrorizados, inábeis artesãos, mas dados à astronomia, serve para uma crítica mordaz aos números, à ciência, a formas de vida que na sua época conheceu. A terra dos Balnibarbos e a sua Academia onde os mais estranhos “sábios” procuravam descobrir as mais espantosas coisas como o segredo de lavrar a terra com porcos, ou caminhar em terra com a ajuda dos ventos.
[7] Houve outros povos como o dos cavalos, que na obra são denominados Huyhnhnms que na língua daquele país significa – a Perfeição da Natureza – e são nada mais, nada menos que os conhecidos cavalos e que, no fim, Gulliver prefere ao mundo humano e estes sendo os Yahús, raça desprezível e maldita. A linguagem é um dos assuntos mais curiosos visto abolirem a mentira, logo o pensamento é expresso de modo mais simples e com menos palavras. A linguagem do homem aumenta a ignorância e a dos Huyhnhnms só usavam a palavra para comunicar.

    “As ideias de Poder, Governo, Leis, Castigo e outras semelhantes não podem ser citadas (...) sem longas perífrases.”[8] Tudo é tão do agrado de Gulliver, que só sairá do país por ordem do governante, por decretos da assembleia geral da Nação que, interpretando o pensar do povo, considerou contrário à razão e à Natureza conviver assim como se fosse um deles.

     Em nenhum dos outros países visitados Gulliver manifestou tanta admiração e amizade como com os nobres cavalos que tinham dos homens as piores impressões. É aí que desejaria ficar, em vez de regressar à sua terra natal, mas tendo sido expulso de lá, pela sua própria condição de humano, volta para junto dos seus semelhantes profundamente decepcionado.

       A Humanidade tem tido, ao longo dos tempos, muitas utopias porém raras foram as que a História guardou que não tivessem uma mensagem de esperança e optimismo. O futuro fundamentado na moral, da ciência, nas inovações políticas e principalmente nas reflexões filosóficas acerca da sociedade e dos seus saberes foi sempre bastante prometedor e a esperança dava um colorido dourado a uma Idade do Ouro que, em vez de se pôr lá para o passado, nos primórdios da vida na Terra, raramente considera o melhor dos tempos, se colocava nos fins, a Idade de Ouro da Eterna Felicidade. Houve durante muitos séculos um certo messianismo que se reflectia na esperança de um futuro em que a ideia do progresso se conciliava com a estrada da perfectibilidade humana.  

 

PARTE  II

     

 

Nunca a utopia representou um carácter mais reaccionário do que hoje.

Paul Nizan

 

      Na obra de Dostoievski, “Os Irmãos Karamazov” há um episódio cujo tema justamente célebre é o seguinte: Cristo voltou à terra, em Espanha e ressuscita um morto para se reconhecido. O grande Inquisidor é um velho asceta de 90 anos que o manda prender. Visita-o e apesar de saber que Ele é Cristo explica porque O tem de condenar à morte, como herege, na fogueira como tantos outros.
   A razão é que o povo, se soubesse do regresso de Cristo, tornar-se-ia rebelde. Desapareceria a obediência. O grande Inquisidor diz que os homens se submetem porque tudo decidem por eles. E acrescenta: «Eles acolherão as nossas sentenças com alegria porque os libertámos da grande preocupação de decidir pessoal e livremente… haverá milhares de milhões de homens felizes».
     É curioso como esta tese está presente nas utopias mais recentes. O problema da felicidade resolve-se de modo pessimista e à custa da perda da liberdade. Instala-se o pesadelo de um mundo qualquer em que se aprisiona o pensamento e a criatividade. A imaginação aparece como o último inimigo a derrubar para a uniformização de um “formigueiro” de massas, tal como, com tanta crueldade e terror se instalou em países reais.
     Alguém toma o papel de Deus e procura dar a felicidade, mas as utopias terminam tragicamente tal como terminam na vida real as tentativas de igualdade feliz dada a todos. Jean Lartégui no prefácio à obra de Lucien Bodard, “A China, esse pesadelo”
[9] tornado real de uma existência kafkaiana leva a uma suspeição contínua, com o aprisionamento da ciência, dos intelectuais, a mobilização incrível da massa de um povo que à espera da felicidade maoísta em que a única família seria o povo, o formigueiro humano acreditou numa sociocracia que em alguns pontos se adequava à mentalidade chinesa, obediente ao seu senhor, prática e cansada das terríveis fomes, doenças e misérias. Grandes cheias, grandes fomes e grandes guerras foram durante milhares de anos as pragas deste pobre e imenso país.
   Não se pretende aqui escrever um tratado sobre as condições na China, mas comparar a utopia e a realidade de modo que chega a impressionar tal são as semelhanças e paralelismos que facilmente se evidenciam
    Zamiatine (1884 – 1930) – autor da utopia “Nós – a liberada de no ano 3000”,
[10], foi um grande viajante e percorreu muitos países entre os quais a Inglaterra que muito o impressionou. Mas as suas raízes são russas, terra que conhecia bem. Todavia foi na Inglaterra em 1925 que a obra foi publicada e depois em outros países. Mas, entre eles só muito mais tarde consta a Rússia. Com uma frase lapidar ele condena a opressão:

