Filosofia. O que posso dizer.

    --- Sobre Perguntas e Respostas

 

 

 

 

  

 

"Memórias de Heraclito"

[ Pormenor de casco de pequena embarcação em madeira. Rio Douro. Foz. Porto. 2010 ]

© Levi Malho

 


 

 

    Nota Prévia:

  • 1. Quero agradecer à “Associação de Filosofia Antiga” e à sua Direcção, na pessoa muito estimada do Dr. Bernardino Pereira, antigo aluno e amigo de sempre, que muito considero, a gentileza do trabalho tido ao considerarem útil escutar algumas opiniões minhas sobre questões bem complexas que me colocou. Foi-me dado tempo para meditar nas respostas, pois sendo bom “dizer-se o que se pensa”, não impede “pensar-se o que se diz”…
               Não sou, nem nunca fui um investigador, mas quando muito um Estudante. Ou, o que vem a dar ao mesmo, um professor de Filosofia.

  • 2. Este texto resultou dum conjunto de questões propostas por um antigo aluno que muito considero, e foi feito no âmbito de iniciativas tomadas pela "Associação de Filosofia Antiga", sob a direcção do Prof. Doutor Álvaro dos Penedos, meu Professor no início da sua carreira universitária, nos meados da década de "sessenta" do séc. XX, meu colega de longos anos na Faculdade de Letras do Porto, pessoa que muito admiro como estudioso da Filosofia e de quem tenho a honra de ser Amigo.

  • 3. Circunstâncias ocasionais, levaram a que o "espaço da Internet" onde este pequeno texto se encontrava, fosse "desactivado". Lido e relido mais de 2 anos depois de ter sido escrito, pelos inícios de 2008, o "acaso" fez com que fosse este o derradeiro texto que escrevi enquanto Professor no "activo" do Dep. de Filosofia da FLUP, pois aposentei-me durante esse ano.
    Assume pois  o estatuto "simbólico" dum certo "balanço" do que aprendi durante quase 40 anos de ensino universitário da Filosofia e que não renego.
    Só isso justifica que aqui o retome, não escondendo que me revejo plenamente hoje naquilo que aqui disse!

  • 4: O texto que segue é cópia integral daquilo que foi publicado pela "Associação de Filosofia Antiga", sem qualquer alteração, nem formal nem, muito menos, de conteúdo!

 

 

 

ENTREVISTA

 

A:    Prof. Doutor Levi António Duarte Malho

        Professor Associado de Filosofia (Cosmologia)

 

Por: Bernardino Pereira

 

 

 

P1 –– Algumas das minhas perguntas, e desde já a primeira (algo pessoal), não fogem àquela ingenuidade fácil que se acoita no entrevistador, ciente de que está a usufruir de uma regalia que lhe concede o entrevistado. Tenho consciência disso. Espero portanto, e agradeço, a boa compreensão do Prof. Levi Malho.

 

Na contracapa do seu livro “O Signo de Orfeu - requiem por uma estética insular”, lemos o seguinte:

 

“Do Espaço resta-lhe o gosto pelas árvores, pela distância do mar, pelas ruas estreitas e acariciantes da Foz Velha. Da Vida, acredita ainda nos Amigos poucos, no prazer que cresce em certas horas de Silêncio, no olhar denso e puro dum cão que se encontra no Acaso dos dias”.

 

Estas palavras (algumas com inicial maiúscula, como Espaço e Vida) surgem-nos carregadas de uma notável intensidade poética e até, no meu entender, de algum estoicismo pelo menos aparente. Mas não encaixam muito bem com essa contagiante alegria do saber e invulgar paixão intelectual que o Professor tem logrado transmitir, ao longo dos anos, nas suas aulas de Cosmologia.

Gostaria assim de lhe colocar a seguinte questão:

Se na verdade as suas reflexões académicas sobre o Espaço e a Vida (o Homem e o Universo) configuram, como penso, uma feliz analogia entre a sábia leveza que Sagan, por um lado, doseou no “peso da divulgação científica”, da Astronomia, e a elegância que o Prof. Levi Malho, por outro, continua a dosear no “peso filosófico” do ensino da Cosmologia, estará de acordo com uma generalizada apreciação do seu percurso filosófico e da sua docência nesse preciso sentido, em contraponto com o tradicional fechamento do ensino universitário?

