"espaços  pendentes "

 

    ©  Eduardo de Quina - [2004]

 

 

 

Foto com tratamento digital

[ © Eduardo Quina e Levi Malho ]

 

 

«De onde vinha eu não sabia

mas  estava  aqui  e    não

onde    nada  principia.»

Manuel  Alegre



ainda o teu abandono no

regresso inconsciente a este lugar.

um resto de despedida

na exacta medida do espaço.

já não estou e,

algo em mim, se pressente

no silêncio íntimo de

quem não é capaz de verdades.

 

 


   

ainda uma esperança que se

persegue no resto de um instante.

desdobra-se a memória, ou

angústia, de dizer um outro tempo.

e, calmas, as mãos cerram-se

no inventar desfasado do início.

um passo inútil no regresso do olhar

ainda preso no rasto de um abismo.

 

 


reinvento o teu espaço

à procura de um simples sorriso

 

não estás!

sou apenas o teu medo

que te procura

 


    hoje partiste na estrada infinita e sem regresso. eu sou, apenas, a saudade imensa do que de ti ficou. um desejo imenso ou uma falta imensa. estas paredes, que agora me olham, são o que de ti ficou. são elas a tua memória. são elas que agora me falam. são elas que agora me gritam e unem a ti.

sem razão aparente partiste. sem rasto. sem rumo. sem memória. o que resta de ti é este espaço habitável. esta memória de desencontros. eu, que te olho na vontade de voltares. olho tudo isto e sou a memória de ti. estas paredes, esta casa, este quarto, onde, louco, foste envelhecendo. aqui, eu ouvia, atentamente, as tuas histórias verdadeiras. hoje, não lembro essas histórias, porque sou o resultado imperfeito da tua lembrança.

queria que estivesses, queria a tua lembrança, queria o teu medo, queria a tua verdade verdadeira. foste no teu destino imensidão à procura de solidão. não sei o que encontraste.

olho a porta do teu quarto e oiço já o teu sorriso, que me olha, que é feliz. na memória do espaço entro, devagar, no teu quarto. estás a dormir e sento-me ao teu lado. não podes ser acordado. adormeço, então, ao ouvir-te mais uma história. quando acordo já não sei nem do teu rasto. procuro em toda a casa. chamo. grito. não estás. não me ouves. dentro do meu medo procuro o que resta da nossa lembrança. espaços onde fomos felizes. irmãos. amigos.

agora continuo a procurar-te. ainda, é a tua voz que oiço quando estou dentro destas paredes. ainda, é o teu sorriso que vejo quando entro de novo no teu quarto. ainda, me sento ao teu lado. estás a dormir. não faço barulho. não podes acordar. adormeço ao ouvir, mais uma vez, a tua história. quando acordo já não sei nem do teu rasto. procuro. chamo. grito. não estás. não me ouves. e dentro do meu medo procuro o que resta da nossa lembrança. espaços onde fomos felizes. irmãos. amigos.

regresso todas as manhãs, ainda, para te acordar. acordas num só susto e és tu que cuidas de mim.

hoje, esqueci-me de te acordar e foste tu que me invadiste com o teu desassossego. entraste com toda a tua força no meu quarto. não estava. procurei. chamei. gritei. não estava. não me ouves e, dentro do meu medo, procuro o que ainda resta da nossa lembrança. espaços onde fomos felizes. irmãos. amigos.

 

 


   

ainda há um lugar que se inventa

um instante delineado

que, silenciosamente, sonhado

nasce e se fecha dentro

de outro ventre.

a luz desafia o olhar

e no reabrir das mãos

as pálpebras tornam-se mudas

na memória imensa

de um regresso à carne.

 

 


  regresso, imortal, a este lugar

procuro o que resta da memória

na longínqua infância de que fui vítima.

 

talvez um segredo inócuo

onde se esconde a verdade

e olho novamente estas mãos

que me são estranhas.

 

 


 

um olhar infinito

sobre um desespero eterno.

