" Exercícios de espera"

    ©  Eduardo de Quina [2006]

 

  

 

 

A Beleza ainda.

-- Sobre uma árvore  em flor   na zona do Campo Alegre. Porto.  

©  Levi António Malho  (2006)

 


«Amei-te do lado errado do coração»

                                                                                   Toranja

 

 

espera: é esse o trajecto dos olhos

que se levantam neste percurso

de dizer: mudança.

na oculta

mensagem que se borda na

memória viva do espelho, mínimo

e último, que reflecte obsessivamente

os silêncios desiguais das vozes

quase gastas.

 

 


   

 

brilha uma luz na noite erguida

sem ser vista

é a monotonia da nossa amizade.

 

o sussurro de um destino próximo

para que a felicidade se torne apenas

uma palavra no estrelar luzídio

de sermos apenas a nossa lembrança.

 

 


   

além de beleza podias ser outra coisa,

podias ser a voz com que escreves cada sílaba

para poderes suspender

numa teia um resto de verdade

sem palavras

só pensamentos.

 

se ao menos tivesses voz…

 

 


   

o contorno saliente dos braços

ou a ausência resguardada

do corpo que, ainda, queremos

na derradeira tentativa

de uma fala, ou

insólita muralha que nos guarda

na presença eterna de deus.

 


  

a espera: medida intermitente

que se posiciona indevida

na composição corpórea

de um abrigo

onde se joga de forma inútil

a nudez constante da nossa

esterilidade.

 

 


   

entre espadas

o corpo anuncia o nome

nos sulcos rectos

que acompanham a carne,

ou apenas atalhos amedrontados

onde sucumbem as imagens

e se liberta um rumor

que se apodera do que toca.

 


   

no tocar abrupto do corpo

são os lábios o sinal esforçado

onde dançam os animais

no desafio grotesco em que repousas.

 

movidos na desigualdade

controlamos assim a escassez da memória.

 

talvez, ainda, possamos ser outra coisa.

 


   

naquele momento era a voz oscilante

dos olhos, vivos e exactos,

que mediam inadvertidamente

a hora do voo,

ou tão só o regresso,

ao momento em que se constrói

o trajecto da mudança

para um qualquer corpo

na fuga imensa para junto do teu ventre.

 

talvez o tempo ainda nos deixasse lutar

contra os reflexos oscilantes da matéria.

 

era aí que nascíamos outra vez

para que a morte fosse a imperfeição

contínua das coisas.

 


  

morre, aí, a fome: do corpo que

cresce nas palavras esforçadas

da luta que se trava

de mim a mim.

 

é apenas uma espera este sinal

que se estende nas medidas

perfeitas do teu espaço,

ou o imenso gesto onde

sofremos sem sabermos

a espera decidida

pela tua voz.

 


  

a memória do teu retrato,

fechado,

é o mundo onde nos vemos

porque nenhuma palavra pode

já dizer os sinais ocultados

da nossa infância ou,

memória perdida na carne

que nos liberta desiguais

neste rosto que agora assumimos.

 


 

no limite da obediência

caminhamos os dois

inconscientemente na leveza simples

de sabermos qual a verdade

que se escolhe para que

possamos ser capazes

de voltar ao lugar comum

de que são feitos os desejos.

 


 

podia sentar-me, aí, onde te escreves

para que o meu mistério

se pudesse conservar

no teu suporte etéreo.

a sensibilidade do dizer

desfaz o que resta

do veneno consumido nas veias,

que se abraçam,

para que possas ficar à espera

da derradeira armadilha.

 

 


 

os golpes, inférteis,

cercam a pupila

para que a memória se construa

no exercício livre do tempo

ou, o rumor indizível

que se deixa degolar neste espectro

de que é feito o balanço descontínuo

da tragédia amorfa do grito.

 


  

a ausência, transitória, das formas

serena as mãos que te procuram

no silêncio impenetrável da tua imagem

para que possamos, os dois, no limite

tardio das sombras dizer qualquer coisa

que não lembramos.

 

faz-se assim a espera dos gritos

que te abafam o rosto, quase, delicado.

 

e é assim que escreves: manhã, quase tarde.

 


 

abre-se nesse limite

o regresso em que parte,

exacta, a hora.

é o corpo sobre o desejo

ou o nome que resiste

desigual nesta luta de vencidos.

sim! há verdade nesta agilidade

dos olhos, ou

o fogo que descreve

os trajectos inadvertidos da

tempestade que ao longe

se conserva para mostrar a

imensa dor das feridas.

 


 medida contínua no discurso

desarticulado da voz

que rompe líquida no perfil

desdobrado da figura.

 

recolho o olhar

para poder esconder a pena.