 

RespostaA pergunta que me faz é, simultaneamente, muito transparente e muito complexa, aliás como é típico das “coisas” verdadeiramente importantes da Vida! Afinal, só quer saber o que penso do Mundo, da Vida, da Profissão e, como se tal não bastasse, de mim próprio… Mas é o que acontece nas “confrarias” de filósofos e não serei eu a atirar a primeira pedra!!!

Devo confessar que se apercebeu com singular sagacidade das ideias que mais valorizo, isto é, das “coisas simples”, rotinas dos dias, murmúrios que ficam discretamente escondidos no lado menos espectacular do Mundo, aquele que não está nas luzes da ribalta e não “abre” Noticiários.

Alguém teria dito, (pois não me recordo de o ter inventado…) que o único pedaço de chão que jamais vemos é o que se encontra sob os nossos pés. Sempre gostei muito do poder simbólico desta metáfora, que entendo como um solene aviso à petulância e arrogância da Razão, ao sinalizar que, antes de mais, devemos “olhar-nos”, reflectirmos, indagar a que corpo corresponde a nossa sombra. De certo modo, filosofar e filosofia, são um pouco  a repetida consciência desse pensamento tão óbvio e vulgar que, por estranha alquimia, se aproxima do “excepcional”, entendido como aquilo que foge ao senso comum e não a qualquer auto-afirmação grandiloquente…

Parafraseando o título dum Romance, a Filosofia é a meditação sobre o que se esconde e adivinha nas horas em que dormita o “Deus das pequenas Coisas”( Suzanna Arundhati Roy,1997). Coube-me ser professor de Filosofia, nem sei bem porquê, suponho mais por acaso que por necessidade, perdoe-se o parentesco com uma ideia famosa de Jacques Monod, o Nobel da Medicina (1965), que se interrogava com clarividência e alguma salutar metafísica, sobre o enigma da origem da Vida.

            Sempre tive uma enorme curiosidade pela divulgação científica, pelo poder humano de decifrar os mecanismos da natureza, pela simplicidade encantadora das Leis, que tendem a expurgar aquele “Mundo infestado por Demónios”( Carl Sagan, 1996) de que tão firmemente falava Carl Sagan, que teve a bondade de referir como um dos meus muitos “mestres” espirituais , perante os quais nenhum agradecimento compensará a dívida de gratidão que jamais pagarei. A vida Universitária possibilitou-me, quase sempre, um espaço de liberdade onde se tornou possível, lentamente, ir testando essa curiosidade que, confesso, passou da “Viagem à Lua” do Tin-Tin, para os ensaios de ficção científica da adolescência, da admiração por ter testemunhado o início da era espacial, dos Sputnik’s até ao programa “Apolo” e à experiência vivida, à distância de  1 segundo/luz, da chegada do Homem à Lua, por uma madrugada quente do Verão de 1969.

            Quer dizer, em mim germinava, por entre disciplinas várias, um edifício de problemas que me levava ao encontro duma reflexão sobre a Ideia de Universo e me aproximava, para felicidade e espanto meu, às origens da Filosofia e a uma atitude neo-milésia, sentindo-me honrosamente herdeiro das engrenagens de Anaximandro, dos quase-delírios do místico Filolao de Crotona ou dos paradoxos do deslumbrante Cardeal Nicolau de Cusa.

            Estimulado pela boa receptividade dos alunos a esta meditação, foi aceite há perto de 20 anos, que esta área fizesse parte do “curriculum” dos licenciados em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Confesso que foi com alegria que sempre me encontrei com esses enigmas e julgo que a minha visão do mundo, se a tiver, está decisivamente marcada por esta aventura das ideias.

            Porém, sei de ciência certa, que a minha Verdade, se tal expressão fizer sentido para quem me ler, estará sempre no acarinhar das coisas simples. Assim sendo, subscrevo plenamente que se houver um “mistério” a desvendar, apontarei sem hesitar, em primeiro lugar, para “(…) o olhar denso e puro dum cão que se encontra no Acaso dos dias. (…)”.