     «A vossa doença é a imaginação».

      Zamiatine já não tem uma utopia apenas em outro lugar qualquer desconhecido, mas projecta-a no futuro, como muitas outras obras mais recentes, muitas delas de ficção científica e que, mais do que uma utopia, pretendem defender somente uma tese científica, uma descoberta, ou sonhar com seres vindos de outros planetas.
    É curioso notar como se inverteu a mensagem das utopias neste último século. Antes era sempre uma esperança de conseguir um mundo melhor, uma crítica à sociedade com um mundo novo que retiraria o melhor do já existente e, com base nesse, a criação de uma sociedade que se imaginava com optimismo, por vezes muito irónico, mas sempre possível de melhorar o que já a Humanidade alcançou.
      Havia uma imensa confiança nos poderes da natureza, do homem e na ciência.
     Agora as utopias do futuro são terrivelmente pessimistas. Entra-se em mundos onde se vive numa opressão da mente auto controlada e vigiada que transforma as vidas em pesadelos e não em risonhos sonhos de uma sociedade feliz. A ordem, a felicidade e toda a existência calma é orientada e severamente vigiada por elites sempre tirânicas apesar da aparente tranquilidade que conseguem atingir, todo o equilíbrio está oculto na presença oculta de um Benfeitor, do Grande Irmão ou dos Alfa todos poderosos.
     Tudo isso esconde o que já se chamou “o trio apocalíptico” a ciência, a técnica e a razão. Isso mesmo está patente na obra “Nós” num mundo do futuro em que a palavra eu ou meu não é já correcta.
      Face a uma civilização onde tudo são números, tudo está cronometrado, todos sabem a tarefa que lhes compete, existe uma nova religião, polarizada no Benfeitor, figura mítica, símbolo do grande revolucionário que chegado ao poder implantou um regime de ferro através dos números.
   Escrito na primeira pessoa, D – 503, é o personagem narrador, o que permite duas visões de um mundo cada vez mais dilacerado e em conflito emocional e ele apercebe-se de que o seu papel social não é o seu eu que se dilui e aniquila no nós. Face a um vazio imenso sente todavia no seu íntimo a consciência de um eu palpitante de vida e que lentamente se quer revoltar.
     Para o personagem a imaginação é «o efeito do veneno verde” As pessoas sentem-se felizes porque não têm preocupações, tudo é decidido por “Alguém” e nele confiam. Já ultrapassaram o tempo em que «cada um escrevia o que lhe passava pela cabeça. Perante tal facto para ele inconcebível, ele observa deliciado o “anjo da guarda” que estava a saborear um soneto intitulado “Felicidade” e escreve: «trata-se de um poema de rara beleza e de profundo conceito». A primeira quadra era assim:.

