A Filosofia e os novos Comércios

 

                        --- Sobre Sócrates no Shopping

 

 

 

 

"Paisagem alagada" - Norte da Finlândia (1997)

© Levi Malho

 

 

 

            Não há estudante que não saiba, estudante de Filosofia, penso eu, que não diga num dos testes a que talvez seja submetido ao longo do martírio do Ensino, que a Filosofia é a ¨passagem do Mito ao Logos¨...
            E a coisa cai sempre bem, conta umas décimas mesmo que não se diga mais nada e o desabafo fique por aqui!
            Portanto, a Filosofia é uma ¨passagem¨, como a Vida, ou talvez uma ¨passerelle¨, numa perspectiva mais épica, ou como o viaduto Gonçalo Cristóvão, numa leitura mais empedernida e traficada, desde que este último conceito se relacione com a magna questão do trânsito.
            Sócrates, que andava sempre dum lado para o outro, gostava de dirigir os seus passos para as ruas que iam dar à ¨àgora¨ a ver se encontrava alguém para trocar impressões, saber as notícias e, em dia de sorte, abrir um debate com quem lhe desse conversa sobre tema apetitoso, fosse ele a Verdade, a Justiça, a Alma e coisas deste calibre. Platão conta-nos à saciedade essas histórias com mais de 2.000 anos e não posso deixar de pensar, no caso de ser verdadeira a teoria da transmigração das almas, o que seria de Sócrates nos dias de Hoje, onde a ¨Agora¨ é substituída pela Praça da Alimentação dos inelutáveis ¨shoppings¨ que invadiram as nossas cidades a partir dos meados da década de oitenta do século XX.
            Portanto, o filósofo estaria na fila do KFC enquanto Xantipa foi aos Saldos.Ele, de tabuleiro na mão, enquanto Timeu ou Protágoras devoram uma sande mista ou espreitam as promoções do qualquer Rei dos Hamburgers. Não é que tenham fome, mas procuram o pretexto de encontrar  uma mesa onde os cidadãos actuais, os citadinos, confluem com ritmo mais certo que os equinócios e solstícios.
            Se conseguir arranjar lugar, não escorregar nos restos duma Pepsi e resistir aos encontrões, talvez consiga uma mesa onde um grupo mais ou menos animado devora , no meio de guardanapos e papéis, uma amostra de jantar onde estão batatas fritas, uns pães, umas leguminosas parentes de alface cobertas duma caliça branca a que pomposamente se chama o ¨tempero¨, o ¨molho¨ ou coisa que o valha. Sócrates olha e tenta meter conversa, mas não adianta. O olhar do interlocutor está fixado num ¨longe¨, num Boavista-Rio Ave da TvSport dividido em 240 televisores, imagem gigantesca que flutua no burburinho das escadas rolantes que continuam a vomitar bandos de cidadãos não à procura do Ser, mas de bilhetes para a sessão das 22 dos Filmes Lusomundo. Onde está Protágoras? E Teeteto? E Timeu? Se combinamos encontro porque não aparecem para jantar, dizer dos Homens, das verdades relativas, do Mundo das Ideias. Porque só noticiam nos canais de Notícias e na TSF que Alcibíades foi atropelado e Fédon não arranja lugar para estacionar.
            Sócrates começa a ser olhado com desconfiança pelos ¨seguranças¨, essas novas figuras de esquálidos desempregados, não propriamente com a envergadura física e o mau feitio dum hoplita espartano, daqueles que nas Termópilas travaram a ganância Persa.
            O resultado final é parecido:
            --- Câmbio! ¨Ctpo¨ chama ¨Terminator¨! No corredor do hiper-mercado, um suspeito fala aos passantes sobre o que acham sobre a Alma e o Governo. Não estão autorizados inquéritos desse tipo! Só sobre a variedade das marcas de Shampôo, conforme Circular 987/2004.       
         
--- Entendido! Câmbio. Já vamos em direcção ao suspeito...


            Minutos depois, o assunto está resolvido, não se pode incomodar os clientes, Sócrates retira-se da Praça (da alimentação...??), passa pelos quiosques, vê enfastiado as Revistas de ¨coração¨, Xantipa não chega, está na fila a pagar com Multibanco. Que saudades dos mercadores dos rumores do Pireu, pensa!
            Onde está o oricalco da Atlântida? As mobílias, os ouros da Trácia, os perfumes, os tecidos coloridos, os queijos frescos, as ânforas com azeitonas que vieram de oliveiras junto às Ciclades??!!!
            Por que razão ninguém quer falar, pensa uma e outra vez. Porque correm todos, sempre a olhar para um estranho instrumento que trazem no pulso e que parece ter sobre eles o efeito duma visão de Polifemo??!!
            Porque fazem tanto barulho? Se não falam, porque não se calam?...
            Como no Mito de Orfeu, Sócrates decide-se a olhar para trás, não para ver se Euridice o segue, mas na absoluta consciência de que Hades, o imprevisível Deus dos Infernos, o fará regressar às brumas infindas donde nunca devia ter saído, para observar outras Polis diferentes daquela  que nunca abandonou, num copo de cicuta, rodeado de amigos, há 2400 anos.

 

Porto, Abril de 2004