Ciência e Percepção"

  • Um olhar sobre a natureza da luz, a relatividade e a subjectividade:

    • Uma progressiva ontologização da percepção através do olhar

    ©   Ivo Ricardo Lino Aguiar .( 2007 )

 

      

       

 

 

 

 


   

Introdução

 

 

Sob o ponto de vista estritamente científico, a luz é uma matéria de particular importância especialmente no seio da física: a óptica é a subfragmentação da ciência física que estuda a natureza da luz, a sua forma de propagação bem como a generalidade dos fenómenos luminosos. Com a física, obtemos já um salto qualitativo e quantitativo relativamente a apreensão quotidiana do fenómeno da luz. Dizer que a luz é aquilo que permite um conjunto de percepções quotidianas, que a luz é uma forma de energia e que o Sol é uma fonte natural de luz, ou ainda que uma lâmpada emite luz (assim entendida no seu carácter aparentemente substancialista) que nos permite perceber com alguma precisão e exactidão as formas, as dimensões, as cores e os movimentos é algo com que nos familiarizarmos desde a infância, algo que nos transmite uma certa tranquilidade quietante mas que não corresponde na íntegra a uma possível reflexão acerca da natureza da luz. O estudo da natureza física da luz e o estatuto da cor permite-nos obter uma compreensão prolongada sobre certos fenómenos, que por razões diversas é velada sob o véu de um quotidiano apaziguador. Uma vez questionados sobre a essência daquilo que constitui, de facto, a natureza e o poder da luz estaremos preparados para, numa fase posterior, reflectir filosoficamente sobre um conjunto de problemas com que a filosofia se depara: a natureza e o estatuto do real para nós, dando continuidade à reflexão kantiana sobre o processo de integração contínua dos objectos no sujeito; a relação entre a luz ou a generalidade das radiações electromagnéticas e a possibilidade de esta nos aparecer como via de comunicação; a natureza da informação e a sua reapropriação enquanto processo de negação entrópica bem como as possíveis ligações com determinados princípios axiomáticos da termodinâmica.
    No âmbito deste trabalho pretende-se, por esta via, estabelecer pontos de contacto entre o desenvolvimento fervoroso da ciência contemporânea e uma possível reflexão acerca da incorporação filosófica perante a totalidade do humano e das suas exigências para com o universo de universos com que se depara.

    Mergulhados na clarividência do pântano científico desejamos elucidar em que medida a reflexão científica, uma vez reconhecida a sua excelência, não esgota nunca a totalidade do humano, pois posto diante da realidade, o ser humano é um ser que conhece, que descodifica, que descobre, que compreende, que interpreta, mas também e simultaneamente, um ser que deseja e que aprecia, que julga e é julgado por outros que também julgam. A estética constituirá por isso mesmo o desafio último da nossa reflexão.

 

 

 

 

 

1. ACERCA DA NATUREZA DA LUZ

 

 

1.1 – Os modelos explicativos e a física pré-einsteiniana

 

Desde a Antiguidade Clássica que a natureza da luz é um fenómeno caro a todos aqueles que se interessam pela compreensão do mundo e da realidade em geral, tal como ela é, ou tal como ela é na medida em que se torna realidade para nós. No entanto, ainda não se conseguiu pela via da óptica estabelecer uma teoria geral que explique a totalidade dos fenómenos luminosos. Actualmente, o modelo onda-corpúsculo constitui uma teoria que engloba as duas teorias clássicas por excelência: o modelo corpuscular e o modelo ondulatório. Os modelos explicativos da natureza da luz são determinantes no desenvolvimento e no mapeamento da física pré-einsteiniana dos finais do século XIX. É pois este mapa que queremos sumariamente expor, tendo como objectivo a elucidação da sua necessidade na tentativa de uma compreensão aprofundada de todos os fenómenos que com a natureza da luz se relacionem.
    A mecânica clássica de Newton e a teoria da luz de Maxwell constituem os dois pilares fundamentais da ciência na viragem para o século XX. Achamos por isso mesmo urgente e conveniente, elucidar, sob o ponto de vista teórico, aquilo que sinteticamente comporta cada uma destas teorias a fim de melhor nos podemos situar no panorama científico de então.

    A cosmologia pré-newtoniana assenta ainda na crença aristotélica de que o movimento dos corpos se deve a um acto volitivo (desejo) que destes emana e assim se explica que os objectos caiam na terra porque a ela se desejam unir. Aos vinte e três anos de idade, Isaac Newton propõe uma nova mecânica baseada no conceito de forças. Newton implementou na história do pensamento humano uma certa tranquilidade científica. Admitindo a excelência do seu legado, auto-declarando-se como “vítima” de um caminhar assolado por “ombros de gigantes”, o físico britânico, sob a égide da mecânica clássica constitui a primeira alternativa global a quase dois mil anos de aristotelismo. Estamos perante um abrir portas que definirá os rumos de toda a ciência moderna. Todavia, é na génese embrionária de todo este percurso que surge, desde logo, uma espécie de desconforto metafísico, perante tão grande desenvolvimento da física: numa carta de 1692 a Bentley, Newton confessa o sentimento dilemático de quem encarna a evolução legislativa da ciência perante a totalidade do universo. De facto, as leis de Newton apesar do rigor descritivo, respondem apenas ao problema do “como” é que a matéria interage esquivando-se ao problema dos “porquês”: por que é que a matéria interage como interage? Esta é uma pergunta de carácter especulativo que ultrapassa a simples exposição e que instala uma nítida sensação de desconforto perante o todo a que o próprio Newton não ficou imune. De certa forma, toda a carga antinómica que está presente na génese da física e da ciência moderna é sintomática da crescente divergência fragmentária do espírito científico-filosófico.

    As novas leis do movimento que culminam na univocidade da Lei da Gravidade, apresentadas por Newton, tiveram as mais diversas consequências: motores a vapor lançam o homem numa aventura industrial jamais alcançada ao ritmo de barcos e locomotivas que se movem mais rápido do que nunca; pontes, barragens e obras de grande porte podem agora ser edificadas uma vez que com estas leis se pode calcular pela primeira vez, de forma exacta e unívoca, a pressão que cada tijolo exerce sobre outro e assim sucessivamente. Newton apresenta-nos uma força gravitacional puramente mecânica que actua instantaneamente sem intermediários. Aplicando a sua nova teoria das forças à totalidade do universo chega à conclusão de que a força que provoca a queda dos corpos (Galileu) é a mesma que provoca o movimento dos astros (Kepler) definindo assim a sua trajectória. E tudo isto nos apresenta o pensamento de Isaac Newton em torno do dinamismo concentrado na beleza gravitacional e aparentemente universal de uma simples teoria. Esta é a génese sumária de toda a mecânica clássica que definirá um novo rumo com que a ciência moderna se terá de confrontar para confortar.

    O tempo e o espaço são apresentados como absolutos, referenciais em relação aos quais podemos situar, num espaço e num tempo, todos os objectos. Réguas e relógios são assim considerados na sua univocidade universal como tentativas de ultrapassar toda a carga subjectiva de um ponto de vista outro. Tempo e espaço constituirão também elementos categoriais básicos reutilizados por Kant, como veremos, na sua descrição crítica acerca da forma como o mundo se fenomenaliza no sujeito que o percepciona.

    Todavia, enquanto as leis de Newton perpetuavam elegantemente nos séculos que se seguiam, nos finais do século XIX, um novo conceito de ciência invade os grandes pensadores europeus. A invenção do telégrafo e da lâmpada fazem o homem repensar as relações entre a electricidade e o magnetismo. Com base nesta dialéctica e para por fim a muitos paradoxos que iam surgindo no panorama científico, James Clerk Maxwell apresenta-nos um novo conceito de ciência sustentado por uma nova teoria da luz não baseada nas forças newtonianas. Introduz no terreno científico a noção de campo que, no entender de Einstein, constituiu o conceito “mais profundo e mais fértil que a física experimentou desde Newton”. O campo magnético alarga o conceito de força. Todavia, os campos em física, são bastante diferentes das forças apresentadas por Newton: enquanto que as forças actuam de forma mecânica e instantânea em todo o espaço, os efeitos eléctricos e magnéticos não se deslocam instantaneamente, mas levam tempo a deslocarem-se a uma velocidade definida. Maxwell propôs-se descobrir a velocidade destes efeitos e, numa das maiores descobertas do século XIX, utilizou esta ideia para resolver o mistério da natureza da luz.