Será isto um “estoicismo alegre”, como em dado momento da sua pergunta sugere? Admito que, se tais coisas se pudessem escolher,  preferiria antes ter tido a “ iluminação” do Dalai-Lama!

 

 

P2 –– A minha segunda pergunta é na verdade uma dupla pergunta:

Em primeiro lugar (e ainda na extensão da anterior), tem vindo o Prof. Levi Malho a constatar, junto dos seus alunos, constrangimentos que diria acrescidos nessa magna tarefa de combinar a “complexidade” cosmológica (para usar a terminologia de Edgar Morin, esse filósofo que lhe é tão caro) com a sua objectiva “inteligibilidade” filosófica?

E, decididamente, pensa que seria crível porventura (se me permite aqui mordiscar o chamado “racionalismo socrático”...) uma filosofia do Homem sem uma filosofia do Universo?! Ou ainda (sem querer referir-me a Ortega y Gasset), uma filosofia do homem abordando o universo tão-só como uma das suas “circunstâncias”?!

 

Resposta: Começando pelo fim, a resposta parece-me actualmente pouco controversa. Se é verdade que se pode meditar sobre a “natureza” e/ou “condição” humana, (coisas bem diferentes, para ser mais preciso…) tomando como ponto de partida as estruturas internas do Sujeito, desde os operadores lógicos, passando pelas camadas neuronais, os condicionalismos genéticos, as influências circunstanciais que, com seriedade e algum sentido irónico, eram designadas pela “Geração de 70”, de Eça, Antero, Ramalho e outros, como sendo a “raça, o meio e o momento”, cada vez mais estou convencido que uma reflexão global sobre o “humano” não pode escamotear aquilo que designaria como o “problema das origens”.

Isto é, aceitando a conceito de “circunstância” de Ortega y  Gasset, parece-me que será de o levar às últimas consequências. A meditação sobre o Homem inscreve-o em “situação” (histórica, cultural, biológica,etc.)

Quero sugerir que me parece limitador pensar numa “Filosofia do Homem” sem tomar consciência de todas as implicações sobre o “local” a partir do qual essa meditação se concretiza. Na verdade pensamos e falamos, os que estamos aqui, ( quero dizer, no chamado “etnos Ocidental) a partir duma sociedade industrial de elevado grau de maturação, que configura uma “humanidade” facetada pelos ritmos, problemas e preocupações dum quotidiano pressionado pelos  problemas da gestão do espaço, do tempo, do trabalho, dos fluxos comerciais, económicos, aspirações e outros. A maioria das comunidades e dos indivíduos estão de tal modo mergulhados na batalha da sobrevivência, quer ela seja efectivamente real, quer tenha como tem componentes de “desejo” que vêm de entidades externas, que mal se apercebem que uma elevada percentagem dos condicionantes que constituem o cerne de milhões de vidas se esvaem se simplesmente recuarmos 300 anos no tempo! Tal “recuo” não nos lança para a savana nem para o tempo dos grandes répteis em que mais não seríamos então que a hipótese dos olhos arregalados e inquietos dos “lemurianos”, nossos egrégios avós, no sentido darwinista do termo.

Afinal, pouco mais de trezentos anos é o séc. XVII, a grande Revolução Científica, Leis de Kepler e Newton, os primórdios dos primeiros acordes que irão concretizar no norte da Europa o horizonte da Revolução Industrial. O Mundo era então um espaço de ruralidade, com variações regionais, mas mais próximo das formas de pensar e sentir dum agricultor mesopotâmico ou egípcio que dum assalariado suburbano da era da globalização. Que significava então medir o tempo ao segundo, correr para o metro, pagar a casa com “spread” indexado à Euribor a terminar dentro de 50 anos. Só o prazo de pagamento era bem superior à esperança de Vida de então!!