 

alegria breve, ou morte,

neste inseguro pedaço de luz

que escorre desmedido na

esterilidade ocultada da minha face.


 

 um ciclo inteiro e

nada mais se encaixa

na rarefacção de luz

a que se expõe o corpo.

 

breve, a tua face,

incide sobre o silêncio

do que fica sobre a mesa

que se desenha sobre o quarto

em que o repouso se

escreve: viagem.

 

cresce, assim, a distância

que habita os gritos desdobrados

da finita rasura de

que é feita a língua.

 


 diz: o espaço recolhido e secreto

em que se desfaz o rosto,

ou a trémula e descendente

carne que ergue o desejo.

perde-se o desafio e o

corpo que se recupera já não vem.

 

é manhã, quase noite

e vens tu por aí

quase nua

quase insegura.

 


 

ergue-se para além do olhar

um circulo quase redondo,

um exercício que se soletra

no perfil escuro que rompe

habitado no grito que a voz cala,

ou o canto que se cruza desigual

na dor pressentida do teu choro.

 


 

os olhos sustentam as lágrimas, certas,

do teu desejo

erguido na veste frágil

do teu corpo.

 

é um traço fugaz

esta pincelada tensa

de memória.

 

e depois: quem vê!,

ou o ruído do olhar a escrever-se

no canto previsível dos gritos.

 


 

pressente o corpo, quase gasto,

ou memória de rasgar a boca

para que o beijo se torne perfeito.

 

neste olhar descontinuo do espelho

que alastra a imagem

dura, ferida, do sorriso.

 


 

a sombra, o traço, o salto

extremo que se ergue estéril

na matéria corpórea

que traduz o encanto

e liberta o espaço para

a fuga, quase real, para

perto do tempo.

 

insondável o movimento, vai

conserva a voz e fala, diz:

a sombra, o traço, o salto.

 


 

exacta, a partida, no anunciar da dor

que se sente e espera

no lugar da despedida

para que os indícios, perfeitos,

do abismo, perdido, das lágrimas

quase certas deste lugar

se esqueçam da voz necessária

de que são feitos os regressos.

 


   

força, quase gasta,

que se escreve silenciosa, aí,

nesse lugar de presença

quase nítida.

 

cresce o sonho, ou voz, na

abertura sem nome que intersecta

o retrato das coisas velhas e necessárias

de que é feito o rumor

inconsistente da tua face.

 


  

extingue-se, solta, a lágrima

no quase silêncio que se olvida

neste risco incontido que se rasga defunto

no espaço possível do sinal

que se diz na distância visível

além desdobrada no movimento

das coisas, desirmanadas, em que

se escreve este trajecto de memória.

 


   

algo perturba a inconsciência da voz.

um golpe, simples e puro, é

apenas o movimento

para escrevermos: exacto.

 

um trajecto rectilíneo de mim a mim

para que o voo seja suspenso na

obsessão doentia da noite.

 

um espaço, mínimo, cobre a pele

na guarda imensa de que

são feitas as esperas.

 

talvez não fosse necessário

o cansaço

para que tudo se escrevesse

de forma simples.

 


 

sobre o regresso quase verdadeiro da infância

alguma coisa me lembra a circuncisão doentia

da linha ágil que se move na busca

serena do corpo que se esconde, exacto, na dor

que se reflecte para que tudo pare

na intersecção do silêncio que

espera para que o dia acabe.

 


 

inerte: a vontade do corpo.

capricho ou fuga quase decidida,

e o espaço que se consome é

quase memória ultrapassada.

 

o corpo: algo se inscreve no

limite obtuso do discurso.

 

falamos, assim, a língua líquida

de algo que se reprime

e vamos os dois de mão dada

desassossegados

nesta quase espera infinita.

 


                                                                                                                                                

 

 

a voz                      

                                                                            a memória

 

  •  Ao avô Eduardo

 

 

 

 

é a voz o que resta

da tua memória

e as histórias que, ainda, contas

um sufoco infinito da tua lembrança.

 

é esta a espera infinita que assumimos

e a voz é o pecado guardado

da verdade única que assume uma partida.

 

o que se mostra é o espaço desabitado

da tua ausência

que se escreve no que reflecte o teu retrato.

 

hoje não te vi

mas sei que, ainda, estás cá.

 


 

 hoje, sei que não posso ter memória

porque sei da verdade escondida

que me perturba o olhar.

 

diante de mim alguma coisa se perde,

ou a angústia do tempo

que me consome no que resta do dia.

 

sei que hoje não te vejo

porque a voz que me fala não sabe

da verdade que me cala.

 

hoje não posso ter memória

porque o tempo te roubou os dias.