    Em 1820, Hans. C. Oersted tinha já detectado alguns aspectos semelhantes entre efeitos eléctricos e efeitos magnéticos. Mais tarde, Michael Farady descobre que o campo magnético em movimento pode criar um campo eléctrico, e vice-versa. Se assim é, talvez seja possível que ambos formem um movimento cíclico em que os campos eléctrico e magnético se alimentam mutuamente e transformam um no outro. Daqui resulta, segundo Maxwell, a possibilidade de uma onda interminável cuja velocidade se pode calcular: estamos perante a descoberta de uma das aproximações mais exactas da Velocidade da Luz. A velocidade definida a que se deslocam os campos electromagnéticos é, pois, a velocidade da luz.

    Estão assim definidos os dois grandes pilares da física nos finais do século XIX. Perante este cenário, Lorde Kelvin chegou mesmo a assumir que, nos finais do século XIX, a física, no fundamental, era um assunto encerrado.

    Na viragem para o século XX tornavam-se evidentes algumas deficiências do universo newtoniano. As descobertas de Marie Curie sobre o isolamento do rádio e da radioactividade fizeram agitar o mundo da ciência: no interior do átomo pode estar contida uma quantidade aparentemente ilimitada de energia. A contínua evolução paradoxal do pensamento científico dará origem a duas revoluções paralelas, contraditórias e complementares, a da relatividade e a da teoria quântica. Não pretendemos, no entanto, explorar a inexorável relação dialéctica sem síntese no termo, a que nos conduzem estes dois domínios na física actual. Neste contexto, qualquer tentativa de unificação entre a mecânica de Newton e a teoria de Maxwell falhava.

    Maxwell continuava a afirmar que a luz era constituída por uma onda. Mas afinal, o que é que a provoca? Será o éter luminífero, um gás estacionário por todo o universo, como queriam forçar os mais ortodoxos newtonianos? A tentativa de resposta a esta questão, constitui, como veremos, a génese da Teoria da Relatividade. Urge todavia, neste momento, elucidar as principais diferenças entre os modelos clássicos da natureza da luz que se adequam ao contexto científico descrito por nós até então. É em torno do fenómeno luminoso que se operam as principais revoluções científicas desde a constituição da física moderna até à contemporaneidade: foi assim com Maxwell, será assim com Einstein.

 

O Modelo Corpuscular

 

Em 1666, Newton descobre que a luz branca se decompõe em diferentes cores. Ao incidir um feixe de luz sobre um prisma de cristal observou que este se desdobrava num conjunto de cores diferentes tal como se nos apresentam no arco-íris. A esta gama de cores dá-se o nome de espectro de luz visível; a este fenómeno o nome de dispersão da luz. As cores aparecem sempre na mesma ordem e, logicamente, se as fizermos regressar a um outro prisma, obtemos novamente um feixe de luz branca. Com tal experiência conclui que a luz branca ou visível não passa de um pequeno grupo de ondas do espectro o que influencia desde logo a nossa noção de realidade. Como veremos mais à frente, é o comprimento de onda que nos permite distinguir uma cor de outra.
    Em 1669, na continuidade dos estudos acerca da luz dedica-se ao estudo da óptica e formula uma nova teoria das cores através da qual construiu o primeiro telescópio por reflexão. Em 1672, apresenta à Academia Real de Ciências britânica um trabalho intitulado Nova Teoria da Luz e da Cor onde formula a teoria corpuscular da luz. A luz é apresentada como um feixe de partículas emitidas por uma fonte corpuscular específica. Os pequenos corpúsculos que compõem a luz propagam-se a grande velocidade e em linha recta no espaço. Com esta teoria conseguimos explicar os fenómenos da reflexão e da refracção, mas não conseguimos explicar os fenómenos da interferência e da difracção. Em 1703, Newton foi eleito presidente da Royal Society publicando um ano depois uma obra capital intitulada Opticks or A Treatise on the reflections, refractions and colours of light que mais tarde, em 1717, viria a ser reeditada, em inglês, abordando em especial a problemática das relações entre a matéria e a luz.

 

O Modelo Ondulatório

 

Na tentativa de explicar um conjunto de fenómenos a que a teoria corpuscular não conseguia responder, Huygens, em 1678 apresenta a luz como um movimento ondulatório com um comportamento semelhante à ondulação sonora. Levanta-se de imediato um problema: qual o meio de propagação de uma onda luminosa? O éter luminífero foi a proposta que os físicos de então engendraram, no entanto, a sua inoperância foi preponderante na consolidação da teoria ondulatória da luz. A mundividência científica era completamente dominada pelo universo das propostas newtonianos, pelo que, fora necessário passar mais de um século para que o médico Thomas Young e o físico Auguste J. Fresnel reapropriassem a alternativa apresentada por Huygens. Mais tarde, já no século XIX, León Foucault demonstra que a velocidade da deslocação da luz é maior no ar do que na água variando, por isso mesmo, em função da densidade do material em que propaga na relação inversa à proposta por Newton. Esta demonstração foi fulcral na resolução dos problemas irresolúveis provocados pelos famosos Anéis de Newton, anéis de cor provocados por lâminas delgadas.
    Ainda no século XIX, Maxwell provou que a velocidade de propagação de uma onda electromagnética no espaço equivale à velocidade de propagação da luz reforçando, por esta via, a teoria ondulatória. Segundo o autor “a luz consiste nas ondulações transversais do mesmo meio que são a causa do fenómeno eléctrico e magnético” isto é, uma determinada «modalidade de energia» que se propaga através de ondas electromagnéticas. Segundo a sua teoria, a luz viaja a partir de um foco luminoso com um movimento ondulatório e não necessita de nenhum meio material para se propagar, tratando-se por isso de uma onda electromagnética que nos permite elucidar, agora sim de forma transparente, os fenómenos da interferência e da difracção.

 

A dualidade onda/partícula e a Natureza Quântica da Luz

 

Nos finais do século XIX, inícios do século XX, o modelo ondulatório que defendia a natureza da luz com base na ondulação electromagnética, começou a ser questionado. A então tornada clássica teoria electromagnética da luz não conseguia explicar a emissão de electrões por um condutor quando, sobre a superfície deste, se fazia incidir um raio de luz, fenómeno conhecido como efeito fotoeléctrico. Segundo este efeito, mediante determinados sólidos como os metálicos ou semicondutores, a incidência da luz provoca uma emissão espontânea de electrões. Este fenómeno foi descoberto e apresentado experimentalmente por Heinrich Hertz em 1887 constituindo um enorme desafio à teoria electromagnética da luz. Em 1905, Albert Einstein apresentou uma explicação para o efeito fotoeléctrico tendo como base alguns dos pressupostos da mecânica quântica teorizada por Max Plank, postulando que o fenómeno luminoso é constituído por pequenos «pacotes (ou porções) de energia» a que denominamos de “quanta”. A energia de cada quantum é proporcional à sua frequência e, quando se refere ao fenómeno luminoso recebe o nome do fotão. O efeito fotoeléctrico consiste, por isso mesmo, na transferência de energia de um fotão para um electrão. Este postulado constitui a base de toda a genialidade einsteiniana, permitindo ao jovem físico de então a formulação de uma nova pista para a compreensão da natureza da luz.
    Dada esta evolução, contemporaneamente, o fenómeno da luz deve considerar a dualidade onda / partícula que se aplica, de forma generalizada a todas as partículas materiais constituindo um dos princípios básicos de toda a mecânica quântica. A quantização da luz, permite-nos ultrapassar as limitações da teoria ondulatória e, através da equação do efeito fotoeléctrico, abrir uma nova página no pensamento científico fazendo antever uma ciência nova, revestida de um universalismo disfarçado por uma aparente relatividade.