Portanto, uma Filosofia do Homem, não deve ignorar as inúmeras variações do “território humano”, que vai até aos caçadores-recolectores, nas origens do “Homo Sapiens”. E a questão do “humano” continua, perdendo-se nas savanas e florestas africanas até 10 milhões de anos, onde teriam decorrido, eventualmente, acontecimentos evolutivos que haverão de consentir os cérebros gigantescos que um dia hão-de filosofar.

Estamos longe e perto, afinal. O Tempo distende-se, o grande rio Heraclitiano paradoxalmente  prossegue para montante, a antropogénese é um dos inúmeros afluentes da biogénese, cuja origem só pode ser pensável numa reflexão que se articule com átomos e moléculas, presentes tantos nos genes como nas nuvens. Numa linguagem deliberadamente “oitocentista”, a “Matéria” é filha das Estrelas e estas, aglomerados de Hidrogénio e Hélio, cuja compreensão supõe o salto qualitativo das Ciências Físicas em direcção à “origem” do Universo. Afinal, Cosmologia e Antropologia são um macro Continente.

Esta caminho precisa dum longo tempo de preparação junto dos alunos, cuja cultura científica é excessivamente superficial e por vezes presumem que, vindos para “Letras” e para “Filosofia”, se veriam livres do ogre que os perseguiu ao longo de anos. Mas a verdade é que não há diferença “substancial” entre os grandes objectivos da Filosofia e da Ciência. Já quanto aos “pequenos objectivos”…

 

 

P3 –– A pergunta anterior sugere-me uma outra, embora menos adequada talvez para uma entrevista breve como esta. Não resisto porém a pedir-lhe um comentário, por rápido que seja.

Noutra sua obra, “O Deserto da Filosofia”, lemos uma afirmação que me parece bastante perturbadora, ainda que cheia de beleza:

“A partir de certo ponto, a Filosofia é também um jogo de ironia e crueldade. Já não se pode viver com ela e ainda não se sabe viver sem ela.”

 

Poderemos interpretar essa afirmação como uma tentativa de conjugar a “ansiedade metafísica”, que daí ressalta, com a inevitável “secura epistemológica”, quer do conhecimento científico, a partir da Filosofia, quer do conhecimento filosófico, a partir da Ciência?!

No primeiro caso citaria, se me permite, Alexandre Koyré: “A ciência moderna nasce num berço de Filosofia” (in “Études d’histoire de la pensée scientifique”). No segundo, referiria Bernard d’Éspagnat, transportando o real físico, “o real em si velado”, para “o real metafísico” (in “À la recherche du réel”).

 

RespostaHá diferentes modalidades de abordar a Filosofia, o que aliás é comum com outras áreas das chamadas “Ciências Humanas”.  Começo por dizer que, na minha maneira de ver, a Filosofia não é uma “Ciência”, nem no sentido mais global que se atribui às “Ciências exactas”, nem (o que já pode ser mais peculiar!) no contexto dum reflexão mais “moldável” que seria apanágio das “Ciências Humanas”. Creio que existem aqui alguns equívocos que seria conveniente esclarecer.

Em primeiro lugar, o conceito de “Ciência” tem sofrido modulações históricas, atingindo algum consenso e estabilidade a partir da chamada “Revolução Científica” do séc. XVII e do triunfo das modalidades dum racionalismo crítico que pretendeu instituir controlos objectivos nas metodologias e nos “objectos” que desenham uma região Científica. Convém não esquecer que uma “Ciência” é uma abordagem unilateral e pretensamente unívoca do Mundo, segundo uma certa perspectiva, delimitando uma região a explorar (Objecto) e estratégias controladas e transparentes, compartilháveis com outros Sujeitos (Método). Idealmente, a Ciência perseguiria a “Verdade” e esta era entendida classicamente como algo de perene e não como aproximação tendencial a um “limite” que eventualmente se torne impossível de atingir, pelo menos de acordo com as expectativas metafísicas subjacentes a uma visão clássico-moderna da “realidade”, o que quer que este conceito queira significar, pois é menos óbvio do que parece. Mais do que “Verdade”, uma Teoria científica, seguindo a penetrante leitura de Karl Popper (“Conjectures and Refutations”, 1963) é uma constelação conceptual que pode demonstrar-se ser “falsa”, nisso residindo o seu poder e abertura transformadora.

