" A Carta"
de Manuel Laranjeira a Miguel de Unamuno
© Djalma Sá Marques .( 2008 )
Apelo dos Nomes
[ Sombras numa tarde de Verão ( Placa de edifício. Ponte da Barca. 2007) ]
( Imagem digital tratada. © Levi António Malho, 2007 )
meu querido amigo,
Escrevo-te uma carta que muitos diriam que era "impossível" na forma e na substância, se fosse como muitos que por aí vegetam, pois nos tempos que correm, parece que não é possível alguém escrever certas coisas que não seja logo tomado por louco ou asceta, marginal ou lírico, no sentido pejorativo do termo que esta gente de hoje atribui, a quem diz o que pensa e a quem pensa o que diz. Por isso, à nossa correspondência, poucas pessoas, além de cada um de nós, poderá ter acesso, sob pena de pensarem tratar-se de inconvenientes marginais que visam modificar regras e alterar o "status quo" vigente. Confesso-te que às vezes perco a paciência e não consigo resistir, face à hipocrisia e à mesquinhez que cada vez mais parece grassar neste País. Sinto-me às vezes, tentado a ir-me embora, refugiar-me num local distante, talvez num Mosteiro dos mais recônditos (não te rias, pois de uma forma que até a mim me intriga e inquieta, tento conciliar o meu lado apaixonado e boémio com uma dimensão espiritual que vou descobrindo a cada dia que passa), fugir para o deserto ou talvez até, quem sabe, ir viver para o meio de uma qualquer palhota no meio da floresta da Amazónia. Talvez aí, nesses lugares, eu pudesse encontrar gente a valer, como tu…
Todavia, este iodo do mar de Espinho, este cheiro a sal e esta espécie de vida selvagem e desesperada, porque genuína e pura que ainda vai saindo dos poros destas gentes vareiras, continua a fascinar-me e a angustiar-me. Não imaginas como me dói, ver o rosto encharcado de suor dos verdadeiros poetas deste tempo que continuam a entrar mar dentro, sem saberem se vão voltar a abraçar o corpo da mulher amada que suspira ora de dor, ora de alívio e a afagar o rosto do filhinho que os chama pelo nome ainda só reconhecido pelas quatro letras da expressão " papá ". Acreditas que ainda é possível, nestes tempos de hoje, ver frágeis barcos enfrentarem gigantescas ondas? O que sentirão esses homens que arriscam a vida em troco de uma sardinha para a refeição da noite? Tanto a troco de quase nada…
Pois é, meu amigo. Continuo a olhar o mar deste Espinho que ambos aprendemos a amar e que nos levou outrora, a sonhar e a acreditar que poderíamos mudar o mundo. Enquanto mergulhávamos na angústia existencial de não sermos capazes de enfrentar o mal e o colocar em tumba eterna, acreditámos e vivemos, ainda que por poucos momentos (lembras-te do êxtase com que partilhávamos poetas e escritores que nos transfiguravam a forma de ser e de estar?; lembras - te de estarmos a declamar poemas até altas horas da noite e só acordar de madrugada, quando víamos o sol nascer? E aqueles pedaços de prosa que até nos faziam esquecer a mágoa e a tristeza que nos enevoavam o olhar…) a esperança de que talvez fosse possível transformar a humanidade. De facto, parece que perdemos esse desafio. Talvez só uma nova geração de gente que sinta o sangue a fervilhar pelas veias, seja capaz de transformar este mundo sem alma, adormecido e envenenado por uma letargia arrepiante. Não imaginas, como esta gente de hoje se conforma com a infelicidade e como já não é capaz de lançar um grito de revolta contra um estado de coisas que confesso, me deixa assustado e perplexo. No entanto, sinto cada vez menos "nadezhda", ou seja, uma cada vez menor esperança, tal como o sentiu o martirizado povo russo e que curiosamente, também vou sentindo aqui por terras de Portugal num encolher de ombros que esmaga, em sinal de impotência de que tudo possa vir a ser diferente. Parece que já nem sonhar é permitido.