 

  vivia no sótão a minha empregada. eu era pequeno e a empregada do meu avô era já uma velha muito velha. a minha empregada que era a empregada do meu avô era velha. tão velha que não tinha idade. não tinha nome. não precisávamos de a chamar. ela estava sempre lá. estava em todos os lugares em que fazia falta. era como as sombras que nos perseguiam. nunca nos abandonava. era como a memória de uma coisa sonhada que sempre nos acompanhava. esta mulher velha tinha uma vontade maior que o mundo. o sótão era o seu refúgio e ao mesmo tempo o seu lugar secreto.

um dia, à escapadela, entrei no sótão. lugar de mistério e de terror. era dali que essa velha, muito velha, comandava o mundo. o meu avô dizia-me que ela era o infinito, era a própria loucura de ser louco. não entendia! cá pra mim ela era bruxa. o meu avô dizia-me para não dizer essas coisas, porque a velha era alguém de muito importante. o meu avô dizia que ela não tinha idade. era sem tempo. eu não percebia!

a solidão arrastava-se com ela. não falava. seria muda?! nunca perguntei. para mim era incompreensível aquela mulher, aquela vida. tudo me era estranho. o meu avô dizia-me que um dia iria perceber todas as coisas.

num dia de desespero o meu avô morreu. não vi a velha muito velha. ela não estava! impossível! como poderia ela faltar! não percebia! o meu avô foi a enterrar e eu fugi para sempre daquele lugar.

agora, eu que já sou velho, regresso. talvez para perceber todo o mistério. a casa do meu avô. tudo, ainda ali, a olhar-me eternamente. outra vez criança. o meu avô a levar-me pela mão e a contar-me outra vez aquela história. caminhamos, lentamente, sobre os nossos corpos. subimos degrau a degrau até ao sótão. lá estava ela. a mesma idade. velha muito velha. olhou-nos do seu olhar. não falou. também não perguntei porque não falava. estava tudo na mesma e ela na sua pose de infinita eternidade. eu olhei para mim. o meu avô já não estava. e eu não percebia!

 

 


  o segredo que me prende a este espaço

termina se os olhos se fecham

sobre a incerta precisão deste regresso.

 

uma imagem que as mãos,

já frágeis, perseguem

nesta textura descontinua;

terra ou dor ou

apenas uma fuga, última,

sobre a oscilação da memória.

 


dentro do olhar, um corpo,

que passa sem ficar e

um desvio do movimento

impõe um regresso à noite

e ao lugar de precisão

onde se constrói esta fuga.

aberta, a mão, salta

por entre o desejo que

desce eternamente sobre

a inutilidade da infância.

um olhar trôpego

diante do silêncio ou

da falta de certeza.

as sombras da memória

regressam outra vez a este caminha,

impõe-se o sinal que mais dói

neste sonho de ir ou voz de ficar.

 

 


quem nunca desejou

amar

odiar

mal-me-quer

bem-me-quer

quem nunca desejou

acabar

por instantes

 


   

  a memória não me deixa lembrar o esquecido. penso! como seria! eu, criança. não me lembro de o ter sido. volto-me para mim. dou por mim a caminhar pela rua. um passeio. não posso pisar os riscos. caminhava no meio das pedras. louco! não podia pisar os riscos. pisar os riscos era morrer. lembro-me que morri muitas vezes no meio dos passeios. às vezes ganhava. nesse tempo não tinha idade. era apenas criança. não tinha memória. tudo me parecia eterno, agora que me vejo daqui o olhar-me nessa eternidade de criança.

tudo isto é apenas o vazio da eternidade a avançar sobre mim. lembro os lugares absurdos, que ainda me fazem sofrer. percorro-os como pela primeira vez. as mesmas encruzilhadas. não posso pisar os riscos. a minha vida depende disso. a minha vida depende de mim. um delírio inverosímil. uma cegueira absurda no meu caminhar absoluto.

 


 

ainda a inútil manifestação

do teu corpo na procura

de uma expressão que

se repõe sem gesto no silêncio.

 

uma luta travada diante

da imagem estranha.

um rosto, laço ou segredo,

que se diz correndo

indiferente por aí.

 

 


 

ainda a tua imagem

para me dizer a verdade

na ausência indefinida

da solidão que me aniquila.