As “Ciências Humanas” perseguem uma espécie de “modelo” proveniente das “Ciências exactas”, cujo paradigma se concretiza no edifício das Físico-Matemáticas erguendo-se como “farol” a atingir na capacidade operacional da sua linguagem depurada, das formulações que  brilham nas grandes equações newtonianas ou noutras que as tinham como modelo. Ironizando, quase se poderia dizer que esse horizonte é uma espécie de “Pai Tirano” para as pobres “Humanidades” que, muitas vezes deslumbradas na proporção das suas impotências e baixas competências quantificáveis, sempre sonhavam uma variação de sabor psicanalítico que as fazia “desejar”, quando fossem”grandes”, ser como a Física…

Ora a Filosofia tem uma História demasiado extensa e já foi ou pretendeu ser praticamente tudo e o seu contrário. Esta flexibilidade a que porventura se poderia, seguindo a Moda, designar de “flexi-insegurança”, desestabilizou muitos dos recém-chegados a esta inóspita região do saber, que confunde alunos e professores, pois tudo parece, com a mesma eficácia, tanto ser como não-ser, havendo justificações  em circuito fechado que permitem validar o desconsolo que se expressa junto daqueles que a olham (à Filosofia) como uma imensa turbamulta a que apetece perguntar, no raiar do desespero:

            --- Mas então, em que é “que ficamos”???

Creio que não existirá praticamente ninguém que, pelo menos uma vez, não tenha sentido/pensado este desabafo, que sempre deixa de olho brilhante e sorriso mefistofélico a legião de saberes, com Objecto e Método, que sabem para onde vão, o que pretendem e como se comportam.

Afinal, bem vistas as coisas, o “objecto” da Filosofia é difuso e mutante, chame-se o que quiser, apesar de poder disfarçar-se duma “quase ciência” se quiser apresentar-se como Sistema, pena é que não tenha a possibilidade de se impor com a energia do Teorema de Pitágoras. A Filosofia é uma atitude global, que mais que “objecto”, tem objectivos e mais que “método”, tem estratégias e estilos, mais que correlações “científicas” tem vertentes axiológicas, terreno imenso da multi-disciplinaridade e trans-disciplinaridade.

            Assim sendo, gera ansiedades e angústias, não dá certezas, evapora mais que mineraliza. Portanto, parentesco com os Jogos, em última instância. Isto é, presume regras, mas pode perder-se ou ganhar-se. Nisso é igual à Vida. Melhor não levá-la (à Filosofia) demasiado a sério… Como diria o herói duma série policial dissolvida no caleidoscópio do séc. XX : “(…) Life is hard and then you die.(…)”. (“Dempsey & Makepeace”, 1984–86.  London Weekend Television , ITV.)

 

P4 –– Diz-nos Popper que Isaac Newton, pese a grandeza científica dos “Philophiæ naturalis principia mathematica”, “como todos os grandes cientistas continuou a ser um filósofo”. Só que – esclarece – “Foi a sua própria teoria da gravitação que o conduziu quer ao cepticismo, quer ao misticismo” (cf. “Em Busca de Um Mundo Melhor”, 2.ª ed., p. 168). E, em Einstein, Karl Popper constata atitude semelhante (é bem conhecido na verdade o seu aforismo “O Velho não joga aos dados”).

Por outro lado, o Prof. Levi Malho explica-nos que

 

“O mundo dos astros é local por excelência para o exercício desta ‘fisio-logia’, pois a ele parecem presidir as constantes que a Razão tanto procura e, neste sentido, é natural que se institua como modelo de perfeição funcional que se deseja transcrever num horizonte mais indeterminado como é todo aquele que à vida humana diz respeito” (in “O Deserto da Filosofia”, p. 169 e nota 59).

