RISCA AO LADO

 

    É da Zoologia. Todo o mamífero tem o corpo coberto de pêlos. Gorilas, gatos, ratazanas, ursos polares, professores de Filosofia, membros do Governo, não há que se lhe diga. Tudo o que mama tem pêlo! Mas com uma diferença. Só o Homo Sapiens tem periodicamente dee os cortar, de ir ao barbeiro, essa antiquíssima profissão que desde os Assírios, as barbas de Assurbanipal, os caracóis de Nero, as trunfas Vikings, as guedelhas medievais, se tem especializado nessa luta de Sísifo entre a penugem que cresce e a lâmina que apara. Há-os para todos os gostos, desde a "peluqueria" 'in' que parece a NASA e onde para além do cabelo deixamos o couro, até a umas espeluncas pré-históricas que parecem saídas duma era cavernícola.
    É o que acontece na "loja do Zé", espaço obscuro entre uma sapataria e um restaurante na R. Senhora da Luz, mesmo junto à linha do eléctrico. O Homem é mudo e meio surdo, ainda novo, alto e recurvo como a descrição de Mestre Finezas do Alves Redol e gere um espaço surrealista até mais não. Tem duas cadeiras, daquelas em ferro fundido, onde se lê no cavalete onde se apoiam os pés --- "Ferreira Alves - Fabricante" --- imediatamente por baixo duma âncora em alto-relevo.
    Uns assentos, castanhos luzidio de tanto uso, são revirados a cada freguês, após espanadela ritual dos despojos capilares que alastram em semi-círculo em torno desse altar onde somos imolados à força de tesoura, navalha, pincel e pente, único pente que serve para tudo, risca ao meio, risca ao lado, tudo para trás, tudo para a frente.
    O homem está sempre zangado, ou porque não fala, ou porque não ouve. Quando vê um cliente, olha um velhíssimo relógio e tartamudeia:
    --- A'rde! A'rde! Ei'dia! Ei'dia! Moçar. . . Log! Log! !
    Traduzindo. "Isto são horas de se chegar. É que é quase meio-dia. São horas de ir almoçar! "
    O mais engraçado é que diz isto mesmo que sejam 9 horas da manhã e a loja esteja a acabar de abrir. A gente suplica:
    --- Ó Sr. José! Dê lá um geito! !
    Então, aponta-me para a cadeira com ar de quem faz favor, que seja a última vez que isto acontece, não sem repetir:
    --- A'rde! Ei'dia! Moçar. . Moçar! !
    Mas então nasce o barbeiro e a concentração é total. Em dez minutos não nos podemos mexer, somos virados e revirados de forma a aproveitar a luz que vem da rua, tudo quanto é pelo em excesso voa em todas as direcções, até aos retoques finais, extraordinários.
    Com o olhar a cinco centímetros de nós, armado da tesoura nº 3 "L'mã! Ara! Ara! "(Alemã! Muito cara! Muito cara! ), ataca sobrancelhas, nariz, pestanas, até tudo ficar a régua e esquadro, dentro dum alinhamento digno da Bauhaus! Não há loções, perfumes, lacas, shampôos, nada.
    No final, uma nuvem de alcool é espargida no pescoço rutilante com um frasco metálico, ligado por um tubo de borracha a uma bomba aspirante-premente. Não vale a pena dizer: "Não quero! Não é preciso! ! ". Ninguém sai dali sem a desinfecção final, essa nuvem de ardor que se mantém até sairmos da caverna do Ciclope, após acertarmos contas.
    Leva 170$00 pela obra, o mesmo preço que se praticava na 1ª República. Conta-se que faz barbas a mortos, mas não sei se é verdade. Certo, certo, é que aquilo que mais o põe a ferver, é os clientes dizerem-lhe:
    --- Você está rico, Sr. José! ! Está cheio "dele" no Banco! . . .
    Fica escarlate de raiva e nem mais um freguês é atendido:
    --- Moçar! Moçar! Ei'dia! ! M'bora td'o! !

14. 07. 92


 

  • © Levi António Malho   -  Regressar a   " De Literatura, um pouco..."
  • Actualizado em 13.04.2001
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