 

um medo que se expõe

sobre o rosto que se aproxima

na carne deslocada

que um movimento hesitante

constrói na precisão

que ainda se reflecte.

 


RETRATO

 

olho fixamente o espelho que

me devolve a imagem de ontem

 

e olho eternamente o espelho que

me devolve a imagem de ontem

 


 

 

  no limite do que restava da precariedade da existência, caminhava sozinho sobre a doença. no limite de tudo não havia tempo. no limite de tudo não havia memória.

pensava sem saber ao que se dirigia. a doença tomava-lhe o corpo e o que dele restava. uma simples ilusão que se desfazia num simples olhar.

não gostava das palavras nem do seu sentido.

num último soluço ergueu-se, no que restava de si, e caminhou até ao espelho que o reflectiu. olhou. reconheceu o olhar. o olhar. a memória. o olhar e a memória e o medo. sem força sorriu.

talvez aquela imagem igual a si não soubesse da solidão. talvez aquela imagem não soubesse do amor. talvez aquela imagem não soubesse da solidão e do amor e do medo e da dor. talvez aquela imagem não fosse ele. talvez aquela imagem não fosse nada. talvez aquela imagem fosse ilusão. talvez aquela imagem não fosse ninguém. talvez aquela imagem não fosse nada para além do que mostrava. a verdade. a terrível verdade de estar ali.

a imagem caminhou, lentamente, até cair infinitamente no chão. não se lembrava de ter adormecido.

a memória de estar ali diante da sua imagem que o reflectia. a memória que não existia. não havia tempo, apenas a certeza de se estar a olhar na eternidade, daquele momento, e não saber que verdade, que certeza era aquela que o olhava.

o espectro que vagueava à sua frente para o condenar infinitamente. ainda tu para me dizeres não sei que verdade. alguma coisa morre em mim para ser a seguir outra coisa. uma luta infinita de mim a mim. e tenho-te, agora, a olhar-me infinitamente na ânsia de uma simples vontade. o corpo, esse, já nada pede. uma dor imortal que trespassa o simples sentir. a verdade. uma luta imensa nesse olhar que trespassa o espelho. que não me fala. se ao menos uma verdade houvesse em mim.

neste espelho onde outrora me vi criança, olha apenas o precipício. um último devaneio nesta loucura. e vejo-me a ver-me. e por me ver vejo-me. eu e eu. sozinho a olhar-me. eu e a imagem reflectida que me reflecte. a imagem devolvida que me olha. a imagem reflectida que me olha, que me mata. a dor de estar ali diante de mim. duas imagens. dois espectros. olham-se. não se vêem.

o silêncio da tua imagem a olhar-me. se ao menos uma palavra houvesse para me convencer da tua irrealidade. se ao menos te soubesse tocar para te saber verdadeiro. vejo-te na minha invenção de ser louco e de tu, seres apenas a despedida de algo que já não dura.

lá fora o silêncio. aqui, junto a mim, o silêncio. olho-te intensamente até não seres mais que lágrimas. um choro infinito. uma ausência infinita. uma despedida.

pressinto no meu olhar que te olha o meu olhar, e me confundo na tua invenção que é minha. e não me sei.

sou eu novamente que me olho diante da minha imagem, apenas para me despedir. um esvaziamento absoluto de uma ausência absoluta. o teu olhar que é meu e que me olha, triste, só, longo, ausente, apenas para me lembrar de mim.

um desamparo de que sou feito e que me precipita na minha direcção para me inventar de novo na distância infinita da minha vulnerabilidade.

o corpo que te sustém ficou ainda mais lento e dentro dessa imagem as sombras, o silêncio. durante esse instante estiveram lado a lado numa distância infinita. sobre eles, a imensidão do espaço a deslizar, eternamente, sobre os seus corpos.

no que restava da memória havia ainda um tempo eterno a rodear-nos. desceu sobre nós a noite. desceu sobre nós o infinito. desceu sobre nós o silêncio. estava tudo preparado. estávamos preparados para o fim do mundo. na distância de tudo assistíamos ao último momento.

e no último momento de paz olhou-se no que restava da sua imagem de dor infinita

- diz-me quem és? ...dir-te-ei de que morte és capaz!

