" O dia na noite"

    ©  Eduardo de Quina [2008]

 

    

 

 

A nitidez dos dias.

-- Sobre uma  visão em   Ponte da Barca.  (Tratamento digital)

©  Levi António Malho  (2007)

 

  


 

 

o dia na noite

 

 

 

“Hei-de esperar porém que a luz aumente:

talvez a noite fosse a tua ausência.”

Gastão Cruz

 


 

 

  

   

repousamos as mãos sobre o livro: ritual, último, antes que se abra para que as histórias, quase verdadeiras, se possam refugiar na mente, quase real, de quem lê.

metamorfose virtual do tempo para que tudo se escreva de forma simples.

é a memória sobre a memória ou a noite na escuridão.

 

 


 

move-se, lenta, a mão. abraça, sem esforço, a página, vertical e dispersa, do álbum.

escreve-se, nesse espaço, a imagem resolúvel que se desenha. a constância indevida que se explora para que o corpo sobreviva a este principiar sereno da noite.

 

 


 

 a mão ergue-se para desobstruir o caminho. a porta, sem esforço, abre-se. é o espaço inadiável da memória.

um desafio breve sobre o corpo que se rasga defunto no limite inseguro em que as lágrimas caem: dóceis.

 

 


 

um desassossego amedronta o corpo. dentro ergue-se, estranho, um espasmo incontido de que se faz a fragilidade do teu sorriso.

um medo que cresce, e no ciclo, quase fechado, da luz talvez, ainda, cresça dentro da tua sorte uma qualquer verdade inútil.

 


   a memória é apenas o espaço inóspito onde guardamos as coisas velhas.

a tua memória é apenas memória de memória.

um corpo, um rosto, uma luz na inexistência tranquila da minha solidão.

podíamos os dois ser o esquecimento tranquilo se nada nos lembrasse e fossemos o olvidar de um espaço sem luz e sem desejos.

 

 


 

 

 

   

 a noite é a memória esbatida do nosso segredo. ficamos no desejo quase esquecido em que habitamos, mas perdemos o tempo numa outra angústia.

agora que querias entrar alguém reparou na tua ausência.

 


 

uma outra realidade sustenta o regresso da noite.

chega a mim a voz e o corpo que a delineou. uma mistura estranha. já nada se assemelha àquilo que a voz trazia.

era a noite que te suportava as formas.

 


 

à noite permanecemos deitados a olhar a escuridão. podíamos ficar eternamente neste momento.

na velha ignorância preenchíamos os espaços entre as estrelas.

se as palavras conseguissem parar o tempo à hora exacta em que já nada existe porque adormecemos.

 


 

na angústia da noite o sonho é quase real. dói tanto o tempo que nos separa do dia.

adormecemos os dois na eternidade da história que não contavas porque sabíamos que tínhamos de acordar.

 


 

os olhos no lugar do  vazio. a memória entendida do teu destino. a noite cava o sepulcro onde guardamos a voz porque já nada podemos dizer.

agora, em silêncio, escutamos o que resta do calor do nosso quarto. é verão e há alguém que na rua grita.

ninguém o ouve. ninguém nos vê.

 


 

 

   

agora que chegaste falamos sobre o tempo e do consumo indevido de vidas.

caídos sobre os nossos corpos a escuridão recorda-nos do combate, último, em que perdemos porque sabemos que somos feitos do deslumbramento excessivo das crianças.

 


   

o corpo que ao meu lado se deita traz a ausência de luz que angustia a noite.

já não esperamos o dia porque dentro de nós outro corpo habita.

 uma outra verdade onde lutámos por uma promessa que nos faça esquecer a noite na escuridão.

 


 

cria-se no tempo a terrível justiça do fim que se anuncia na voz, quase audível, do teu sorriso.

nada pode perdurar na certeza infindável que ameaça sem dor o corpo, ferido, que sozinho vagueia na treva que esconde a luz.

um fantasma voa sobre a minha memória.

 


   

o alívio de um acordar perene é o princípio desalinhado em que habita a ânsia protagonizada pela tua voz ou memória que dura e absorve as palavras para que o silêncio se instale.

é a noite que sobrevive à memória.

 


 

retemos, sem sofrer, o grito e sustemos a dor sem sentir.

a face submissa cala sem voz o ventre que se rasga na esperança de um novo corpo que, ainda, possa alimentar os deuses.

do rosto de sua mãe caem lágrimas felizes.

é a morte que entra devagar e que cala as vozes no adormecer da noite.

 


 

 

 

ignoras a voz com que se escreve a palavra.

não sabes da sua transformação audível para que se reverta o processo metafísico e definitivo do regresso do meu corpo sob a água líquida da memória que se escreve na persistência da matéria inerte que te habita no lugar da noite.

 


 

dentro de ti a inconfundível verdade da minha memória.

a tua solidão dentro de mim. e ajoelhamo-nos, os dois, diante de nós para nos vermos nesse abraço longilíneo onde nos despedimos para existirmos sozinhos no que resta da escuridão do dia.

 


 

podemos escolher o fim e o sacrifício. certamente não sabemos o lado certo e o lado errado.

podemos gastar, inutilmente, as forças na espera, última, do corpo que estremece com a chegada da voz que traz violentamente a saudade da luz.

é o teu rosto tapado pela escuridão.

 


 

agora a memória traz o lugar inabitado da infância. a noite apodera-se do silêncio que lembra a luta dos corpos e o desejo transparente de poder escutar um rumor, simples, dessa verdade.

é o nome que designa o lugar e nos apercebemos do intervalo que separa o teu corpo da noite.

 


 

a noite é a espera de algo que a tua voz decide. é aí que nos percebemos até amanhecer sobre as partes dos corpos que ainda há a percorrer. sobre as memórias, íntimas, que angustiam o resto de calor que ainda alimenta os corpos.

é a noite que nos penetra na sua imensidão.

 


 

 

 

nada se vê ou sente no espaço desvelado onde se guardam as coisas velhas e sem memória.

a fantasia das estrelas que iluminam sem luz o dia na noite.

só porque se esquece tudo se perde na ausência ilimitada de espaço.

é este o movimento repousado da realidade em que tingimos dois retratos e não existimos por ser tarde demais.

 


 

o grito ou o choro pressentido é a voz e o espaço inteiro que ocupa a memória.

disperso, é quase findo, mas cresce na direcção exacta onde nasce uma outra certeza: o corpo.

talvez a noite traga o despertar da luz.

 


   

assume-se agora, fora de nós, uma outra realidade.

a tua voz traz, na penumbra do dia, o silêncio.

ao longe perde-se o escuro e tudo se torna um lugar suspenso para que se esqueça o desassossego de acordar na idealidade da ausência de memórias.

 


   

passa longe o tempo que, afinal, vive no dizer excedido da tua voz. enquanto alguma coisa caminha indevidamente na nudez descuidada do teu corpo.

cansados, deixamos que a noite nos amedronte na sua escuridão.  queremos adormecer confundindo a realidade simbólica de que é feita a tua vinda e que agora me ocupa ilegitimamente a escrita.

é o dia na noite.

 


 

fora da janela, do quarto que nos habita, há barulhos que anunciam o principiar de um outro estado.

precisamos de nos erguer: é este o princípio secular da separação dos nossos corpos.

agora, que a noite se desprende da escuridão, podemos assumir a dor.