                                Eterno amor é o de dois vezes dois

                                 Pra todo o sempre quatro apaixonados

                                 Onde é que já se viram namorados

                                 Como os inseparáveis dois vezes dois?

 

 

   A criação artística, tal como a compreendemos hoje, passa a ser considerada uma doença devida a epilepsia que se teve de eliminar. A música obedece à geometria, ao cálculo, o próprio teorema de Pitágoras transforma-se em sons que já não são melódicos, mas cronometrados em escalas cromáticas. O sonho da harmonia celeste do matemático e filósofo Pitágoras foi materializado apenas pela racionalidade.
    Os números servem para o controlo do pensamento, do tempo, das tarefas. Tudo pode ser cronometrado e planeado através da “Tábua dos Mandamentos Horários” As casas de vidro eliminam a privacidade e desaparece o eu, como ser pessoal, com a sua interioridade diferenciada, para dar lugar ao “nós” onde o pensamento é o mesmo multiplicado por milhares de mentes. Não há erros na matemática em que as pessoas são os números. No final o personagem submete-se e submerge no “nós” da massa, afirmando o inevitável triunfo da racionalidade. Todavia ele sabe que há ainda quem lute por uma liberdade sem preço.
      Manuel Portela afirma que se trata de uma ficção em que se dá o triunfo da razão e o resto, que é quase tudo o que torna o homem humano, desaparece.
      Esta obra pode ser colocada como uma antecessora de muitas outras que parecem ter sofrido a sua influência. Teria inspirado mesmo George Orwell para escrever “ 1984 “ como também teria influenciado Aldous Huxley na famosa e muito conhecida obra “O Admirável Mundo Novo”.
    No caso de Orwell, cuja obra bem conhecida tem o nome de “1984”, trata-se de um mundo sombrio, de seres miseráveis vivendo em constante medo e suspeita, com uma vigilância ainda mais penosa e sombria que elimina a capacidade de pensar sem ser de acordo com o Grande Irmão que tudo sabe e tudo deve saber e controlar.
   O passado é sucessivamente reescrito e resumido, suprimindo-se as palavras até tudo se poder resumir através da novilingua a linguagem reescrita dos dicionários do futuro que eles querem controlar dominando o passado e o presente. Assim subjugariam o futuro.
     Uma vitória sobre a memória e a repetição da história, dos livros e de tudo, sempre em edições alteradas, modificadas, simplificadas até á invenção de realidades virtuais. É ainda o tema da supressão do pensamento livre, agora na versão de deixar de se poder dizer porque se irá deixar de pensar. Cada ser humano é igual a outro, sem originalidade, como que fotocopiado, todos peças de uma grande máquina que o Grande Irmão domina e com a qual luta contra qualquer rebeldia. As lembranças “falsas” são por fim apagadas e o personagem, Winston aceita a vitória sobre si mesmo. Em paz, «ama o Grande Irmão». É a derrota total do homem ser racional com sentido, com beleza, arte, fé, crenças, para a vitória da Razão.
    “O admirável mundo novo” de Aldous Huxley coloca igualmente a humanidade no futuro e dividida em dois mundos opostos. A civilização de Ford e a Reserva. Os alfa, beta, gama, etc. todos eles em escala descendente de inteligência e aptidões adequadas às tarefas também em escala decrescente até à maior monotonia e repetição mecânica.
 Todos eles foram bebés proveta seleccionados e educados cientifica e pavlovianamente e foram todos criados para serem obrigatoriamente felizes, com o condicionamento levado ao extremo, desde a fase in vitro até à morte com data marcada. O amor à servidão surge com o apelo à sugestão, às drogas e enquadramento de grande rigor científico.
    A ironia da utopia não esconde as dificuldades em manter sempre a estabilidade da sociedade em harmonia e recorre-se ao sono ou a um estupefaciente para que todos se sintam numa tranquila beatitude sem quaisquer dramas.

