"exercícios : labirintos"

 

    ©  Eduardo de Quina - ( Setembro/2012)

 

 

 

exercícios: labirintos. Eduardo de Quina

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Na capa: “labirinto”.

Pormenor do interior de uma chaminé.

 

 

 

 


 

 

 

 

exercícios: labirintos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

«Não se vai a nenhum lado por muitos lados, ou:

há muitos caminhos para não se ir a lado nenhum:

eis o labirinto.»

Gonçalo M. Tavares

 

 

 

 

 

 

 

 

Julho 2012

 

 

 


 

 

 

 

estremece a cabeça contra si própria:

que comece o jogo:

o labirinto do mundo,

a invenção do poema.

 

nos ossos pulsa o sangue a conta-gotas

para escerver o fim suspenso:

a re-invenção das palavras.

 

cortámos as veias

para do sangue fazer

o poema primeiro

do mundo:

palavras em forma de labirintos.
 

 

 

 

 


 

 

 

escrevo-te

porque já não suportas

a lucidez da criação.

e morremos vagarosamente

nos teus silêncios.

peregrinamos pelo poema

e não sabemos que idade temos:

é o crime pelo fogo roubado.

 

 

 


  

 

 

pétala a pétala

compões o rosário

do teu sofrimento:

o corpo rodeado de sangue.

 

uma rosa como sinal

concêntrico de deus

na memória enlouquecida

por onde passam os corpos

efusivos e delirantes.

 

 


 

 

 

desenhas a fuga com escuridão

e repetes o traço:

em forma de reza.

 

arqueja a mão canhota

na sua técnica ejaculatória

para que nasça o poema do mundo

numa morte e repouso absoluto:

é o sorriso doloroso das mães.

 

 

 


 

 

 

no princípio era o verbo: solilóquio.

palavra divina

revelação da solidão de deus.

no princípio era o verbo:

o silêncio estrutural de deus.

a palavra é o lugar exacto

onde nasce o mundo.

 

 


 

  

no princípio era o verbo:

a palavra.

uma música iluminada

demoníaca

onde nasça o poema.

mas como saber uma palavra

que diga o mundo?

 

 


  

 

 

o poema nasceu da escuridão:

o crime da criação da palavra

ou a babel da ignorância.

 

temos os tímpanos rebentados

pelo teu silêncio

ò deus.

 

 


 

  

e, ao terceiro dia,

ressuscitados para dizer

as palavras que ainda te faltam.

 

eis-nos, ainda, aqui à procura das palavras:

e escreves a tua voz

na água

com sangue.

 

 


 

 

 

e, ao sétimo dia, tal como tu,

por cansaço,

descansamos do mundo.

e morremos da mesma morte:

excesso de lucidez.

um enigma indecifrável

na eternidade ilusória

do teu corpo irreal.

 

 


 

 

 

e, ao oitavo dia, fugimos

da nossa imortalidade

para que a morte

nos cresça no corpo.

e sabemos que o teu rosto

é um buraco negro

redentor:

inscrição única da criação.

 


 

 

 

 

há um deslumbramento

quando se olha do alto do mundo:

o mar.

 

e há destinos:

dos que partem e regressam

à solidão da ilha.

 

e sofrem

porque sabem que estão sós:

deus já não lhes fala.

 

 


  

 

 

tens os olhos abertos para a inauguração do dia

e sabes

que é da morte que nasce o amor:

mãe.

 

porque deus é o nome de todas as coisas:

e é da sua voz

que nasce a menstruação do poema.

 


  

 

 

a escuridão do mundo:

o lugar mítico do corpo.

 

espaço demiúrgico e incógnito

dos filhos de deus: infímos.

 

não se conhecem

por serem invisíveis

nas suas vestes divinas.

 


 

 

 

um desejo sufocado

por detrás do corpo

e dos nervos que o sustêm.

 

arames através da ossatura

cobrem as feridas

para que não se saiba

a tua dor.

 

e trazes a morte

num grito simples

iluminado.

 

 


 

 

 

 

a tua voz é simétrica

ao teu corpo perpetuamente deformado:

é nela que anuncias o sangue.

 

o pânico do teu ventre preso por arames

que te alimentam.

 

são eles o fio condutor

ao interior das imagens

da tua própria morte.

 

 


  

 

 

rasgamos a voz

para do sal temperarmos os órgãos

que rebentam contra a claridade da luz.

 

e vemos em pormenor o teu rosto

que explode contra a lucidez do dia

para que assim nos reconheçamos

na nossa dor

insuportável e definitiva.

 


  

 

encontra uma morte que te fale

na ferida aberta

para que possas encontrar

a resposta que os lábios anunciam:

o ar é a invenção

para respirar e adiar

o desejo de

que nenhuma morte nos fale.