 

 

 

1.2 – Espectro Electromagnético: um olhar que se sabe olhar

 

A exposição meramente descritiva realizada até ao momento permite-nos obter uma consciência mais apurada daquilo que constitui a natureza da luz. Começamos a perceber que relações estreitas medeiam uma possível essência do fenómeno luminoso e uma necessária estruturação do real a que o homem, enquanto animal ontológico não consegue escapar. Pela explicação científica conseguimos perceber que o real, a que nos referimos quotidianamente, pode estar a anos-luz de uma percepção subtil.
    Despida de toda a asserção vulgar, a noção de luz apresenta-se como um fenómeno físico imbuído de uma grande complexidade. Através da sua natureza, estruturam-se relações espacio-temporais que influenciam complexificadas teorias cosmológicas. Cabe-nos a nós, através da análise breve de um comportamento explicado friamente pela física, alcançar o ponto de vista reflexivo, que nos implicará de forma dinâmica relativamente à linearidade abstracta e mecânica com que a ciência, muitas das vezes, se refere ao real.

    No seio da complexidade do olhar que nos apresenta a natureza complexa da luz, a reflexão filosófica deve estar atenta, à distinção específica realizada entre o espectro electromagnético e o espectro de luz visível que Newton tentou captar através do fenómeno da dispersão da luz.

    O esquema que se segue é elucidativo da forma como o real ultrapassa infinitamente toda e qualquer percepção sobre si mesmo. Através dele conseguimos representar o quão limitativa é a sensibilidade humana face à totalidade cósmica com que se depara de forma constante e instantânea.

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 É perigoso dizer que o esquema pretende captar a totalidade existente no universo, uma vez que a categoria da existência apresenta-se desde logo e à partida com uma força antropológica que nos seduz de imediato a uma correspondência entre a existência e a necessidade de uma qualquer percepção sensível. Digamos que no universo tudo há. A existência, ao nível do universo corresponde a uma proporcionalidade cósmica entre a luz e a matéria, entre a luz e a realidade. Mas afinal o que é o real? É aquilo que vemos? Aquilo que ouvimos? Aquilo que sentimos? Em suma, tudo aquilo que com o humano assume uma relação sensível?
    Na sua totalidade, o fenómeno luminoso, entendido como espectro de radiações electromagnéticas, introduz o homem num universo complexo de relações que o devem fazer (re)pensar o critério ontológico da existência: a radicação ultravioleta, por exemplo, não se vê, não se ouve, mas sente-se; todas as radiações superiores a 800 nm, por exemplo, não se vêem, não se ouvem, não se sentem, e, no entanto continuam a existir a constituir um factor de máxima utilidade no dia-a-dia do ser humano.

    Através da apresentação do esquema apercebemo-nos de que a maioria do real está para além das nossas inclinações sensíveis. O ser humano é uma espécie praticamente insensível face à totalidade do real. A ciência assume aqui uma importância decisiva na (re)descoberta do estatuto do real perante a totalidade complexa da realidade humana.

    O fenómeno da luz ultrapassa a simples visibilidade: a cor, por exemplo, é uma simples descodificação óptica de determinadas ondas electromagnéticas que viajam à velocidade da luz e que variam em função do seu comprimento influenciando o modo como afectam as coisas.

    A luz não constitui um fenómeno que se relaciona na exclusividade com um ou outro órgão sensível. A visão, por exemplo, relaciona-se com a luz através do espectro visível, segundo o qual a totalidade do cosmos se mantém praticamente invisível. Do ponto de vista cosmológico, até ao século XVII, os astros chegavam até nós sob a forma de luz visível, fenómeno que tinha como principal intermediário a retina do olho humano. Com Galileu a luz é ampliada mas continua a ser luz visível ampliada. Com o aparecimento dos telescópios ópticos a luz visível atinge um estatuto confortável mas ainda sob o limite da ampliação. A partir dos finais do século XIX, e pela proliferação das teorias ondulatórias da luz, esta passa a ser encarada como um fenómeno muito mais extenso que a simples luz visível. Surgem então um conjunto de aparelhos telescópicos que permitem ao homem captar e traduzir radiação electromagnética fora da região do espectro visível. Do outro lado da banda, diminuem-se as frequências, aumentam-se os comprimentos de onda e alcançam-se resultados incríveis ao nível da comunicação via rádio. Um rádio, num sentido vulgar dos termos, não passa de um descodificador de determinadas ondas luminosas numa determinada frequência. A natureza da luz surge assim como um importante meio de reflexão acerca dos princípios de informação e comunicação que regem a maior parte das sociedades contemporâneas. É precisamente devido à luz não visível que a informação se propaga à velocidade da própria luz constituindo um verdadeiro meio característico da natureza neguentrópica do ser humano. A luz não visível manifesta-se em entes do universo tão reais e operacionais como outros que se revestem da visibilidade humana.

    A diferenciação introduzida por nós entre o espectro visível e o espectro magnético na sua totalidade é decisiva numa possível explicitação ontológica da condição do humano perante o todo com que se depara. Através dela dividimos o real entre aquilo que se percepciona e aquilo que de certa forma é alguma coisa mas escapa inexoravelmente à percepção sensível que o ser humano tem do real. No fundo, dividimos o real em duas esferas de ser distintas: a esfera de ser antropológica – o que real para mim –, e a esfera de ser ontológica ou metafísica – o real pensado para todos. Na tentativa constante de captar a totalidade do universo, o ser humano é, muitas das vezes, aliciado a efectuar uma justaposição destes dois planos de ser esquecendo a urgência que nos deve ocupar a priori numa possível construção ontológica de um mapeamento real acerca daquilo que constitui, de facto, a forma de ser daquilo que se torna ser no sujeito que já é. A ciência, pelos dados que nos dá acerca da realidade, constitui hoje, mais do que nunca, matéria fundamental com que o espírito especulativo do humano de deve ocupar. Através do esquema seguinte tentamos resumir os dois planos de ser que inquietam a condição do homem no mundo.

 

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A invisibilidade da luz mostra-nos que Ser é muito mais do que ser percebido. Todavia, o facto de algo não ser percebido, isto é, de não assumir uma relação directa e espontânea com a sensibilidade humana, altera por completo o modo de ser daquilo que de facto é alguma coisa. Voltaremos a enfatizar estas distinções adiante, aquando da exposição do legado do pensamento Kantiano e da sua importância na continuidade e compatibilidade para com a relatividade einsteiniana.
    Se por um lado, a reflexão científica nos ensina que ser é sempre mais do que aquilo que nos aparece e nesse sentido, a teoria cientifica, como vimos, influencia a própria forma como experimentamos o mundo, por outro lado, um prolongamento reflexivo acerca de determinados pressupostos científicos (tal como Kant nos apresentará na Crítica da Razão Pura) faz-nos ver que nem sempre podemos estabelecer um plano de equivalência entre o plano da essência e o plano da existência, sob pena de cairmos em raciocínio antinómicos, logomaquias intelectuais, que esquecem a condição antropocêntrica do humano na tentativa de descobrir a natureza do cosmos.

    Uma coisa é saber olhar, outra bem distinta é saber olhar o olhar que se sabe olhar e que se faz coincidir inexoravelmente no humano com o ponto de vista ontológico-metafísico. Se a ciência nos ensina a olhar o mundo, cabe ao humano, na sua condição fundamental, saber olhar o olhar que se saber olhar.