 


 

ouvir o silêncio no desassossego

do aconchego de uma alma,

esqueço que estou vivo

e, no meio do mundo,

dou de caras com um rosto,

talvez distante,

e tornas-te bela.

 

transportas-me contigo e,

na subjectividade do instante, foges.

a incomunicabilidade do momento

não te ouvi, não te falei,

e, numa vida até ao fim,

morri tranquilamente e sem dor.

 


 

 sou eu, o medo que te olha

o que vês eras tu

só para lembrares que eras

o corpo, onde a vida hesitou,

e, no abandono das águas,

só o desejo se tornou memória

 

respiraste o que restava da noite

e entregavas-te nua, inocente,

ao que restava das palavras.

 


 

   não sei se eras tu ou

a tua memória na minha imagem


é domingo. vestes o teu vestido. e, mesmo longe, consigo imaginar-te. o espelho reflecte-te, exacta, como a luz. voltas-te para o mundo. abandonas o espelho e a imagem que o sustém. pousas a memória sobre tudo e, em silêncio, sais, devagar. o movimento transparente que te acompanha é apenas o desejo, onde faltam as palavras. o caminho onde faltam as pedras. tu, a ir devagar. o mundo a olhar-te. eu, como as sombras, movimento-me no perseguir da tua sombra. é domingo. tu e o teu vestido. não lhe lembro a cor, mas adivinho-lhe a elegância. o vestido a cobrir-te. o vestido a tapar-te. o corpo franzino e delicado. o corpo que se anuncia debaixo da cor, que não sei, do vestido. lentamente páras. tento aproximar-me. naquele instante poderia ser feliz. se te falasse. se me ouvisses. não consegui. vi algo. sombras. e fugi. fugi para o medo.
    tu continuaste a caminhar e o sol tomava-te o corpo. o vestido manifestava as formas do teu corpo.  eu adivinhava-o. não o sabia.
    é domingo. vestes o teu vestido. e o espelho reflecte o teu olhar. devagar sais para o mundo. sigo a tua sombra. ao meu lado o meu medo. imagino-te. não te sei. segues por entre a luz clara e infinita do sol. eu sigo com o meu medo. sozinho. a cobrir-te, o teu vestido. só ele te adivinha as formas. só ele o puro deleite sobre o teu corpo. as tuas formas. chegaste ao fim do caminho. devagar páras. e dentro da luz és tu que me tomas o olhar. alguém te olha que não eu. começas novamente a caminhar. e ali, onde o sol te reflectia, na exacta medida da eternidade. ficaste imóvel. um instante. precisava de matar o meu medo. tinha que saber. de repente sem saber tomaste-me as mãos. fiquei aflito. senti que era o fim e que a noite tomara para sempre conta de mim. procuro-te no meu olhar de medo. a tua imagem ou a minha memória. não sei quem comandava quem. ficamos em silêncio. tu a olhar-me. eu a olhar-te do meu infinito medo. eu a olhar-me do meu infinito medo. adivinhava-te o corpo. não o sabia. rodeados pelo mundo e pelos deuses desafiamo-nos num simples olhar. abandonei-me ao deleite do teu corpo. um instante infinito na infinita memória do teu corpo, do meu corpo. eu, que fugi de mim. agora diante de ti. o teu olhar que me olha. o teu corpo que se insinua. um caminho simples. não podemos. sobre o olhar da eternidade não podíamos ser felizes.
    sem que nada o fizesse prever tomaste o lugar negro do meu coração. entraste como uma morte infinita para me lembrares de mim. olhamo-nos no que restava do encanto e em lágrimas tomaste-me o corpo no abandono de mim mesmo. era verdade. chorei. sofremos sobre a consciência infinita desta verdade. durante aquele instante vivemos e morremos para sempre. a brevidade de mim sobre o teu corpo infinito. era verdade a minha sombra e a tua luz. eram verdade no caminho inevitável do regresso.
    era domingo. vestias o teu vestido. caminhavas devagar junto a mim. era domingo. vestias o teu vestido. e não sei se eras tu ou a tua memória na minha imagem