" A Brevidade das Palavras" © Eduardo de Quina [2006] |
Sem tempo
-- Sobre um rododendro em flor nos jardins do Campo Alegre. Porto. --
© Foto de origem e arranjo digital - Levi António Malho (2005)
mais adiante
surge no meu bolso
a margem dividida
onde voltam os instantes
perdidos
para poder parar o tempo
a ameaça da sombra
a que dista o processo
dos sinais onde os olhos
repousam a infância
para que possa surgir
a re-invenção carnal
das imagens
a medida justa era
o custo preciso
deste paraíso e só aí
podíamos medir a
resistência do corpo
a idade medida entre as noites
e um enredo onde
os traços circunscritos da
nossa memória eram
tão só os livros que não lemos
para não termos medo
das palavras interditas
a nova paisagem que construímos
na imagem destes sinais desiguais
onde alguma coisa se transporta
para um derradeiro lugar
para que possamos metamorfosear
os corpos neste espaço, íntimo,
em que se erguem as estrelas
a tempestade das viagens retornadas
em que talvez houvesse uma crença,
última, que se pode medir religiosamente
na distância das nossas promessas
o lugar de que agora partimos é,
ainda, o começo estranho
do recordar que cresce sem
suporte na perfeição
alada dos nossos passos
no limite esquecido há alguma coisa
que dói no sofrer deste fim de dia
talvez seja a desolação tardia das palavras
que nos obrigue a partir
a inconsequência de um olhar
que procura um coração
onde a existência de palavras
era a ausência do meu corpo
e sempre tivemos
medo das despedidas
que não se unem
são o lugar vazio
onde o meu rosto lamenta
o sentido ocultado da tua face
para que o teu sorriso possa
surgir neste quase desenho
a matéria insofismável
de que são feitas as cores
com que se pintam as possibilidades
para que o teu corpo seja
multiplicação ambígua e profícua
de uma despedida reencontrada
na espera do meu retrato
o pouco que havia na parede
era o breve momento da nossa representação
um resto de pena que
nos aprisiona, ainda, as lembranças
já há muito que fugimos desse lugar
no entanto o esquecimento
convoca-nos constantemente
para que possamos ainda que imperfeitos
exigir o toque que
os olhos permitem
Poema à mãe
Mãe
talvez soubesses
que havia verdades
em mim
e mesmo que a ausência
da minha existência
fosse esquecida
talvez soubesses
que havia sonhos
em mim
e mesmo que as palavras
fossem despedida
ficava sempre o silêncio
então
talvez soubesses
que não passei
de um instante
que mesmo eterno
não se repete
a imagem quase nítida ergue-se
projecta-se no corpo para que
se possa inscrever a noite de tudo
confundem-se no deslumbramento
estas duas margens para
para que a inscrição sustente a
improbabilidade de uma vigília
na morte de tudo
cobriam o que restava do dia
eram flores simples e frágeis
na impureza metafísica
de um disfarce impuro
onde, ainda, um segredo
pode ser a tentação última
de uma possível salvação
era esta a fragilidade das flores
era um deus que se erguia
nas veias da memória
para a promessa de outra vida
ou um outro encontro
uma doença
no fracasso do corpo
nesta dança que se insinua
para que possamos voltar a ser incompletos
o fluir fendido da tua voz
era o anunciar sombrio
onde nos tornamos iguais
porque somos desfeitos
do disfarce eterno e
demoras-te nos teus lábios
para o meu sonho ser incompleto
hoje, na incerteza do triunfo
esqueci-me de sonhar
e tu frágil como a dor
e como quem ergue uma taça
eu ergo a minha alma
à tua
resisti até à dor
até ao contacto
com a pálpebra dos teus dedos
resisti até à morte
resisti até à vida
o céu torna-se intransponível
e o mistério ausenta-se
por instantes
e a mentira
torna-se certeza infindável
de já não ser nada
na procura incerta e metafísica
de uma qualquer transcendência
como a transparência de uma sombra
a distância desfazia-te as formas
era o ressuscitar da memória
para que definitivamente
a palavra se equilibrasse
na invasão clara de
que são feitos os corpos
as mãos não conhecem o repouso
e rasgam-se por entre as páginas
na promessa solitária
das metamorfoses nocturnas
no ritmo ainda fechado do livro
as mais belas flores
colhidas pela inocência da criança
que ignora a dor que sente
e não é feliz
a perdida inocência da flor oferecida
ao amante que não ama
a dor que ignora por estar ali
e não ser feliz
o olhar perdido na inocência
de umas mãos
que atam esse corpo
que não quer
é infeliz
e ignora a dor do prazer
a noite vai tarde
e o temporal está iminente
ouvia-se nos limites do tempo
a voz do silêncio
e desejei ser para sempre este momento
um rosto feliz apressado
persegue a sombra
que atravessa os dias
na irremediabilidade de
a memória anunciar
a ausência de um fim
e como quem apaga algo que escreve
ele apagava a dor
já era tarde
e não podia ser salvo