 

 

 

 

 

 

2. DA NATUREZA DA LUZ À RELATIVIDADE

 

 

Com este capítulo entraremos novamente num ciclo mais ou menos expositivo da evolução do corpo de saber científico, desta vez, percorrendo um caminho largamente iluminado pela excelência do pensamento Einstein. A teoria da dualidade onda / partícula constitui, como vimos, um elemento importante que nos permite correlacionar as propriedades essenciais da luz com o esboço de uma possível Teoria da Relatividade que o jovem Einstein, desde logo, engendrava pela descoberta miraculosa do efeito fotoeléctrico. Em 1895, Einstein obtém a primeira imagem clara de que um feixe de luz é uma onda electromagnética a uma velocidade que não se pode alcançar. Com base nas equações de Maxwell, a luz imobilizada num tempo é algo que não pode existir. Nunca se consegue alcançar a velocidade de um feixe de luz, pois este afastar-se-á de nós à mesma velocidade. A constância da velocidade da luz constituirá por isso mesmo, o primeiro grande postulado da Teoria da Relatividade Restrita (TRR). A TRR aplica-se a todos os sistemas inerciais, isto é, a todos os objectos que se encontram ou em repouso ou que se movem a uma velocidade uniforme ou constante relativamente a outro objecto. Para além da constância da velocidade da luz (C), a única máxima universal, a TRR tem como postulado fundamental a relatividade do tempo e do espaço. Segundo Einstein, há uma contradição explícita entre a mecânica newtoniana na qual as velocidades podem ser adicionadas e subtraídas infinitamente e as equações de Maxwell nas quais a velocidade é já uma constante, sempre e necessariamente.
    Para resolver os enigmas em que mergulhava a física do seu tempo, Einstein apresenta-nos ludicamente imagens metafóricas do universo através das quais conseguirá vencer. Nesta linha, propõe-nos o seguinte pensamento: se eu vou num eléctrico à velocidade da luz e olho para um relógio fora desse eléctrico, ele parece parado pois a luz que mo faz observar não consegue acompanhar o próprio eléctrico; ao contrário o meu próprio relógio, dentro do eléctrico, continua a marcar a progressão do tempo normalmente. Daqui o físico conclui que o tempo pode progredir a ritmos diferentes pelo universo, dependendo da velocidade a que nos movemos. Assim, acontecimentos simultâneos num determinado referencial não são necessariamente simultâneos num outro referencial, tal como pensava Newton. Daqui devemos concluir, necessariamente, que o tempo não pode ser definido em termos absolutos: há uma relação inseparável entre o tempo e o sinal da velocidade. À dilatação que ocorre na relativização do tempo corresponde a contracção relativamente ao espaço. Se as réguas e os relógios se distorcem à medida que nos movemos mais depressa, então, tudo aquilo que medimos com réguas e relógios também é necessariamente alterado, incluindo aqui a matéria e a energia.

    A matéria e a energia podem transformar-se uma na outra: a massa de um objecto aumenta na justa medida em que se desloca mais depressa, tornando-se infinita ao atingir a velocidade da luz, o que é impossível, provando que a velocidade da luz não pode ser alcançada.

    A matéria à velocidade da luz não passa de energia. Massa e energia são por isso mesmo equivalentes: a sua conversão pode estabelecer-se por uma das mais belas e celebres equações de sempre: E = mc2.

 

 

 

   

 

 

 

3. A Relatividade não é um Relativismo

 

 

Pelo que dissemos até ao momento, podemos cair na tentação de acusar a Teoria da Relatividade de um certo relativismo cósmico, nomeadamente para com as noções de tempo e de espaço que anteriormente apresentamos. Todavia, tal constituiria a queda do universalismo de uma ciência que Einstein pretendia ver apurada pela subtileza das formas e pelo rigor dos conceitos e das equações. A relatividade, segundo Einstein, não se reduz a um relativismo voluntarista traduzível num possível subjectivismo científico. Perdendo o carácter absoluto, o tempo e espaço, continuam a ser ministrados por uma religiosidade cósmica, o mesmo é dizer, por uma religiosidade laica, segundo a qual o velho continua a não querer jogar aos dados, jogo pelo qual, as mentes humanas, iludidas pelo aparente subjectivismo, se deixam subjugar.
    Podemos pensar também que, com a relativização do tempo e do espaço, o carácter absoluto de que se reveste o apriorismo kantiano, nomeadamente ao nível da sensibilidade, se torna incompreensível. Neste capítulo para além de querermos mostrar que tal, constitui uma falácia, tentaremos ainda elucidar uma possível relação ontológica entre o modo de ser da equação einsteiniana E = mc2 e o modo de ser dos juízos sintéticos a priori apresentados por Kant muitos anos antes.

 

 

 

3.1 – Kant e a resistência da eternidade: a sobrevivência do transcendentalismo

 

O pensamento kantiano constitui um fundamento sólido para uma possível compreensão dialéctica de toda a filosofia ulterior. Através de um olhar crítico sobre o próprio homem e a sua condição no mundo, a filosofia de Kant, supera de forma dialéctica os excessos do dogmatismo racionalista e do cepticismo empirista que o antecederam. O seu pensamento apresenta-se antes de tudo como uma renovação de toda a metafísica anterior sob a forma de um ontologia transcendental que se ocupa mais com a forma como conhecemos do que com os objectos do conhecimento tal como eles poderão ser em si mesmos considerados.
    Com o pensamento de Kant pretendemos mostrar, em primeiro lugar, o carácter intemporal do transcendentalismo, para, numa segunda fase, através da sua filosofia crítica encontrar universos de sentido comuns entre a sua proposta crítica – enquanto tentativa de superação das filosofia anteriores – e o dinamismo estético que Einstein conseguiu alcançar com a beleza das suas equações.

 

 

             A sobrevivência do transcendentalismo

 

Será o modelo de conhecimento a priori delineado por Kant um modelo ainda hoje “actual”? Não terá ele soçobrado com o desenvolvimento de algumas ciências, nomeadamente com a microfísica e a Física einsteiniana? Não será ele de validade estritamente “regional”, por estar de algum modo associado ao estado das ciências contemporâneas do filósofo: a Lógica, a Matemática e a Física newtoniana?[1]

 

Pela dificuldade apresentada, tentaremos elucidar de que modo, apesar do desenvolvimento desenfreado das ciências, a ordem a priori transcendental que Kant nos propõe se mantém inegável e inultrapassável dado o alcance ontológico que o autor desejou imprimir no desenvolvimento crítico de toda a razão pura. “Nenhuma objectualidade discursiva se constitui senão à custa de conceitos e princípios a priori, de um plano ou de uma “ordem” heurística prévia”[2]. Na realidade, quer queiramos ou não, a partir do momento em que o humano se situa no plano discursivo lança mão de uma determinada ordem a priori que lhe possibilita o próprio discurso. O domínio transcendental kantiano recobre todo o tipo de conhecimento a priori que se constitui como condição de possibilidade de todo e qualquer conhecimento empírico. Tal domínio é por isso composto por formas a priori que constituem o sujeito transcendental, sendo elas: o tempo e o espaço ao nível da sensibilidade, as categorias e os princípios ao nível do entendimento, e ainda, as ideias da razão. São estes os elementos que constituem a estrutura formal do sujeito, condição transcendental a priori de toda a multiplicidade discursivo-paradigmática. É devido à sua máxima formalidade e generalidade que podemos concluir que, o transcendentalismo kantiano ainda hoje é válido objectivamente, apresentando-se, no seio da sua natureza ontológica, como condição de possibilidade de toda a pluralidade paradigmática que compõe hoje o mundo discursivo da ciência. A sua elasticidade formal permite-nos, por isso mesmo, à luz da categoria da substância, compreender não só a noção de matéria da Física clássica como, simultaneamente, a noção de matéria-energia da Física einsteiniana ou da microfísica.
    Não há nenhum paradigma que esgote a realidade em todos os domínios, no entanto, a todos eles subjaz uma certa formalidade transcendental, que lhes permite uma relação ontológica séria com o mundo dos fenómenos sob pena de, na tentativa de o infinitizarmos, cairmos em meras anfibiologias sempre expectantes na conquista da razão humana.