   . Denota um pessimismo atroz, mas a nossa realidade tem muito do “Brave New World “ colhido das palavras de Shakespeare na peça “A Tempestade”. O próprio autor, mais tarde admirava-se de tantos dos factos que tinha imaginado se terem tornado realidade que resolveu escrever uma outra obra “O Regresso ao Admirável Mundo Novo” que é já um ensaio das mudanças e manipulações científicas e políticas que podem já estar a acontecer no nosso mundo há bastante tempo. Escrever quando não se tem nada a dizer, destruir todo o gosto pela leitura, tornar crível a estabilidade e a felicidade sem responsabilidade, todo o edifício social se estrutura numa rotina sem o perigo da arte, nem o risco da ciência pura e muito menos a religião.
     Lenina e o Selvagem vindo da Reserva, são o par que se desencontra nos diálogos impossíveis entre dois mundos. A sociedade totalitária, eugénica, funcional, e dada a grandes manifestações de «Orgia-Folia» leva o clímax da acção à morte de Lenina que nunca entende a beleza que o Selvagem lhe oferece e ao suicídio do Selvagem desesperado e enlouquecido com um imenso espectáculo montado nesses enormes pavilhões para ouvir músicas e cantores, até em play back que atraem as multidões. Já não se pode falar apenas de uma ameaça, já tem uma estrutura, um projecto em marcha. Huxley falava de 600 anos, talvez não seja preciso tanto para as classes bem condicionadas
   Deus manifesta-se pela ausência, não pode estar presente por ser incompatível com as máquinas, a felicidade universal assim obtida. E quando o Selvagem argumenta que se terá de pensar em Deus, na solidão, à noite, pela filosofia, quando se pensa na morte…
    Mas os argumentos vencem-no. Nunca se está só, as pessoas não conhecem a solidão, estão condicionadas a odiá-la. Afinal não é preciso fazer nada de desagradável e fazer coisas sem ser mandado desorganizaria tudo. Nada se faz por iniciativa própria. E o Selvagem ainda reage: - «É a renúncia, então? Se tivessem um Deus, teriam uma razão para a renúncia.
    A morte de Lenina e do suicídio do Selvagem após a “Orgia-folia”, que enlouqueceu a multidão ébria de espectáculos, traz a paz para todos que regressam ao seu admirável mundo…
    A obra de Ray Bradbury merece a celebridade que tem, dada a profundidade do sentido filosófico que imprime aos textos aparentemente simples ou ficcionistas mas que têm densidade de múltiplas camadas de leituras. É exemplo disso a sua obra de 1953 Fahrenheit 451 – a temperatura a que um livro se inflama e consome…  --- cujo personagem principal, Montag, é um bombeiro num futuro em que os bombeiros são incendiários de livros e já não apagam fogos, num mundo em que os seres humanos são biliões, são “demais” tornaram-se desconhecidos, perigosos. E Montag faz o que nenhum bombeiro faria, começa a tentar descobrir o sentido da sua vida, dos livros que queimava, das pessoas que o irritam porque já nem sabem conversar, nem podem contemplar um quadro, ou ler um livro que obrigue a reflectir. O suicídio de uma mulher que defende livros é a porta que se abre para tentar entender esse afecto a esses perigosos inimigos da estabilidade e da vida naquela sua normalidade. Daí em diante, os diálogos que tenta, apesar do risco da censura, dão um afastamento e lucidez progressiva face ao que o rodeia.
    Tal como Giles Lipovetsky, especialmente na sua obra “A era do Vazio