 

 


 

 

 

na tua condição de fêmea

só suportas a tua própria existência:

um monólogo.

 

e desenhas-te,

sem palavras,

em silêncio,

até ao desfalecimento da própria matéria.

 

e sofremos os dois, mãe,

para a dor ser mais suportável.

 


 

  

corpos que desfalecem

contra outros

de perfil

sem que ninguém repare

sem que ninguém oiça

do outro lado das suas vidas.

e é a força do teu silêncio

que faz com que estremeçamos

sem dor

só sofrimento.

 

 


  

as palavras contornam os objectos

íntimos da noite

grafias desafiantes

e desalinhadas

teoremas e incógnitas imunes

à inumeração rectilínea

por sobre o equilíbrio das coisas.

 

e tudo nasce da tua vulva sangrenta:

porque és mãe, ó deus.

 

 


 

 

 

morre-se:

só por se estar vivo.

evidência:

condição prévia da vida.

 

os olhos de deus:

é esta a imagem do terror.

 

 


 

  

 

 

é o pensamento que se ordena em meditação:

compasso de morte acelerado.

e move-se, o corpo, por entre o espaço

lacerante da música:

uma construção estéril.

 

evidência: é demasiado pesado.

 

 


 

 

 

a carne crua do corpo das mães expurga:

é a dor do pecado original.

 

eu nasci da sequência

da reza de minha mãe:

eu de joelhos

no seu ventre

a acompanhar

a reza do mundo.

 

 


 

 

 

 

dentro de ti:

estás morto.

o sangue circula:

estás morto.

mudas o coração para o outro lado,

medes o batimento:

estás morto.

e segues em direcção ao futuro,

sozinho:

estás morto.

 

é uma morte que se repete

em seu nome

sem intervalos.

 


 

 

 

a morte dos homens

é a forma única

de conservar os segredos de deus.

 

e a certa altura morre-se:

forma única de criar desordem.

humanidade extrema:

deus na sua criação perfeita.

 

porque o teu corpo

é a imagem desordenada

da monstruosidade da criação.

 

 


 

 

 

na sua condição divina

é a morte que nos cura:

forma única de criar:

e o sangue dentro da cabeça

como forma de morte suprema.

 

 


 

  

 

em deus as palavras morrem de forma vulcânica

para que nada se evidencie no poema.

deus: na sua infinita solidão basta-se a si próprio:

é a harmonia do seu silêncio estrutural.

 


 

 

 

no teu corpo fatigado repousas os dedos aflitos.

mãe: amei-te tanto e nunca tive uma palavra que dissesse, que te aquecesse o coração. um gesto que te tornasse feliz. e pudesse, ainda, abraçar-te de forma plena. para que sentisses que não podia haver palavras entre nós.

 

 


 

 

 

na parede do quarto

há um deus crucificado.

e há-de descer novamente da cruz

para o colo da mãe

que sofre numa dor infinita:

porque todas as mães sofrem na sua dor infinita.

e sofrem as mães

perante o silêncio de deus.

 

 


 

  

re-inventamos as formas

para que da matéria de que é feito o mundo

se re-construa

em silêncio

a voz esquecida de deus.

uma imagem inesperada:

a carne onde cresce o poema

é ainda vestígio da criação.

 

 


 

 

 

 

a voz era um grito

uma música

trazida pela memória da parição:

é o arbítrio de deus

para que aprendamos a sofrer.

 

 


 

  

 

desce a noite sobre a recôndita lucidez

da carne.

as entranhas secam ao sol

penduradas num arame ferrugento.

ao lado está o corpo depositado sobre o tempero do sal

pronto a tornar-se matéria comestível:

em nome

do pai,

do filho…

 

 


 

 

 

 

o sol sobre as entranhas

e o teu corpo virgem

a romper,

a desossar o tempo.

era a noite que consumia

os objectos

e os entregava à sua

negritude.

porque sabemos que na infância

não há morte.

 


 

  

 

 

 

são-lhe cravados de forma plena

os pregos nas mãos.

 

e a mãe espera que o filho desça da cruz.

sofre:

é a possibilidade única da salvação do mundo.

 

 


 

 

 

 

é o filho que tem a carne trespassada

pelo mundo.

e desce da cruz para se ausentar

(por mais dois mil anos).

 

 


 

 

 

mãe, como sofre a solidão em nós.

e fazes novamente a pergunta:

- é deus evidente?

eis a resposta do equívoco.

 

 


 

 

 

 

a minha memória

são as cicatrizes de deus.

 

e vivemos em carne viva

para que não esqueçamos

o sofrimento de que somos feitos.

 

perdão:

fui eu que te abandonei.