    O decurso no nosso trabalho pretendeu destacar a consecutiva evolução dos conceitos de espaço e de tempo o que nos conduziu a uma primeira problematização do formalismo kantiano. É neste ponto que agora nos devemos fixar. É na Estética Transcendental
[3] que Kant expõe de forma metafísica mas também transcendental a noção de espaço e de tempo. O tempo e o espaço são apresentados por Kant como intuições puras, isto é, intuições que correspondem à forma pura da sensibilidade, constituindo as formas a priori do território da sensibilidade humana através das quais se constrói de forma necessária toda a geometria (espaço) e toda a aritmética (tempo). Nada podemos perceber que não esteja devidamente enquadrado num espaço e num tempo. Com Kant a sensibilidade humana atinge, por esta via, o estatuto de necessidade e universalidade, condição necessária para a evolução de qualquer pensamento científico.
    Segundo o autor, do espaço podemos dizer que não é um conceito empírico, mas pelo contrário um conceito que torna possível todos os conceitos empíricos; é sim uma representação necessária, a priori, que fundamenta todas as intuições externas; não é um conceito discursivo mas uma intuição pura sendo representado como uma grandeza infinita dada. Transcendentalmente o espaço fundamenta a validade da geometria, momento a partir do qual se podem determinar as propriedades espaciais de todos os objectos possíveis da experiência, condicionando-os de forma necessária e universal. O espaço apresenta-se por isso como condição subjectiva da sensibilidade que para lá da sua realidade empírica, no que se refere a toda a experiência exterior possível, se apresenta também sob a perspectiva de uma idealidade transcendental a partir da qual o próprio espaço se deixa de constituir como categoria inerente aos objectos considerados (como concebeu toda a metafísica aristotélica) passando a constituir um fundamento seguro através do qual se torna possível toda a experiência.

    O tempo, por sua vez, também não constitui nenhum conceito empírico, pelo contrário, apresenta-se como representação necessária que constitui o fundamento de todas as intuições. O tempo não é um conceito discursivo mas uma forma pura da intuição sensível cuja representação originária tem de ser dada de forma ilimitada. Transcendentalmente o tempo não é algo que exista em si ou que seja inerente às coisas como uma determinação objectiva. Se o espaço é a forma de todo o sentido externo, o tempo apresenta-se como forma do sentido interno, por intermédio do qual o nosso espírito tem experiência de todos os outros estados internos ordenados no tempo. O tempo constitui, portanto, a condição formal a priori de todos os fenómenos em geral.

    Sendo assim, o facto de nenhum objecto poder ser dado sem se submeter ao espaço e ao tempo traduz a realidade empírica das intuições puras da sensibilidade; o facto de o espaço e o tempo não serem inerentes às coisas em si nem serem formas dos objectos exteriores mas formas do sujeito que os percebe traduz a sua idealidade transcendental inerente à inevitável transcendentalidade do próprio sujeito. A sensibilidade apresenta-se necessariamente como constitutiva da condição humana perante o real.

    A idealidade transcendental do tempo e do espaço no sujeito constitui o elemento eternalizador de toda a estética kantiana: dados transcendentalmente no sujeito, o tempo e o espaço, constituem a formalidade sensível, a partir da qual todo o ser humano se relaciona com o real.

    Mesmo considerando a caracterização metafísica do espaço e do tempo a partir da qual estes são considerados sob o ponto de vista homogéneo, contínuo e infinito, quando considerados numa perspectiva transcendental, como formas da intuição a priori sem nenhuma existência objectiva e exterior definida, o espaço e o tempo possibilitam construções matemáticas e geométricas de outras modalidades possíveis. A Estética Transcendental é, portanto, maximamente compatível com espaços e tempos diversos daqueles que Kant caracterizou ao longo da sua exposição metafísica
[4].
    O espaço e o tempo, pela sua idealidade transcendental, constituem verdadeiros elementos a priori a partir dos quais se torna possível qualquer tipo de percepção sensível, fundamento de todo e qualquer tipo de discursividade. Mesmo admitindo a absoluta relativização do espaço e do tempo por intermédio da física einsteiniana, devemos sempre compreender o carácter incontornável do apriorismo kantiano, pois, tal como aqui apresentamos, o espaço e o tempo continuam a constituir elementos dinâmicos verdadeiramente a priori que, ao nível do sujeito, se fazem manter actuais pelo carácter esquemático do seu formalismo.

    A relativização de certos elementos a priori não nos permite desaguar num universo relativista. Pelo contrário, relativizando-se o espaço e o tempo, neste caso, eles passam a constituir elementos que, ao nível de uma subjectividade transcendental, formulam verdadeiros princípios formais a partir dos quais se pode estruturar objectivamente a realidade. Por intermédio do transcendentalismo, o subjectivismo nunca se relativiza na totalidade, antes se torna o fundamento enquanto condição de possibilidade para que a totalidade em nós se expresse de forma objectiva, isto é, minimamente comunicável.

 

 

             A ontologia do universal concreto

 

 

Ao virar-se para o ser humano enquanto sujeito transcendental, o programa crítico de Kant pretende ultrapassar todas as incongruências do pensamento filosófico que o antecede. A relação que o sujeito assume relativamente à experiência que o une ao real constitui a questão fundamental pela qual se desenvolveram diferentes propostas gnoseológicas. Do lado do racionalismo, autores como Descartes e Espinosa esforçaram-se por afirmar a universalidade e a necessidade de um conhecimento metafísico certo e inevitável, através do qual o homem se poderia relacionar satisfatoriamente com o mundo. O racionalismo de Wolf, pelo qual Kant iniciou a sua actividade especulativa, maximizou este tipo de atitude em que o comportamento humano se compreende e explica à luz da necessidade de uma ordem metafísica superior que lhe é simultaneamente exterior. Paralelamente ao tipo de atitude racionalista, os empiristas clássicos, desenvolveram toda uma gnoseologia de pretensões não ontológicas uma vez que sublinhavam, à partida, a natureza humana do ponto de vista ôntico. O sujeito universal é agora substituído pelo sujeito empírico e toda a variabilidade constante que o constitui. Seguindo esta linha, Locke afirmará que todo o conhecimento começa com a experiência, pensamento a partir do qual Berkeley identificará coerentemente o empirismo com o idealismo sublinhando a absoluta identificação entre aquilo que é e aquilo que é percebido: “ser” é “ser percebido”. A partir de então, a estabilidade ontológica do universo reduz-se à entificação das sensações. Com David Hume, o principal responsável por acordar Kant do sono dogmático racionalista em que vivia, a multiplicidade do real reduz-se à actualidade das ideias; a noção de substância traduz-se agora numa simples impressão e o universo causal ontológico é reduzido ao domínio da probabilidade. A partir deste momento, não há validade objectiva possível que justifique a permanência da realidade; o “eu” não passa de um feixe de impressões dadas num determinado tempo e num determinado espaço. Mas então, podemos perguntar, admitido o cepticismo empirista que em muito vivifica o espírito científico, o que sustenta ontologicamente a ordem necessária e universal do universo? É a partir deste ponto que Kant pretenderá indagar um tipo de conhecimento a priori, independente da experiência, que se ocupe menos dos objectos e mais da forma como possivelmente os podemos conhecer e, neste sentido, nos proporá a absoluta necessidade transcendental dos juízos sintéticos a priori.
    Segundo Kant, para além de todo o saber a posteriori cuja origem reside na experiência, haverá um saber de ordem a priori, isto é um tipo de saber que precede a experiência e lhe é independente. Um saber desta ordem reside naturalmente na estrutura cognitiva do sujeito que conhece, uma estrutura que é por isso mesmo condição de possibilidade da própria experiência. Todavia, Kant não está mergulhado no sono metafísico racionalista que o leve a negar a importância que a experiência assume no desenrolar do processo cognitivo o que o leva a afirmar que todo o nosso conhecimento começa pela experiência, mas tal não significa que todo ele daí derive
[5]. Isto significa que sem experiência de nada podemos obter um conhecimento objectivo, mas significa também que é necessário descobrir o tipo de conhecimento que possibilita a própria experiência, um conhecimento universal e necessário, que justifique o carácter ontológico de toda a gnoseologia que consistentemente se pretende constituir enquanto metafísica transcendental. Este tipo de conhecimento é precisamente o conhecimento transcendental a priori que se manifesta na concretude universal dos juízos sintéticos a priori.