 

Ora, é neste contexto que se nos põe a seguinte questão:

Haverá ainda, no quadro da filosofia contemporânea, resquícios dessa tendência natural (eu diria “perigo”), no sentido de que a Cosmologia, enquanto disciplina filosófica, se deixe esmagar por especulações esotéricas e místicas, como nos casos apontados? Ou, pelo contrário, pela conciliação do material e do imaterial na “Natureza”, como em Espinosa? Ou finalmente, como Carl Sagan (não era religioso, ao que julgo, mas reservou-se quanto às religiões) por uma atitude de humildade intelectual, mas não inibidora nem perante o Universo nem perante a crença?

 

Resposta:  A Cosmologia, nas suas mais arcaicas origens, ao interrogar os Céus e tentar compreender a Natureza do Universo no seu conjunto é, de certo modo, a condição de arranque para a maioria dos Grandes Mitos e o terreno de implantação para produções “religiosas”. Na verdade, a consciência humana parece irromper não tanto duma leitura mecânica de simples condições somáticas ( bipedismo, capacidade e volumetria cerebrais, produção de artefactos ), mas de apropriação de “matéria invisível”, como percepção de fragilidades, sejam elas a precaridade da caça, a incompreensão dos ciclos da vida e morte, o enfrentamento com a finitude.

Dentre estas múltiplas “matérias”, Céus e Terra, nos seus ritmos bem para além do alcance dos poderes humanos, configuram um poderoso “atractor” para a aparição de “forças” de grande escala que, a prazo, darão origem à ideia das substâncias primordiais fundadoras do pensamento ocidental (ar, água, terra, fogo, números, etc ) após terem estado presentes, ainda que  mascaradamente, em “mitos de origem” que vão do antigo Egipto, à Mesopotâmia, Índia, ou a sugestões simbólicas e literárias no contexto de grandes textos religiosos a que não estão imunes as mais modernas religiões monoteístas, designadamente na linguagem metafórico simbólica do “Livro do Génesis”.

Com o início grego da Filosofia há uma tentativa de esconjurar as forças pré-lógicas da Origem do Cosmos, naturalizando-o e essa é uma das virtuosas aventuras da originalidade da Filosofia na fundação duma maneira de pensar que, a prazo, é uma das maiores inovações do chamado “Ocidente”. Mas não deixaram quase nunca os Céus de, durante séculos, serem uma imagem de Ordem (Cosmos), previsibilidade, maquinismo insensível à degradação entrópica da temporalidade que corroía vidas, Impérios, poderes de toda a índole. O desejo de ler o futuro nos Astros é tentação antiga e a Astrologia é a “doença infantil” da Cosmologia.

Não se invalide a compreensão perante os “medos” dos grandes cientistas, como tão bem refere, ao citar a “desconfiança” de Newton perante a força da Gravidade, tão penosamente descoberta, tão elegante numericamente na 4ª Lei e tão misteriosa nos seus fundamentos metafísicos. Não é por acaso que o cartesianismo, ainda dominante na Europa de finais do séc. XVII tenha dificuldades em aceitar essa nova “força”. No fundo, são os receios escondidos de Newton. Há algo de “virtude oculta” , medieval, semi-mágica e pouco racional na Gravidade. Como pode um simples corpo material “saber” da presença de um “qualquer outro corpo”, agindo e reagindo perante ele à distância, numa prática comportamental mais próxima da bruxaria que da Física???

A saída de Newton é, digamos, elegante, airosa e significativa… Deixa-nos a solução do “como” funciona a Gravidade e atira o “porquê” para o reino da Filosofia. Nunca é demais agradecer-lhe o favor!

Assim sendo, a Cosmologia é terreno favorável para o melhor e pior das práticas culturais humanas. Tanto é pretexto para as mais depuradas reflexões, combinando física, matemática, ciências exactas e humanas, com apelos e visões que não escapam (felizmente) à Metafísica pois aí nos enfrentamos com os limites da mente, do cálculo e de nós mesmos, como continua a ser panaceia de mascaradas simplificadoras, anúncios em páginas obscuras de jornais, caminhos ínvios onde proliferam poderosas malfeitorias que exploram as fragilidades de multidões que, submetidas a vidas cinzentas, não mereciam as respostas de “escuridão” que gente sem escrúpulos sempre esteve disposta a dar, a troco de pouco mais que um prato de lentilhas. Como diriam os latinos, “ Abyssus abyssum invocat” ( “ O Abismo atrai o abismo”).