Como sabes, já não vinha a Espinho há alguns anos. A medicina cruzada com a literatura, levou-me nos últimos tempos a procurar respostas, muitas delas, eternas questões a que já desisti de responder. Talvez a solução, esteja em repudiarmos esta espécie de névoa existencial que só nos deixa a descoberto aquilo que é superficial, impedindo de nos levar à procura daquilo que uma vez alcançado, nos daria uma espécie de bem-estar perpétuo. Desculpa estas divagações, mas estas confissões consolam-me o espírito que anda cada vez mais nostálgico de um tempo que nunca mais chega.
Como me lembro tão bem - lembras-te? - das tertúlias sem tempo, com que nos deleitávamos no Café Chinês, a vencer o tempo e por momentos a subjugá-lo com o nosso entusiasmo de jovens rebeldes e sonhadores? A sensação de por momentos partilhar o espírito de Olimpo, quando denunciávamos uma injustiça em público e algum responsável, ali presente, corava de uma vergonha que reflectia uma existência que havia de envergonhar os vermes, tamanha era a insistência em não modificar o que se poderia fazer, não corrigindo nem consertando, aquilo que está mal e todos vêm; e noutra perspectiva, lembras-te das meninas que ficavam encantadas com uma qualquer ode que eu lhes dedicava a uma beleza ingénua e pura, entre o fumo de um cigarro e um café vindo do Brasil? Ai como tenho saudades de um tempo em que o amor combinava como uma concertina, avanços e recuos na procura do fruto proibido e que nos deixava ávidos do dia seguinte. Saudades de um tempo em que as horas não existiam e a eternidade parecia já definitivamente conquistada…Ainda sinto em mim, laivos desse tempo, mas uma espécie de torpor físico e mental vai-me manietando a vontade de continuar a acreditar de que tudo poderia ser diferente, sem máscaras e sem medos, numa espécie de desabrochar para um mundo em que só o olhar, por si só, conseguisse falar e dizer tudo! Que vontade tenho de gritar ao mundo que aquilo que realmente vale a pena não tem preço nem limites, pois habita nas profundezas de cada um, absolutamente impossível de ser silenciado e que nos pode levar aonde nunca sonhámos poder chegar.
Descobri recentemente o fabuloso místico que foi S. João da Cruz. É também espanhol como tu. É impossível ficar indiferente à força brutal das suas palavras. O seu poema "Noche escura" é verdadeiramente empolgante, nomeadamente, quando lá se refere por exemplo que a " dura e terrível noite não tem outro objectivo que levar as almas à mais clara e pura luz de amor".
De repente, consegui esquecer-me da melancolia de Dostoiewski e do pessimismo de Schopenhauer – e já nem falo dos ritos cansados e velhos de uma Igreja tantas vezes distraída que muitas vezes me perturba pelo esquecimento cruel da palavra oportuna e do gesto que podia tudo ter mudado, pois cada tempo, só pode ter como profetas, aqueles que não desvirtuam a mensagem original, mas a adequam à realidade do tempo presente. Se assim não for, falam para quem? – e consegui vislumbrar uma frincha de esperança, embora sinta que já é tarde…
"Recordar es agradecer", também lá se diz em "Noche escura", mas às vezes esse recordar leva-me a um estado de tédio tal, face à barbárie do desrespeito pela pessoa humana, que sempre existiu mas que hoje parece ter alastrado a níveis incomensuráveis, que às vezes o tal recordar me faz chorar pelo que vi e vivi e pelo que ainda hoje vivo e vejo, mas já não devia ver…
Talvez se tivesse encontrado o fulgor das suas palavras há uns anos atrás, tudo pudesse ter sido diferente. Teria sido um suplemento de alma, energia e fogo, para poder transformar o que fosse possível e compreender e aceitar aquilo que já não tinha solução. Agora, resta-me esperar que o mar deste Espinho que tanto amo, me continue a consolar esta minha alma tão triste e cansada. Como é aconchegante vaguear à noite ou de manhã cedo, junto às ondas que se espreguiçam neste areal, na procura de um rosto, na ilusão de que esteve sempre à minha espera ou de uma emoção que me procura para eu a poder desnudar.
Aliás como já te tinha dito, já não vinha a Espinho há alguns anos e aqui chegado, parece que regressei a uma casa de onde nunca saí. Não é essa também a sensação que se tem, quando reencontramos um velho amor que parece que esteve connosco desde sempre, sem nunca termos saído de junto dele?