 

Com alguma generalidade abusiva, podemos afirmar que até Kant os juízos podiam ser classificados entre:

 

a)     Juízos sintéticos a posteriori: juízos onde o predicado acrescenta algo de novo ao sujeito, enriquecendo-o com base na experiência; juízos extensivos que, sendo válidos, são-no exclusivamente no domínio da experiência. São por isso juízos particulares e contingentes, desligados da universalidade e da ordem necessária do universo;

 

b)     Juízos analíticos a priori: aqueles em que o predicado não é mais do que uma nota extraída da noção do sujeito e onde se explicita o já anteriormente percebido. Estes juízos são universais e necessários mas não arranham a realidade uma vez que expressam um tipo de conhecimento oriundo exclusivamente da lógica formal silogística.

 

Kant percebe que este dualismo conduz a metafísica a um conjunto de incongruências antinómicas que é necessário superar. A viragem copernicana estabelecida por Kant obriga-nos pois a formar um tipo de conhecimento sustentado nos juízos sintéticos a priori. A filosofia deixa de ser uma ontologia racionalista, ultrapassa o cepticismo empirista e transforma-se em filosofia transcendental: só assim se consegue apurar uma ciência metafísica, uma ontologia transcendental que, virada para a imanência subjectiva, nos traduz a objectividade do real de forma necessária e universal. A ontologia kantiana apresenta-se assim como a primeira grande fórmula não aristotélica que, com base numa antropologia transcendental, tenta captar o universal concreto onde o particular se revela necessariamente. Com Kant a abstracção dos juízos formais e a contingência concreta dos juízos empíricos são dialecticamente superados por uma filosofia que se fundamenta na necessidade dos juízos sintéticos a priori. O filósofo esforça-se, nesta medida, por explicar a sua urgência e possibilidade, quer através da análise dos outros tipos de juízo, quer através da análise da estrutura transcendental do sujeito que fenomenaliza de forma necessária a realidade, por intermédio de um processo de sínteses constantes entre o real e aquilo que nele se constitui como objectivamente necessário.
    Esta ordem necessária, que subjaz de forma imanente no humano, é constituída, como sabemos, pela máxima formalidade impressa no tempo e no espaço, ao nível da sensibilidade; nas categorias e princípios, ao nível do entendimento; nas ideias transcendentais, ao nível da razão e não impede, como tentamos elucidar, a sobrevivência coerente desse mesmo formalismo. Aliás, o espírito dinâmico que subjaz a todo e qualquer juízo sintético a priori faz-se espelhar, sem mais, no dinamismo que Einstein desejou imprimir na sua mais famosa equação, através da qual se estabelecem relações de identidade entre matéria e energia: E = mC2, momento em que, pela primeira vez, se equaciona matemática e harmoniosamente uma possível relação entre a máxima abstracção da energia e a máxima concretude em que se fundamenta toda a matéria.

    Através de uma equação a priori, conseguem-se, portanto, superar naturezas aparentemente contrárias e contraditórias, tal como pela realização máxima de um conhecimento a priori se superam, de forma dinâmica, a estaticidade do real e a energia formal de toda a lógica abstracta. Com ambas as fórmulas percebemos que, do ponto de vista do olhar ontológico, não há uma dualidade estreita entre o carácter abstracto de uma proposição científica e o carácter concreto de uma preposição empírica. Da superação nasce o real no e para o homem.

    O desenvolvimento de toda uma filosofia apriorista iniciada de forma dinâmica por Kant e desenvolvida de forma coerente por Einstein revelou-se decisivo na constituição do pensamento filosófico do século XX. Ao longo do século XVIII, se por uma lado, o romantismo de índole existencialista, exerceu sobre a história das ideias uma atitude reaccionária face ao excesso de formalismo impresso no pensamento pelo iluminismo alemão, por outro lado, desenvolveu-se uma escola positivista sustentada em critérios ontológicos iniciados pela atitude utilitarista submersa no pensamento do empirismo clássico. Perante esta realidade, o século XX será marcado, de certa forma, por este duplo desenvolvimento legado pela atitude iluminista tal como Kant a formulou de forma transcendental: assim, se por um lado, assistimos a uma disposição filosófica com base na reflexão fenomenológica encadeada na relação do indivíduo consigo mesmo, por outro lado, assistimos ao desenvolvimento desenfreado de uma nova forma de olhar o pensamento positivista, através do neopositivismo que se apresenta simultaneamente como um neo-emprirismo, movimento que ficou intimamente ligado à reflexão lógico-linguística expressa pelos trabalhos encorajadores do Círculo de Viena. Neste momento pretendemos centrar-nos sobretudo no segundo pólo desta tensão, para tentar descobrir de que forma o movimento neopositivista se relaciona de forma dinâmica com o empirismo, com o programa crítico de Kant, com o dinamismo abstracto do apriorismo einsteiniano e com um pensador que no fundo está na génese de todas estas tendências: Ludwig Wittgenstein.

    Segundo Wittgenstein há uma correspondência entre o mundo e a totalidade dos factos expressa num modelo ontológico subordinado à análise lógica do pensamento. Com base nesta atitude sublinha a urgência e a necessidade ontológica de delimitar a esfera do dizível e a esfera do pensável prolongando a discussão kantiana entre o que se pode conhecer e o que se pode pensar. Segundo o autor, a representação no humano é possível porque este aplica à realidade (imagens dos factos) determinadas formas lógicas (lógica proposicional de Frege e de Russell). Wittgenstein apresenta uma teoria que transparece um isomorfismo entre o pensamento e a realidade. Com as primeiras proposições do Tractatus
[6] demonstra que entre a realidade e o sujeito há sempre a mediação de imagens ou modelos mentais que são possíveis devido a uma estrutura lógica do pensamento.
    A lógica, enquanto estudo de tudo aquilo que se pode conhecer anteriormente à experiência (5.552, Tractatus), é a sempre transcendental, ou seja, estuda a priori a estrutura da pensabilidade e não, como acontecera com Russell, os elementos abstractos da realidade (de forma realista e empírica – átomos lógicos).

    Wittgenstein esforça-se por estabelecer uma distinção entre aquilo que se pode dizer e aquilo que se pode mostrar. O pensamento é tudo aquilo que pode ser dito, dado que, tudo o que se pode dizer espelha a forma lógica do nosso pensamento. O mesmo é dizer também que tudo aquilo que pode ser dito tem sentido. Mas há duas formas de violar o sentido, ou seja, há pelo menos duas categorias que não podem ser ditas numa linguagem factual: em primeiro lugar as proposições ético-místicas e as questões que têm que ver com a vontade e o sujeito – proposições metafísicas que podem ser comunicadas e mostrarem-se através da linguagem, mas nunca ditas na linguagem; e, em segundo lugar, as proposições lógicas que mostram as propriedades formais do mundo tal como nós o podemos pensar. Estas não podem ser ditas pela linguagem porque constituem a própria forma da linguagem pelo que se referissem componentes da realidade seriam contingentemente verdadeiras e não se distinguiriam das proposições empíricas.