 

 

P5 –– Sabemos que o Professor tem demonstrado grande simpatia pelo novo espaço on-line de Filosofia Antiga, a A.F.A.

Poderia dizer-nos como entende esta lufada imprevista de ar fresco, precisamente numa área do pensar que muitos julgariam morta? E mais, num panorama social ostensivamente apático (ao que penso) perante tudo o que não seja “proveito imediato” e perigosamente desprovido de “consciência crítica”?

 

Resposta: Não escondo que foi com muita satisfação que tomei conhecimento do projecto lançado pela “Associação de Filosofia Antiga” (AFA). Não só porque me ligam laços de respeito, amizade e consideração pelos seus fundadores e dinamizadores, mas sobretudo porque trazem para Portugal, por iniciativa totalmente independente e livre, o objectivo de não deixar desaparecer um dos mais importantes patrimónios intelectuais da Europa. Afinal, foi nas ruas e praças de Mileto, Atenas, Éfeso, Eleia, que espíritos corajosos enfrentaram um Mundo que se ergueu como problema e não como um simples “produto” de forças benéficas ou maléficas, como as que se inscreviam nos grandes Mitos sobre a Origem do Universo e do Homem. Já nem direi, como outros o fizeram, que nada há de mais importante que não confundir “Filosofia Antiga”, com Filosofia “velha”.

Nesse interregno que se abriu entre Tales e o apogeu da Escola de Alexandria, um “brilho” incomensurável irrompeu na História. Falou-se do Corpo, da Alma, da Vida, da Matéria, do Conhecimento, da Política, da Justiça, do Amor e do Ódio, das Estrelas e dos Meteoros. Nunca pagaremos total tributo à imensa dívida e ao exemplo de curiosidade intelectual que a “Filosofia Antiga” nos deixou. Só a inconsciência de “novos-ricos”, recém-chegados ao palco da História podem atrever-se ao desprezo da Memória. Mas, como no episódio das Eríneas, serão atormentados pelo ridículo. Afinal não são poucos os que, sem o saberem, passam a vida a abrir “portas” abertas…

Claro que o actual panorama social das sociedades industriais em crise de transformação/adaptação como acontece em Portugal, não é favorável à grande expansão destes interesses, tirando círculos sociais relativamente limitados. Mas há situações na História em que o objectivo não é “vencer/convencer” eventuais maiorias, por mais desconsolador que isso seja. Há momentos em que o fundamental é manter uma “chama acesa”. Quero dizer, não se trata de aspirar à eternidade, mas de não deixar “morrer”. É talvez pouco glorioso, mas é importante!

 

 

P6 –– Gostaria de concluir, se me permite, com uma pequena “provocação”:

Alguma vez pensaria inscrever-se numa dessas viagens turísticas ao Espaço (com bilhete de ida e volta, claro!), pensando que, ao menos fugazmente, teria o “prazer simbólico” de transpor os limites do “caos” em direcção ao “cosmos”?!

 

Resposta: Aceite que está a “provocação” e como “Amor com Amor se paga”, deixe-me responder-lhe com uma outra…

Fazer uma Viagem Turística ao Espaço?

--- Olhe, depende da companhia e do local de lançamento da nave! Imagine que teria que viajar com uma “claque” de Futebol acabada de regressar duma eliminatória que se esfumou nos vapores de Delfos. E que o ponto de partida da “viatura cósmica” (para utilizar um conceito caro à nomenclatura do “Código das Estradas Celestiais”), seria o Parque de Estacionamento dum grande “Centro Comercial”, a duas semanas da Grande Peregrinação natalícia?? Tornar-me-ia então, porventura, o primeiro mártir cósmico da Filosofia. Confesso que dispenso a honra!

Seja-me desculpada a ironia desta nota final, mas a Filosofia, se levada demasiado a sério, também tem os seus perigos.

 

Antes de finalizar, quero deixar aqui bem claro o meu profundo reconhecimento ao Prof. Levi Malho pela amabilidade de nos ter concedido esta entrevista.

 

Bem haja, Prof. Levi Malho!