 


 

  

 

 

estás em posição para o sacrifício:

rezas numa língua estranha:

talvez deus não te entenda.

 

 


 

 

  

 

se tens os olhos abertos

a beleza não persiste.

 

 


 

 

 

 

somos as mãos de sísifo

irremediavelmente condenado

que sofre,

que não desiste,

apesar da alucinação do mundo.

 

 


 

 

 

 

 

mãe: talvez deus tenha morrido há muito tempo.

 

 


 

  

 

 

na impaciência das palavras desarticuladas de deus assumimos assim na terra como no céu a condição da morte que a terra faminta espera.

e há melodias de anjos de corpos iluminados. e fingimos a dança nas entranhas sem memória. e depois morremos, felizes, por acreditarmos que ouvimos a voz de deus.

 

 

 


  

 

 

tomai todos e comei

e é o teu corpo estéril

que nos devora.

 

 


 

 

 

 

 

mãe: as mãos da tua ternura.

e como procurar-te no silêncio íngreme das coisas mortas?

a imagem do crucifixo colado ao peito e a dor de deus dentro da tua dor.

mãe: a verdade é que deus é a morte de si mesmo.

 

 


 

a música de deus e o seu corpo ditirâmbico

são a mensagem e o lamento dos mortos

por assumirem a morte dos anjos

na sua condição assexuada.

 

mensageiros sem nome

nas suas vestes de nudez.

 

abutres de corpos recusados

na língua faminta de deus

para sermos castigados,

obedientes

no sacrifício.

 


 

 

  

 

é o teu silêncio que me fala.

e sofro

porque já não voltaremos a este lugar.

esperamos o teu gesto

sem perdão:

livrai-nos senhor da nossa dor.

estamos mortos

e já não podemos decifrar

os teus silêncios.

 


 

 

  

 

repouso a mão sobre o teu seio,

o teu corpo lancinante descansa

depois do sacrifício.

é a tua morada à minha espera

ou a escuridão do mundo por onde deslizam os teus lábios.

 

hoje não regressei a ti

por ser demasiado tarde.

 

 


 

  

 

 

o teu corpo é lançado contra a claridade da noite. e há relâmpagos fulminantes que criam imagens que te conduzem os lábios contra o pânico do meu corpo. acendes as carícias para saciar de forma tumultuosa a treva do poema: é a fome de deus.

 

 

 


 

  

 

 

 

uma mulher estava parada. olhava o semáforo verde. não avançava. e sem que nada o fizesse prever caiu sobre si prórpria.

à volta ninguém olhou e o mundo continuou a circular.

estava morta. ninguém sabia o nome. não era deste mundo.

 

 


 

 

  

 

 

 

de pé uma mulher rezava. não tinha braços. rezava de mãos postas. desejava que o mundo acabasse.

no fundo a certeza única de que só ela podia acabar.

 

 


 

  

 

 

 

uma mulher está deitada: está nua.

aproximam-se dois homens: cobrem-na com um lençol.

está morta.

 

 


 

 

 

 

uma mulher velha está de joelhos. reza uma oração infinita. e deus impaciente ouve: está cansado da criação.

 

 


 

 

 

 

 

e continua na parede o retrato

de minha mãe,

como se fosse verdadeiro,

a tratar de mim, como se fosse real.

 

era o entardecer da memória

e serenamente meu pai chegava,

longínquo,

de uma outra alucinação.

 

e juntos, pela madrugada,

nos nossos corpos, vazios e torturados,

aguardávamos

a morte.


 

 


 

 

 

 labirinto
 

 

 

 

 

 

 

é aí que tu és: nesse confronto com a morte. uma frase interrompida pelo teu rosto. uma frase quase humana em forma de enigma.

ocultas o corpo para o encontro absurdo com a ausência. uma simples concentração de luz no dia encoberto pelo sol.

ali estavas. na tua pose, sem gestos, sem palavras. eras o advir da tua própria incerteza. na fecundidade precisa com que escreves as palavras vulcânicas do corpo e do mundo e da treva de que a luz não era ausência. era suporte. era vida. era memória e alcance. era deserto do mundo que era preciso atravessar para o regresso à partida. e nas palavras a distância do reencontro em que sepultámos o rosto e o resto do corpo: sem identificação. apenas a memória da escrita e dos sítios que talvez tenhamos habitado para que pudessemos ser nós, na nossa lembrança de escuridão. e um só sorriso que pudesse de forma plena abraçar o mundo onde a palavra fosse o verbo primitivo da criação da memória dos mortos.

queríamos um poema enquanto criação, última e definitiva, do mundo. uma palavra, primeira, que dissesse o mundo na sua plenitude criadora.

a linguagem enquanto exercício. palavras escritas numa pedra-infância: epitáfio do mundo.