    Se apenas as proposições empíricas das ciências naturais têm sentido, o que dizer de todas as outras? Wittgenstein considera que, as proposições ético-místicas são preposições sem-sentido (unsinning), pois transgridem os limites da linguagem; e que as proposições lógicas, como são tautológicas são vazias de sentido (sinnlos). Através do seguinte esquema conseguimos representar a estrutura formal que, no entendimento de Wittgenstein pretende espelhar a ordem do real:

 

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Ora, foi precisamente nesta divisão que os positivistas do Círculo de Viena se inspiraram para a elaboração do critério de significação. As pretensões do Círculo eram as seguintes: que a filosofia consistisse (apenas) numa análise da linguagem e das teorias que assim contribuíam para a unidade da ciência e para a depuração da metafísica. Com base nestes pressupostos estabeleceram o seguinte critério de significação: uma proposição é cognitivamente significativa se e somente se é ou analítica (tautologias, proposições lógicas) ou empiricamente verificável (proposições com sentido). Ora, as ideias de Wittgenstein vieram apoiar as intenções referidas na medida em que permitiram construir uma cartografia daquilo que é pensável ou dizível. Todavia, a construção do critério com base na sua obra feriu a sensibilidade ao próprio autor: a ciência não era aquilo que lhe interessava. Segundo o filósofo faltou uma certa subtileza na interpretação do Tractatus, pois para ele aquilo que não tem sentido é apesar de tudo aquilo que tem mais valor. É desta forma que Wittgenstein se revela o pai-fundador de uma tendência que ele próprio acaba por negar nas Investigações Filosóficas. Aquilo que não tem sentido ultrapassa a abstracção lógico-linguística a que o humano submete o real.

    Neste sentido, o neopositivismo, acabando por alargar metafisicamente os critérios do empirismo clássico, muito por influência das reflexões científicas que se iam alargando à mundividência da reflexão filosófica, continuou a descartar a ordem ontológica do humano no mundo, tal como quis fazer sublinhar Wittgenstein. O humano na sua transcendentalidade absoluta é muito mais do que aquilo que dele se pode, de facto, formalizar. A sua condição ultrapassa infinitamente os cânones lógico-linguísticos que lhe permitem objectivar o real. O próprio Kant, no seu programa crítico, fundamenta alguns dos pressupostos do critério de significação apresentado, ao sublinhar que o conhecimento só pode ser objectivo se tiver como matéria-prima as intuições sensíveis da sensibilidade, no entanto, não reduziu a sua ontologia a uma epistemologia analítica, fazendo ver que para lá de todo o conhecimento existe o universo da pensabilidade do humano, estrutura a partir da qual se pode construir uma metafísica transcendental.

 

 

             A Evolução Categorial

 

Exposto por nós desta forma, o transcendentalismo categorial, tal como Kant o formulou, parece resistir formalmente a toda uma série de críticas que lhe foram sendo forjadas. Todavia convém elucidar a pertinência de algumas destas críticas.
    Segundo Kant, para lá das condicionantes a que a subjectividade humana está submetida, existe um plano formal de intervenção categorial, subjacente a toda a subjectividade que permite ao sujeito cognitivo fenomenalizar objectivamente o real com que se depara. Tal plano, constituído assim pelas formas a priori do sujeito, define o campo transcendental do humano. Muitas foram as críticas dirigidas a este excesso de formalismo: Hegel e todo o idealismo absoluto tentaram uma libertação possível a todo e qualquer ponto de vista finito na tentativa de captação racional do mundo; Ryle, Bennett e Vuillemin constituem igualmente passagem obrigatória na formulação deste tipo de crítica. Foram muitos os argumentos em face da objectividade categorial kantiana que passamos a apresentar de forma sucinta:

 

–         À forma exclusiva da lógica clássica de onde se deduz transcendentalmente o elenco das categorias sucederam-se várias formas de lógicas;

 

–         À ideia de um único jogo de linguagem sucedeu a existência e a possibilidade de n-jogos de linguagem, todos eles válidos em função do domínio a que se reportam;

 

–         A ideia kantiana de uma razão pura a-histórica foi substituída pela ideia de n-Razões históricas «não-puras»;

 

–         Existem paradigmas categoriais que, embora reguladores e constitutivos de «objectos» como o kantiano, são, de facto, múltiplos e nenhum deles transcendentalmente demonstrável na sua unicidade absoluta.

 

Com o desenrolar de todas as críticas podemos também ficar com a percepção de que o mundo é constituído por um conjunto anárquico de paradigmas incomensuráveis entre si e que o paradigma categorial kantiano foi engendrado de forma puramente formal e estática. Não de mais errado. Continua a ser da máxima pertinência apontar para a necessidade de um formalismo transcendental que seja simultaneamente trans-epocal: dada a multiplicidade paradigmática é necessário uma plataforma formal mínima para evitar que o mundo intelectual se torne, de forma anfibiológica, numa imensa anarquia ontológica onde diferentes modos de ser e existir de misturam e se confundem. Só assim se conseguem garantir, como veremos, um universo de comunicabilidade mínima entre todos aqueles que desejam comunicar.
    Michel Foucault esforçou-se, na sua plenitude intelectual, por alargar maximamente a formalidade inscrita no transcendentalismo kantiano. Através das noções de a priori histórico e de arquivo procurou definir um campo transcendental plural e máximo, que não tenha a forma de um sujeito formal ou consciência pura, que não exprima uma ordem imutável em que as coisas se inscrevem mas, que condicione igualmente de forma discursiva toda a acção a que o ser humano se submete. Apresenta-nos por esta via um campo transcendental múltiplo e heterogéneo que, à boa maneira estruturalista, condiciona o sujeito a partir do exterior. Com a noção de a priori histórico o apriorismo é deslocado do interior do sujeito para o interior de uma sociedade composta por um conjunto de sujeitos. Esta deslocação pode pôr em causa a própria noção de a priori, ainda que a sua compreensibilidade será esclarecedora na forma como nos relacionamos com o mundo. A noção de a priori transcendental surge na modernidade na tentativa de captar o especificamente constitutivo no humano. A noção de a priori ao ser deslocada para o seio da história contraria a sua vocação inicial que tinha como objectivo dar a conhecer ao sujeito racional aquilo que era específico na sua constituição, nomeadamente enquanto sujeito transcendental, e que passava em primeiro lugar por detectar a sua originalidade constitutiva para lá de todas as condições subjectivas, particularmente as de carácter histórico-social.

    Einstein apresenta-se de igual modo na história da cultura humana como alguém que pretende ver alargada a formalidade paradigmática com que o homem se confronta através da fenomenalização do real ainda que a experiência científica, constituísse talvez, no entender de Einstein e dadas as influências que sofre do monismo espiritual de Espinosa, muito mais uma numenalização do mundo do que uma fenomenalização do mundo, pois é a compreensão da totalidade do universo que está em jogo.

    Ao longo do desenvolvimento discursivo em que se sustentam muitas destas críticas, muitos são aqueles que injustamente caracterizam o apriorismo kantiano de universal e estático. Daniel de Carvalho, numa obra intitulada Albert Einstein e a experiência do conhecimento em física
[7], sublinha mesmo que em face do apriorismo estático de Kant, Einstein opõe um apriorismo dinâmico e histórico, que, apesar de universalizável não cria uma fissura ontológica entre o fenoménico e o numénico, desde logo porque encontra a sua origem, ainda que intuitivamente, no elemento que pretende representar – a experiência sensível.


    «
Não se trata, portanto, de um a priori constitutivo, necessário, como o de Kant, mas de um a priori resultante, por um lado, da experiência sensível, que motiva a sua invenção pela intuição, e, por outro, da própria experiência da prática da história da Física. O a priori einsteiniano apresenta-se assim com uma característica de historicidade, estando condicionado pelos sucessos/insucessos da ciência onde joga[8]».