[11]” com a crítica à vaga de hedonismo eufórico e desculpabilizante dos nossos tempos livres preenchidos por uma socialização cada vez mais flexível, Bradbury afirma: «Vive-se no imediato. Apenas conta o trabalho (…) e a dificuldade de escolher uma distracção. Para quê aprender qualquer coisa, além de carregar botões, ligar comutadores, enroscar parafusos e porcas?». O fogo tudo leva consigo. A própria morte é limpa. O Grande Crematória tudo resolve. Os bombeiros, na sua nova protecção da paz, zelam pelo espírito sem sentimentos de ódio, de inferioridade. É a nova fogueira da Inquisição onde o espírito livre é reduzido a cinzas. Finalmente a esperança surge quando grupos de homens se reúnem para memorizar os preciosos livros que cada um procura decorar como o legado da Humanidade. A criação e a imaginação através da literatura surgem como as formas únicas de libertação do homem dos governos que «deram todos os meios para ser feliz, e tiram-lhes as razões» diria Alberto Camus, enquanto Bradbury insiste que lhes ensinam a perguntar “como” mas nunca a perguntar “porquê” e quem teimar irá tornar-se muito infeliz.
    O comportamentalista Skinner desenhou uma utopia na novela Walden Two, onde, curiosamente também não há propriedade privada, e através dos reforços positivos se dá uma racionalização da educação, do trabalho e dos modos de vida em que se pretende tornar as pessoas felizes sem que a liberdade esteja em causa. Incentiva-se a actividade da investigação sem descurar o trabalho prático, tal como já Campanella e outros visionaram. Todos os aspectos focados não são novos, apenas não há um poder político e a ênfase na responsabilidade da educação é reforçada. O problema novo é a forma que Skinner crê ser científica e viável de eliminar o que para ele é a ilusão da liberdade. É uma utopia em que todas as pessoas são felizes “no melhor dos mundos possíveis”, mas a visão idealista do ser humano nega-lhe os aspectos inatos da agressividade que não corresponde correctamente às investigações científicas, como a etologia de Konrad Lorenz, nem às teorias psicanalíticas.
   As utopias mais recentes apostam nas potencialidades da arte como forma de luta contra qualquer totalitarismo e condição de preservar a liberdade. É pela estética, seja ela pintura, literatura ou outra, que a utopia lança um arco-íris de esperança sobre as sombras do cientismo tecnocrata e a racionalidade extrema. Todavia, a realidade não confirma tal tese. A cultura germânica, com a sua música e literatura tão ricas e seculares, não obstou ao horror do nazismo e do holocausto, nem na Rússia, com todos os poetas e escritores, se evitou o Gulag. Ian Kersaw, o historiador tão famoso de hoje
[12], afirma que «o génio cultural não é prevenção contra a barbárie ou contra a adopção de formas de vida extremamente desagradáveis.
    Nem o sonho utópico da ciência salvadora do homem de Auguste Comte, nem a estética e todo o seu cortejo de maravilhas como queriam outros tem o poder que a ética e os valores religiosos no mais profundo sentido e pureza podem substituir o único progresso que dá sentido à Humanidade: o progresso da espiritualidade e sentido fraterno entre os homens. Lévinas, com todo o seu sonho de dádiva ao outro, representa a voz da filosofia e do perdão na sua forma mais límpida do direito de sonhar um mundo de liberdade e Amor.  

 

 


 

NOTAS

 

[1] - Da Esperança na Obra de Eurípedes, Lisboa, 1965. p. 133.

[2] -  História da Filosofia Ocidental, L. IV, 3.ª Edição, S. Paulo, p. 249

[3] - A Utopia, Col. Filosofia e Ensaios, Guimarães Editores, 1951

[4]  - A Cidade do Sol, Col. Filosofia e Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa, 1953.

[5]  - Robinson Crusué, Daniel Defoe, Portugália Editora. Lisboa,

[6]  - Viagens de Gulliver, Jonathan Swift, Portugália Editora, s/d.

[7] -  Viagens de Gulliver, Ibidem, pp. 171 – 173.

[8] - Ob.cit. pp. 228-237

[9] - A China, esse pesadelo, Edições Gallimard. Editora Meridiano, Lisboa, s/d.

[10] - Nós – Editora Antígona, –  A partir da edição inglesa. 2ª. Edição, 2004

[11] - A Era do Vazio, 1989, pp 21-23

[12.] -  A Incluir.