Sinto uma grande tristeza, por não poder partilhar ao vivo contigo, esta satisfação de ter reencontrado esta espécie de amor e de amante, Espinho, símbolo do eterno e do fugaz, mas sempre bálsamo para esta alma ferida e que perdoa, tal como esta cidade, todos os esquecimentos, pois sabe que são fruto de uma busca que não tem fim, uma busca de mim, mas que também sabe que eu estou sempre de regresso e que me consola com ternuras e atenções.
Esta carta já vai longa (lembro-te Pascal quando disse que "escrevi esta carta mais longa do que é costume porque não tive tempo de a escrever mais curta") mas não posso deixar de partilhar contigo esta emoção, vindo como venho da recuperação de estilhaços de dor que teimam em não me abandonarem mas que parece que por momentos se esqueceram de mim. O amor, sempre ele, e esta dificuldade em não ser capaz de fingir o que não penso nem sinto, vai dando, devagar, cabo de mim.
Já não te escrevo de qualquer um dos cafés em que ambos tudo partilhávamos. Ou fecharam ou mudaram de ramo…Escrevo-te no quarto de um hotel que ainda se vai mantendo de pé, ali bem pertinho do mar. O cheiro a maresia combinado com o intenso aroma que sai da minha caneta de tinta permanente, vai pois, elaborando esta carta, selvagem e desordenada – com sal e iodo impregnado, não os sentes? - , como aliás vai sendo cada vez mais, o pensamento deste teu amigo que vai perdendo a paciência para tantos intelectuais engomados que nunca vibraram com um livro e para os políticos que vivem em torres de cristal, para assim não conhecerem a realidade que gritam aos sete ventos conhecer como ninguém. É o que se vê…
Imagina até, caro Unamuno, que os líderes políticos deste País, tentam justificar o absurdo de encerrar urgências e maternidades em nome do interesse do povo. Como é possível construir tal tese, sem que ninguém a isso se oponha de uma forma que impeça de todo, tais inqualificáveis desideratos? Não sei… Sinto neste País uma tristeza que me trespassa a alma e tenho pena, muita pena que nestes tempos de trevas - que outra coisa será, um tempo que calca e pisa a dignidade do ser humano e o usa e deita fora como uma coisa? - se pareça ter perdido o ultimo resquício da raça lusitana - e não estou a falar de cavalos! - de homens de boa vontade que sabem que ser Homem não se compadece com jogos de palavras bonitas e ocas mas com acção e intervenção social. Pelo menos, com um ultimo sentido de dever que a honra impõe. É que, se tal como Schubert, tenho e devo aceitar as dores do mundo e para isso me envolvo em tantos momentos de minha vida numa existência nostálgica e melancólica, tenho também de me revoltar face ao incompreensível, ao inaceitável e ao injusto, tal como tão bem o demonstra, a música idealizada e composta por Beethoven que consegue até empolgar quem por vezes já se sente quase moribundo, mesmo sem ninguém lhe conseguir diagnosticar qualquer doença. E já que te falo na simbiose perfeita daqueles dois músicos na ânsia de me tentar compreender e decifrar, deixa-me também confessar-te que me sinto cada vez mais, como um dia se sentiu o pintor Delacroix, cada vez mais solitário e com uma tristeza profunda. Já Baudelaire sobre ele se referia, quando disse que a sua obra constituiu um «hino composto em honra da fatalidade e da irremediável dor». Penso que esta simbiose entre a dor, o êxtase e a mágoa de tudo ser tão efémero e frágil, é uma herança histórica e genética que desafia quem pensa e que perturba quem sente. O que achas disto tudo?
Aguardo a tua carta. Enquanto a espero, vou caminhando pela areia desta praia de Espinho que tão bem conhece a sombra do meu corpo que tantas vezes nela se deitou, no final de um dia ou no despertar de uma manhã.
O teu dedicado amigo,
Manuel Laranjeira
P.S. Há uma frase, num livro teu "Aos poucos, água e fogo, voltam, como de costume a selar um pacto" que cada dia que passa mais se vai entranhando em tudo que digo e faço. Sinto-me como que submerso entre cascatas deslumbrantes e fogosas labaredas de um sentir que me assusta. Só não sei se o pacto que assinei com a vida me há-de salvar ou liquidar. O tempo o dirá!...
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