 

Quanto à experiência sensível, Kant afirma que as categorias do entendimento só intervêm objectivamente mediante determinadas intuições sensíveis, fornecidas ao entendimento pela sensibilidade (outra coisa bem distinta é a possível dedução transcendental das categorias); por outro lado e por tudo aquilo que foi dito, compreendemos que, no desenrolar o século XX, seja explícita a urgência de dotar elementos a priori de um dinamismo necessário, contudo, o próprio Kant, num capítulo submerso da CRPu defende desde logo a possibilidade de uma certa evolução daquilo que a priori é constitutivo do humano:

 

…só há duas vias pelas quais pode ser pensada a necessária concordância da experiência com os conceitos dos seus objectos: ou é a experiência que possibilita esses conceitos [puros] ou são esses conceitos que possibilitam a experiência. O primeiro caso não se verifica em relação às categorias, porque as categorias são conceitos a priori, portanto, independente da experiência. Resta-nos, por conseguinte, apenas o segundo caso, por assim dizer um sistema de EPIGÉNESE da razão, ou seja, que as categorias contêm, do lado do entendimento, os princípios da possibilidade de toda a experiência em geral”[9]

 

Kant admite a relevância das categorias como condições de possibilidade da própria experiência: nas categorias está contida uma espécie de predisposição que possibilita a experiência em geral.
    No entanto, sublinha algo que a nós parece ser demasiado arriscado: independente da experiência. Como podemos ver ao longo da nossa exposição, as categorias não são em absoluto completamente independentes da experiência. Podem não ser, enquanto conceitos puros, derivadas directamente da experiência, tal como o são os conceitos empíricos; no entanto, nunca são totalmente independentes da experiência. Às categorias está alienada necessariamente uma experiência do tipo histórico-operacional.

    Mas é pelo conceito de epigénese que Kant tenta salvar toda a circularidade inerente à dedução das categorias. Este conceito é um conceito importado da biologia que lhe era contemporânea: aquilo que há, não existe desde sempre, no entanto, Deus criou todas as coisas de tal maneira que a elas está adstrita uma predisposição interna que lhes permite um desenvolvimento que, de certa maneira, a seu tempo, se fará à sua própria custa.

    Se aplicarmos isto à razão humana temos que: o homem é criado de tal forma que, a razão, por graças a si mesma, desenvolveu algo que em si mesmo não existia. As categorias, podem, portanto, ser um produto de um certo tipo de experiência, como vimos, uma espécie de experiência histórico-operacional e não da forma como a configuramos empiricamente.

    A evolução dinâmica de carácter nitidamente histórico-social é algo que o próprio conceito de epigénese contem em si, ou talvez, estejamos a tentar ler em Kant aquilo que a própria discursividade epocal em que se situava tornava não compreensível. De uma forma ou de outra o legado do seu pensamento continua a vivificar a excelência intelectual de todos aqueles que se queiram dedicar com o mínimo de seriedade ao desenvolvimento dos conhecimentos científicos e filosóficos, cada vez mais infinitamente paralelos e não coincidentes.

 

 

 

 

 

4. A Importância da Estética em tom de conclusão

 

 

A estética lança-nos no universo da subjectividade sensível sem esquecer a inevitabilidade da necessidade que subjaz à sua afirmação. Um juízo estetizante tem a particularidade lógica de ser, simultaneamente, universal e singular, sem deixar que tal universalidade reduza a autonomia daquele que julga.
    Através da estética uma simples percepção (sensível ou científica) transforma-se definitivamente numa energia dinâmica que subjaz a todo o olhar. Digamos que a forma como podemos conceber um juízo de gosto estético ultrapassa todos os binómios dialécticos entre a natureza natural e a natureza cultural de um sujeito que não apenas conhece, mas que sobretudo julga e aprecia. A estética apresenta-se assim como motor de transformação ontológica entre a percepção e o olhar: um olhar que se diz e se faz dizer na condição insubstituível de todos aqueles que se querem a saber olhar um olhar que se quer saber olhar.

    Se pela reflexão filosófica acerca das propriedades do real conseguimos, de certa forma, ultrapassar as limitações do olhar estritamente científico (percepção), que contudo, nos ajuda a perceber de forma cada vez mais esclarecedora as propriedades desse mesmo real, através da estética, o indivíduo alcança o domínio da universalidade à qual consegue aliar a sua total autonomia. A beleza não é por isso uma propriedade das coisas, nem tão pouco um estado mental captável pela conceptualização neurológica de um determinado comportamento cerebral; a beleza lança-nos na aventura concreta da sentimentalidade abrindo uma reflexão acerca da incorporação subjectiva do real. A beleza aparece assim como um sentimento de prazer que sabe acompanhar a representação de um objecto singular e que, no entanto, não deixa de ter uma dimensão universal. Por tudo isto Kant definiu o belo como aquilo que apraz «universalmente sem conceito»: despido de formalização conceptual o sujeito que julga, consegue relacionar-se com o mundo de forma universal sem contudo descurar a dimensão de prazer sensível que com ele estabelece. Esta é a verdadeira fórmula, segundo Kant, que nos permite de forma única aproximar da totalidade teleológica que rege o universo, através da qual conseguimos unir de uma forma subtil a objectualidade e universalidade que rege o mundo da natureza e a subjectividade que rege a esfera individual de cada ser que se sente.

 

 


 Referências Bibliográficas

 

 

 

BLOCHER, K. e TARRIDA, J. (Direcção Editorial), Activa Multimédia – Enciclopédia de Consulta, Vol. 3, s/l., Lexicultural – Actividade Editoriais, 1996

 

BURGUETE, M. Conceição, História e Filosofia das Ciências, Lisboa, Instituto Piaget, 2004

 

CARVALHO, Daniel, Albert Einstein e a experiência do conhecimento em física, Porto, Campo das Letras, 2002

 

GRIBBIN, John, História da Ciência – de 1543 ao presente, Mem Martins, Publicações Europa-América, 2005

 

HEWITT, Paul G., Física Conceptual, (Trad. Trieste Freire Ricci e Maria Helena Gravina, Porto Alegre, Bookman, 2002

 

HUISMAN, Denis, A Estética, Lisboa, Edições 70, 1997

 

KAKU, Michio, O Cosmos de Einstein – Como a visão de Albert Einstein transformou a nossa concepção do espaço e do tempo, Lisboa, Gradiva, 2005

 

KANT, Immanuel, Crítica da Faculdade do Juízo, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998

 

KANT, Immanuel, Crítica da Razão Pura, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001

 

MELO, Adélio, Categorias e Objectos – Inquérito Semiótico-Transcendental, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2000

 

MELO, Adélio, Kant e a Questão dos Paradigmas, “Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto”, Porto, Segunda Série, n.º 10, 1993

 

WITTGENSTEIN, Ludwig, Tratado Lógico-Filosófico (TLF), (Trad. de M. S. Lourenço), 3.ª Edição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002

 

 

 


 ÍNDICE

 

 

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ESQUEMA

 

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Com amizade e admiração,

 

Ao Prof. Levi Malho

 

 

 

 

 

 

 

Trabalho entregue por:

 

IVO RICARDO LINO AGUIAR

 

 

___________________________________

 

NOTAS:

 

 

[1] MELO, Adélio, Kant e a Questão dos Paradigmas, “Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto”, Porto, Segunda Série, n.º 10, 1993

[2] Idem, p. 89

[3] KANT, Immanuel, Crítica da Razão Pura, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, pp. 61-87.

[4] MELO, Adélio, Kant e a Questão dos Paradigmas, “Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto”, Porto, Segunda Série, n.º 10, 1993, p. 105.

[5] KANT, Immanuel, Crítica da Razão Pura, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, pp. 36.

[6] WITTGENSTEIN, Ludwig – Tratado Lógico-Filosófico (TLF), (Trad. de M. S. Lourenço), 3.ª Edição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002 (1921).

[7] CARVALHO, Daniel, Albert Einstein e a experiência do conhecimento em física, Porto, Campo das Letras, 2002, p. 105.

[8] Ob. Supracitada, p. 106.

[9] KANT, Immanuel, Crítica da Razão Pura, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, pp. 170-171.

 


 

©  Ivo Ricardo Lino Aguiar (Texto)  -  Regressar a   " Os "Trabalhos e Dias" "

© Colaboração na concepção da página - Levi Malho.

Actualizado em 05.05.2007

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